A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

Seja bem-vindo. Hoje é
Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

'Oferecendo de beber a Pei Ti'


Vem beber um copo e descansar,
os homens mudam sempre, como as ondas do mar.
Nós dois temos envelhecido juntos,
apesar dos reveses, continuamos vivos.
O primeiro a habitar uma casa de portões escarlates
pode sorrir, ao olhar os outros de chapéu na mão.
Tu sabes, basta um pouco de chuva
para reverdecer a erva dos caminhos.
O vento da Primavera é ainda frio
mas os botões das flores quase desabrocharam.
Por que tanta pergunta, tanta luta,
os negócios do mundo, as nuvens flutuantes?
Descansa, deixa fluir a vida,
e vem jantar comigo.

Wang Wei*

'Poemas de Wang We'i,tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu,
Instituto Cultural de Macau, 1993, p.170

*Wang Wei (Taiyuan, Shanxi, 701-761) foi um pintor, calígrafo e poeta, e estadista chinês da Dinastia Tang. Também foi conhecido como o "Poeta de Buda".

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

TOPOGRAFIA*

Nas mãos,
a planta aflita
da cidade.

Nas mãos,
em concha,
o homem
acolhe da vida:

O alarido
dos bares,
os cantos e sinais,
as danças circulares.

Os sinais de sereno
embalam
sua vida insone.

Nas mãos,
a boca e línguas
da sua idade.

As vozes, luzes,
esquinas, escolas,
parques, mercados,
feiras, infância e infâmia:

Acasos e ocasos
que aviltam
seus sonhos e olhos
sem qualquer cerimônia.


*Jairo De Britto,
em “Dunas de Marfim”

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

CHOVE


a memória como um tronco
e o amor brota-me olhos
de cogumelos azuis
...
(Nunca esquecerei que à entrada daquela mata, sob a chuva, tinha um tronco e que nele brotou o encanto de cogumelos azuis.)

Fernando Campanella

Foto do blog 'Meu Porta-Retratos', por Taíla

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Ata-me - Jairo de Britto-



ATA-ME

I

Quanto custa tanto dizer
eu te avisto, mastigo e amo?
(Sei que sabes a polvo e povo)


II


Quando ofereço tanto querer,
eu te alcanço, arremesso e abraço?


III


Quão feliz, vil ou viril
eu te faço, afirmo ou pareço?

IV


Quando a rosa é a rosa e a roupa,
eu te oferto alvoroço e apreço.

V


Quando sinto o vento que fala;
que, so far, farfalha
e brinca com a roupa da casa,
eu te entrego meu corpo cortina.


VI

Através dos anos, cuidas de atar-me.
Tal cortinado afeito a grandes olhos:
como língua e léguas de Espanha;
tal Península em púrpura Ibérica chama.



VIII

Ata-me à tua pele branca, calcinada,
como Almodóvar às suas cores cheias
de furiosa algazarra e pagã harmonia.


IX


Aos três anos, ata-me como Rivera:
imantado; encantado pelas cores,
sonhos, dramas e dores de Frida.


X

Quantos anos achas que tenho?
A idade da pedra, do coração domado?
A idade infeliz dos que se despedem?


XI

Encontro, em teus cabelos de fogo,
a materna fúria e o profano sacrifício.
Portanto, aprendo a rir e a sonhar...
E, como rio, uma grande serpente imitar!


*Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

domingo, 28 de novembro de 2010

SOBRE NOSSA COTIDIANA E INFAME SABEDORIA*


Sabemos que não se recupera a palavra atirada, nem o maldito gesto ou sobressalto, libertos em seu próprio espaço.

Sabemos que nossos amigos, amigas ou amantes, às vezes, se revelam quais serpentes cobertas por múltiplos sagrados mantos e mantras.

Sabemos que em torno, e no passado distante, escondem-se muitos dos nossos mais perversos medos - dormentes quietos em travesseiros de paina.

Sabemos que, não raro, somos irresponsáveis e intolerantes para com as pessoas que amamos. Mas, de soslaio olhando, esperamos permanecer.

Sabemos que nossas orações são da boca pra dentro de outras bocas, e de ouvidos fingimos nem delas precisar na hora precisa.

Sabemos, ou pretendemos crer, que deuses ou semideuses nos espreitam.

Mas caminhamos por trilhas fáceis e familiares, na direção de abismos já conhecidos.

Sabemos que somos capazes de ferir. Portanto, ferimos com o mesmo ferro com
que nos ferem, como se aí houvesse algo de bendito ou original.

Sabemos que nossos dias são ainda mais curtos do que nossa vã auto-imagem,
ou ação, nos faz crer. Mas nosso apetite desperta miragens travessas.

Sabemos que o sol nem sempre se levanta pra todos; nem para milhões tão bem disposto.
Mas alardeamos uma igualdade de ser que não somos ou vemos.

Sabemos que amanhã será outro dia (!?). Quando muitas, e tantas vezes, apenas desconfiamos que assim venha a ser...

Sabemos que “Amor” é uma palavra; como “Rosa” é uma cor, uma flor e outra palavra.
Mas vestimos palavras com verdades, males e matizes que pouco, muito pouco, conhecemos.

Sabemos que “Querer” é um verbo voraz e insaciável. Mas pretendemos que sobre ele possamos fazer algo: talvez toureá-lo, mantendo-o sob severo controle.

Sabemos que uma linha, que sequer suporta a palavra “Tênue”, separa a Vida da Morte.

Mas, noite e dia, fazemos de conta que há um cabo de aço aonde existe somente um fiapo de fé.

Sabemos tanto que, quase nunca, queremos tentar saber aquilo que o Outro sabe ou vive: tropeçamos no alheio sentir como em pedras soltas num beco escuro.

Sabemos que sabemos e nada mais queremos saber.

E esta meia verdade se impõe como um juiz vulgar que avalia nossa partida perdida.

Sabemos que erramos. E quietos aguardamos um xeque mate - como se de nós ele não dependesse; como se fôssemos só filhos ou frutos de casos ou acasos.

Sabemos que buscamos, aqui e alhures, aquele ou aquela que Bem nos quer.

Mas nunca aceitamos como fácil tal e tão bem-querer.

Sabemos que o mundo em torno, os vizinhos ou algumas visitas, pouco se importam com nosso mal-estar.

Mas “fazemos a sala”; construímos o túmulo que outras culpas nos ditam.

Sabemos que é chegada a hora de ficar ou ir embora. Mas esperamos para ver como, afinal, tudo vai ,talvez, amanhã estar. E quase nunca, verdadeiramente, estamos ou ficamos.

Sabemos que ninguém vai viver ou por nós morrer. Mas insistimos em acreditar que outras formas de ser ou amar irão nos salvar. Nem mesmo o universo noutra “casca de noz” nos apraz ou satisfaz.

Sabemos que foi ontem e pensamos que será amanhã.

Mas nos ilude a certeza de poder vir a ser tudo o quê simplesmente não podemos ou, de fato, queremos ser.

Sabemos que viver sem certezas é mais saudável.

Mas queremos que pedra sobre pedra seja pedra sobre pedra e não, pelo menos às vezes, pão sobre pão; talvez até pão de queijo ou... Pó de arroz integral!

Sabemos, sabemos, e tanto sabemos que parece nem mais haja, para duvidar, um pequeno espaço ou lugar comum: como um canteiro, um jardim, a beira de um caminho, as margens de rios e laudas; um quintal, o inverso de uma esquina, ou nuvens grávidas sobre um lago azul.

Sabemos, sabemos, e tanto sabemos que claro nos parece nem mais preciso perguntar:
Para quê, afinal, faz-se necessário tanto saber?



*Jairo De Britto.
São Paulo,Capital
- 23.Janeiro.2008 -

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A Vigília do Silêncio

(Fotografia by Fernando Campanella)

Apraz-me ouvir, às horas vespertinas,
Quando o ocaso desmaia o azul sidéreo,
O longo cantochão das casuarinas
Na religiosa paz do cemitério.
As árvores, em múrmuras surdinas,
De um rumor elegíaco e funéreo,
Falam de coisas mortas e divinas,
Veladas pelas sombras do mistério.

A perscrutar as vozes do arvoredo,
Na ânsia inquietante e céptica do sábio,
Tento, ó Morte! saber o teu segredo.

Mas vejo, no alvo mármore das urnas,
O Silêncio com o dedo sobre o lábio,
Olhando as vagas solidões noturnas...


Da Costa e Silva*

*Antônio Francisco da Costa e Silva
nasceu em Amarante, no Piauí, em 29 de novembro de 1885.
Faleceu em 29 de junho de 1950.
Formou-se pela Faculdade do Direito do Recife. Foi funcionário do Ministério da Fazenda, tendo ocupado os cargos de Delegado do Tesouro no Maranhão, no Amazonas,
no Rio Grande do Sul e em São Paulo. Viveu não só na capitais desses estados, mas também, por mais de uma vez, em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro. Jornalista. Recolheu-se ao silêncio, demente, em 1933.

domingo, 14 de novembro de 2010

'Sublime Sentimento'


“Senti
Uma presença que me enche da alegria
Que vem da elevação do pensamento, um sublime
Senso de uma profunda integração
Que residia na luz dos sóis poentes
Por sobre os mares, e pelo ar vibrante
E o céu azul, e pela mente do homem-
Uma vibração e um espírito, que movem
Tudo que pensa, e tudo o que é pensado
E interpenetra todas as coisas”


William Wordsworth
- Cf. “O Céu da Mente”, de TimothyFerris, p.61, Ed. Campus, 1997.

'IV'


Só recebemos o que damos – é certeza;
as nossas vidas é que vive a natureza:
Nosso é seu véu nupcial, é nossa a sua mortalha!
E se víssemos algo de maior valia
Que isto que o mundo frio e inanimado talha
Para a turba angustiada, pobre e sem amor,
Ah! a própria alma sem tardar enviaria
Uma luz, uma glória, ou nuvem de fulgor
Que envolveria a Esfera ...E da própria alma se alçaria sem entrave
Doce e potente voz, voz que a si mesmo gera,
O elemento vital de todo som suave!


Samuel Taylor Coleridge
in ‘Poemas’ Trd. Paulo Vizioli 

sou esta areia que se esvai


sou esta areia que se esvai
entre o cascalho e a duna
a chuva de Verão chove-me na vida
sobre mim a vida que me foge persegue-me
e vai acabar no dia do começo

caro instante vejo-te
nesta névoa que se levanta
quando não tiver de pisar estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha


Samuel Beckett
em Relâmpago n.º 13
tradução de Manuel Portela



Samuel Beckett
(Dublin, 13 de abril de 1906 — Paris, 22 de dezembro de 1989)
foi um dramaturgo e escritor irlandês.Recebeu o Nobel de Literatura de 1969, utiliza em suas obras, traduzidas em mais de trinta línguas, uma riqueza metafórica imensa, privilegiando uma visão pessimista acerca do fenômeno humano. É considerado um dos principais autores do denominado teatro do absurdo.

Sua obra mais famosa no Brasil é a peça Esperando Godot.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Fernando Campanella

Meus pensamentos no ralo das horas -
passam uns, outros aderem
ou deterioram.
Quem move esta máquina ontológica
de moer remoendo
...tudo que me pensa por dentro?

(Se vivesse não escrevia
não escrevendo morria)

Um poema por inteiro
às vezes me escapa
quando o tempo é meu mestre
e aprendo a desentupir a pia.

(Fernando Campanella)

sábado, 6 de novembro de 2010

À JANELA DA VIDA


Olho,
à janela,
o tempo,
que passa
e não espera
ninguém.
Tempo ingrato,
tempo que marca
a vida,
tempo perdido
no tempo,
tempo alegre,
tempo bom.
O tempo
é como o rio:
transporta
a vida
na barquinha
das recordações . . .

Delores Pires
In: A Estrela e a Busca

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

"Inutilidades"


Pouco adianta
escrever:
quando
a chuva e o frio
embala
corpos vazios.

Pouco adianta
prever:
quando
a profecia é pública
e notório
é o deserto de rios.

Pouco adianta
querer:
quando,
da antiga nascente,
já não brota
a palavra querida.

Pouco adianta
correr:
quando chegar
antecipa saber
que de tanto querer
já não mais se quer.


Jairo De Britto,
em “Dunas de Marfim” 

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Fernando Campanella

(Foto by Fernanado Campanella)

há algo de óbvio nas flores -
eu o admito, mas reincido -
a beleza requer exercício

(Fernando Campanella)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

'O UNIVERSO E O VERSO'


O mar azul me faz sempre pensar
E o pensamento faz-me mais discreto.
O mar é nada, mas é sempre mar,
Se comparado ao universo reto.

Meu pensamento vai bem mais distante
Que a distância do cosmos conhecida.
E sempre foi assim, desde eu infante,
Como será assim por toda a vida.

A diferença está pelos bilhões
Dos anos que o universo durará.
Meus pensamentos corre aos borbotões
Mais logo pelo tempo morrerá.

Quanta ironia existe no Universo
Que é maior e menor de que meu verso.

02/01/2010.

Ives Gandra Martin*

*Acadêmico das: Academia Paulista de Letras, Academia Paulista de Letras Jurídicas, Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Academia Internacional de Cultura Portuguesa, Academia Matogossense de Letras, Academia Cristã de Letras, Academia de Letras da Faculdade de Direito da Usp.

domingo, 17 de outubro de 2010

RARA TEXTURA

Solidão e silêncio
permitem o encontro
que espelha,
no chão do meu rosto,
o Tempo,
o lamento das perdas,
o afago das mãos
que amarram,
presente e passado
em único cesto.

Solidão e silêncio
afligem o vento
que enreda
o vão do meu corpo.

O vento, o alento dos versos,
a alvorada das horas:
presente e futuro
em perene segundo texto.

Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

ESCONDE – ESCONDE


No azul de verão
sol e nuvem, distraídos,
brincam de esconder.


Delores Pires
In: Vôo

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

PASSEIO DO OLHAR

Pouso meu olhar sobre teu rosto
como a mirar safiras outras,
que buscam melhor conhecer-me
para maior sabor deliciar.

Pouso meu olhar sobre teu corpo
como a trafegar estradas neutras,
que buscam melhor conduzir-me
para maior ardor propiciar.

Pouso meu olhar sobre teu corpo
como a festejar caravelas aflitas,
que buscam melhor atrair-me
para maior Atlântico navegar.

Pouso meu olhar sobre teu corpo
como a espargir letras benditas,
que buscam melhor distrair-me
para maior alfabeto cantar.

Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

POEMA PARA A EXORCISTA

A minha vida aparece sem condão e
monótona
aos que me vêem
no trabalho árduo da oficina
em manhãs apuradas.
A verdade é muito distinta.
Cada noite eu saio e discuto
contra um espírito malévolo
que, se valendo de
máscaras - cão, grilo,
nuvem, chuva, vagabundo,
ladrão - trata de
se infiltrar na cidade
para estragar a vida humana
semeando
a discórdia.
Apesar dos seus disfarces
sempre a descubro
e a espanto.
Nunca conseguiu enganar-me
nem vencer-me.
Graças a mim, nesta cidade
ainda é possível
a felicidade.
Mas os combates nocturnos
deixam-me exausta e ferida.
E para compensar a minha
guerra contra o inimigo,
peço uns restos
de afecto e de amizade.


Nova Iorque
novembro de 2001


Mario Vargas Llosa
Tradução de Pedro Calouste


O escritor peruano Mario Vargas Llosa foi o vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2010. O prêmio foi anunciado nesta quinta-feira na sede da Academia Sueca, em Estocolmo.
Nascido em 1936, o novelista e ensaista é considerado um dos maiores nomes da literatura em língua espanhola. Entre suas principais obras estão “A Casa Verde”, “Lituma nos Andes” e “A Cidade e os Cachorros”.
Ele já foi condecorado com o Prémio Cervantes em 1994 e o Prêmio Príncipe das Astúrias de Letras Espanha em 1986, entre outros prêmios, e é membro da Real Academia Española desde 1994.(Notícia extraída do blog 'Substantivo Plural'.)

Após o anúncio, o secretário permanente do Nobel, Peter Englund, qualificou o peruano como "um contador de histórias divinamente talentoso", cujos livros conseguem tocar os leitores. "Ele é um dos grandes escritores do mundo de fala espanhola", constatou.
Citado por agências de notícias internacionais, Englund disse que Vargas Llosa estava em Nova York nesta quinta-feira e foi informado por telefone. Ele está lecionando neste semestre na Universidade Princeton, em New Jersey. "Ele ficou muito, muito feliz", contou Englund. "E muito tocado."
Ao pronunciar-se sobre o prêmio, o autor peruano declarou: "É um reconhecimento à língua em que escrevo, a língua espanhola, e à literatura latino-americana. A verdade é que não esperava, foi uma surpresa total, uma surpresa muito agradável, claro", declarou. (Ricardo Gozzi)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

VÃ LAVRAR


Este estranho, permanente,
relacionar-se solitário
com as palavras todas:
rotas, avessas, devassas,
rudes, covardes, doces,
ardentes, ousadas.

Um sempre puro escarcéu
sabendo mil vezes a mel,
e mais do que tantas a fel.

Este perene perseguir o Dizer,
tantas vezes inutilmente,
tantas vezes sabido tolo tentar,
tanto divagar sem verbo Querer.

Este submeter-se à tarefa
de costurar redes à noite, na calmaria,
retendo o cio da alma,
driblando nortes de bússolas.

Enquanto cardumes de espias,
aguardam a hora da ventania:
para devorá-las, aviltá-las,
tingi-las de sangue:
espalmar a falácia do ideal bem-querer.

Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

FARRA DE CORES

A Primavera se avizinha:
raízes e letras
exigem sua hora e tempo.

Caminho pelo jardim.

Espinhos do alfabeto,
Azaléias da alma insone.

Caminho entre seixos.

Busco o perfeito aquário,
Onze-horas e algas
orientam os peixes.

Pedras, nuvens e letras noir.
Tudo anuncia a Primavera:
discreta, Almíscar, esperta.

Em torno dos homens
entorna suas flores, perfume,
brisa, maresia e malícia.

Palavras azuis sobre o mar.
Sobre o marfim, música,
frases, orquídeas raras.

II

A Primavera caminha anônima
como homens e mulheres na rua,
afoita com tantas luas.

A Primavera espraia
graça entre samambaias,
escala buganvílias, assanha roseiras.

Espio, solene, sapos e flores;
espreito folhagens, livros antigos.

Refaço e traço veredas,
espelho versos contra o sol.

Entre seios de nuas mulheres,
abrigo meus olhos úmidos:

Vermelhos antúrios
em fins de madrugada.

Calculo frações primas e veras;
pernas, seios, trepadeiras e lírios.

Estrelas avessas da manhã,
casuarinas de sonhos.


III

A Primavera se avizinha:
enlouquece românticos e céticos,
com sua farra de cores;
seu derrame de felicidade.


Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

“Imêmore”


Ah! O aroma das
laranjeiras em flor...
Me remete a tempos imemoriais,
tão antigos quanto a palavra
imemorial...

Quando tudo era grande,
fantástico e misterioso.
Hoje o que era grande
ficou pequeno,
o que era fantástico
virou banal
e o que era misterioso
perdeu o encanto.

A primavera
que está chegando
é apenas a estação do ano
ou é também a
estação da alma?
Não importa.
O canto do sabiá me leva
novamente
a tempos imemoriais!


Autoria desconhecida
-Portugal-1949-

'Ao menos uma vez em toda a vida'


Ao menos uma vez em toda a vida
A Verdade passou pela alma de cada homem...
Passou muito alto, muito vaga, muito longe,
Como os fantasmas, que mal chegam, somem,
Passou em sombra, num vôo refletida
No espelho da água trêmula de um rio...

Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade !
Passou uma só vez em toda a vida
E sempre dessa vez a alma dos homens
Estava distraída,
E não reconheceu na sombra desse vôo
A ave ideal que planava no alto azul...
Quando volveu os olhos para a altura
Ela já ia desaparecendo...

Dela nada ficou no olhar triste dos homens,
Nem a lembrança de seu vulto incerto...
Passou uma só vez em toda a vida !
Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade !
E esse vôo,
Que nunca mais voltou no mesmo céu deserto,
Nem ao menos deixou a sombra dentro d`água...


Raul de Leoni
de Melhores poemas
(1895-1926)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

'CONTRAFORTES'

(Foto by Fernando Campanella)

Neste abismo da beleza suspenso
que mal se me pergunto:
se não na terra, em qual
dos sete céus me encontro?

(Fernando Campanella)

FOOTHILLS

at this beauty abyss
suspended
what evil if I ask:
if not on Earth, in which
of the seven heavens
would I find myself?

Fernando Campanella

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Condorismo

Ah, quem me dera
voar como a nuvem no ar,
ar de primavera!

Delores Pires

terça-feira, 21 de setembro de 2010

'Primaveras'



I

A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.

Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.

Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.

A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.

Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: - Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!


1° de Julho - 1858


Casimiro de Abreu
(4 de janeiro de 1839 — 18 de outubro de 1860)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

DESCRENDO. . .


Hoje não encontrei horizontes. . .
não ouvi seus acenos
não toquei em suas brisas
não vislumbrei suas promessas
não aspirei suas carícias
não sorvi suas entregas


Por que será?
. . . pavoneiam-se de suas cores?
. . . já não me amam mais?
- levaram-nos
ou eu os perdi?


Oh! minhas inspiradoras auroras!
Oh! meus confidentes poentes!



Alviana Tzovenos
In: Buscas de Infinitos

REDES AO MAR

Em busca dos horizontes
serei sempre
pescadora de ilusões.


Em minha rede quimera
dormirão meus longos verões
criança sonho . . . primavera.


E nas manhãs e tardinhas
das minhas águas azuis,
meus doces verdes cardumes
os beijarei numa espera . . .


ao entoar minha Paz
abraçando noites-perfumes!



Alviana Tzovenos
In: Buscas de Infinitos

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Calaram-se os pássaros


Calaram-se os pássaros.
Regressou enferma
a ave que rasgou a sombra
das árvores em pleno verão
sem encontrar o caminho para a chuva.

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

DAS TARDES, SETEMBRO RENASCE


Trazidas das tardes, setembro renasce,
da fala da moça à janela sombria,
da torre tão pútrida voz da abiose ,
das águas do rio deste brilho do dia.

Eira sem beira das frontes das casas,
estio que tangido da terra postada,
dos cães deste abril sós urrando do prado,
dos ossos sem fôlego quase das asas.

Da moça franzina cá parva de olhar,
das aves sem branco do céu destas nuvens,
dos tons azuis mortos das frontes das pontes.

Passagem dos rios desta pedra do mito,
tinir quase breve das folhas das margens,
passadas dos passos dos mortos do séquito.

Eric Ponty
(Minas Gerais)

'IX'


Setembro floresce em sapucaias,
vórtice de abelha
em aroma roxo-lilás.
Logo a flor será cumbuca de fruto.
Bendito o tempo entre floração e semente,
doce a amêndoa
do beijo que eu consigo roubar.


F Campanella
da série 'Efemérides'

´'MAR DE SETEMBRO'


Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
Fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
doceis, leves,só
alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam;
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado.


Eugénio de Andrade
- In Mar de Setembro

terça-feira, 14 de setembro de 2010

VENTOS DO LESTE



Esta brisa de outono
me traz um poema de Bashô,
desperta aromas maduros ,
nascentes e frutos,
traz também o viés da vida,
fogo e cinza,
folha ressequida:

amplo leque de pretéritos
e prenúncios.

Este vento nos pinheiros do leste
tocou poetas longínquos
e agora ressoa minhas cordas:

já não sou o pária da noite,
o grande órfão do mundo.

Este sopro traduzido,
transportado a laranjeiras,
paisagens do meu quintal,
abre-me o grande livro da alma:

minha natureza é mãe e madrasta
de meus versos.

Fernando Campanella

MAGNÓLIAS


1


Tome-as nas mãos
e saberás por que magnólias
são fatais.


2


Se rasgares a pétala,
notarás fissuras no tecido.
Lâmina carnosa, cristal dissolvido em nuvem.
Nas nervuras há poros do mais puro branco.
Alvíssimo alvo.
Verás contudo que é Siena a cor de fundo.
Dessas calcinadas terras se colorem
as flores mortas.


3


À noite secretam perfumes.
Polinizam o ar.
Elas, ventres fecundos.


4


Perdidas as pétalas, resta íntimo caroço.
Sementes vermelhas brotam súbito,
lisas, alongadas.
Fava incendiada, rubra é a cor que requeres
para o mistério de seu viço alvar.

5


Depois da chuva alguma água restará no tenro cálice.
Mas não muita.
se contemplando te detiveres,
sucumbirás à excessiva luz.
Evita navegar na clausura desse mar.


Antonio Fernando De Franceschi
In: Tarde Revelada Poemas

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

'ÚLTIMA HISTORIA'


A terra viaja no céu –
O céu é dono da terra.


O mar é dono da terra –
A terra é dona do mar.


O barco viaja no mar –
O mar é dono do barco.


O homem viaja no barco –
O barco é dono do homem.


A alma viaja no homem –
O homem é dono do céu!



Homero Frei
In: Lado Alado

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

DA PROPENSÃO À PONTUALIDADE


Não é que eu tenha nascido em outra parte.
Muito menos, que me preocupe o tempo
em sua beleza de abstrata redondez lunática.
É que os minutos me mordem os calcanhares
formigas enfurecidas urgindo-me a fazer
a não me deter em função dos finais.
É muito certo
a pressa é um agulheiro na calma do insone
uma muralha na planície dos sonhos
um bebedouro de ilusões que amiúde falham
Não é que me avassale o medo do atraso
porém me esvai a magia
perdi as fórmulas os hieróglifos as poções
a chave dos segredos que guardava
as coisas que o sábio Fritz confiou a meus ossos
Confesso
Cada vez sou menos eu
E mais o que vivi.
Por isso é que me apuro
para não chegar tarde
ao que realmente fui
quando tudo acabar.


Consuelo Tomás Fitzgerald
(1957, Bocas del Toro, Panamá).


'De la propensión a la puntualidad'

No es que haya nacido en otra parte.
Mucho menos, que me preocupe el tiempo
en su belleza de abstracta redondez lunática.

Es que los minutos me muerden los talones
hormigas enfurecidas urgiéndome a hacer
a no detenerme en función de los finales.

Es muy cierto
la prisa es un agujero en la calma del insomne
una muralla en la planicie de los sueños
un abrevadero de ilusiones que a menudo fallan

No es que me avasalle el miedo a la tardanza
pero la magia se me acaba
he perdido las fórmulas los jeroglíficos las pócimas
la clave de los secretos que guardaba
las cosas que el sabio Fritz confió a mis huesos

Lo confieso
cada vez soy menos yo
y más lo que he vivido.

Por eso es que me apuro
para no llegarle tarde
a la que realmente he sido
cuando todo se acabe.

Consuelo Tomás

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

”Socrática”


Qual a hora mais esperada?
- A que precede o primeiro encontro.

Qual a luz mais cruel?
- A que vem depois do primeiro desengano.

Qual o verso mais belo?
- O que nos esclarece um enigma interior.

Qual o benfeitor mais alto?
- O que ao prestar um benefício
consegue que o favorecido
se julgue favorecedor.

Qual o caráter mais mesquinho?
- O que vos recorda os favores prestados.

Qual o maior sossego?
- O do homem
que já não espera nada dos homens.

Qual o bem mais apreciado?
- Aquele que, depois de esgotar a Esperança,
julgávamos já inacessível.

Qual a surpresa mais sublime?
- A daquele que encontra a Deus
dentro de si mesmo.


Amado Nervo
in Plenitude
(Tepic, Nayarit 27 de agosto de 1870-México
Montevidéu,Uruguay- 24 de maio de 1919)

domingo, 29 de agosto de 2010

Um Minuto na Noite

A cidade dorme
o sono da madrugada.
Nenhum ser vivo
àquela hora silente.
O mundo noturno
cala-se...
Bares cerrados.
Apenas luminárias
com propagandas
de refrigerantes
permanecem despertas,
exibindo letras vermelhas
e grandes.
A cidade está
só,
com os sentimentos
da noite.


Delores Pires
in A Estrela e a Busca

SIMPLICIDADE


Singela e formosa
Num torvelinho de espinho
Desabrocha a rosa.

Delores Pires
"O Livro dos Haicais"

Haicai


Um raio de sol
pendurado no horizonte
ao cair da tarde.

Delores Pires
Pétalas de Ipê (2002)

Haicai


Iludindo o tempo
só ao relógio se engana
mas não a si mesmo.


Delores Pires
Passeio ao Luar (2002)

Haicai


Paisagem fugaz.
Pela janela do trem
mundo viajante.

Delores Pires
Flor de Café

Haicai do mestre Delores


Entre vagens secas
os cachos de chuvas-de-ouro.
Voa a mamangaba.

Delores Pires
Pétalas de Ipê (2002)

Delores Pires nasceu na cidade de Criciúma, Estado de Santa Catarina, radicando-se desde menino no interior do Paraná.
O contato com a natureza no ambiente rural, na adolescência, propiciou-lhe os subsídios e a influência na adoção da forma haicai que viria a praticar mais tarde.
Adotou Curitiba como sua cidade, onde se formou em Letras pela Universidade Católica do Paraná. Como tal, é professor de língua portuguesa e de literaturas afins.
Realizou o curso de Mestrado em Letras, com área de concentração em Teoria da Literatura, também pela Universidade Católica do Paraná, apresentando a dissertação O Universo do Haicai.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

"Crânios humanos somem..."

Crânios humanos somem pilha a pilha,
onde, invisível, mínguo na distância,
mas num bom livro e em jogos de criança,
direi, ressuscitando, que o sol brilha.

Vorôniej, maio de 1935

Ossip Mandelstam,
In:Cadernos de Vorôniej

"Roubar-me os mares..."


Roubar-me os mares, ares, vôo, tolhendo
meus pés na terra atroz – foi o bastante?
Mas, malgrado o teu cálculo estupendo,
não me arrancaste os lábios murmurantes.

Vorôniej, maio de 1935


Ossip Mandelstam
in:Cadernos de Vorôniej

Não é a lua


Não é a lua, não, é um mostrador.
Que culpa tenho se as estrelas baças
Me parecem leitosas, sem fulgor?

Batiúshkov não merece piedade.
"Que horas são?", perguntaram-lhe uma vez,
E ele só respondeu: "Eternidade."


Ossip Mandelstam
in "Não é a lua"
Trad. de Augusto de Campos.
CAMPOS, Augusto. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.

*Óssip Mandelstam nasceu em Varsóvia, Polónia, em 1891, descendente de uma família judia. Cresceu na cidade imperial de S. Petersburgo, onde frequentou a prestigiada escola Tenishev, seguindo mais tarde para Paris (1907-08) e para Heidelberg (1909-10) com intenção de estudar Literatura Francesa. A partir de 1911 estudou Filosofia na Universidade de S. Petersburgo, curso que abandonou para se dedicar à escrita. Publicou o seu primeiro livro, Kamen (Pedra) em 1913. Embora tivesse inicialmente apoiado a Revolução, a censura sobre os artistas e a execução de Gumilev, em 1921, afastaram Mandelstam do regime. Este afastamento obrigou-o a viajar para províncias distantes como jornalista. Em 1933 Mandelstam escreveu um poema satírico sobre Estaline. A «insolência» só não lhe trouxe a pena de morte devido à protecção de Bukárine. Mas no ano seguinte, Mandelstam foi preso e viveu alguns anos exilado, em companhia de sua mulher Nadyeshda. Regressaram a Moscovo no início de 1938. A 2 de Agosto Mandelstam foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados. O último perído da sua vida é mal conhecido. Sabe-se que esteve na prisão de Butyrskaya em Moscovo à espera de seguir para Kolyma, na Sibéria. Terá morrido a 20 de Dezembro, na barraca n.º 11 do campo de trânsito 3/10 de Usvitlag, entre os presos acusados de «actividades contra-revolucionárias.»
(Excerto da nota biográfica contida em Fogo Errante – antologia poética, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio D’Água, Julho de 2001.)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Do meio dia à eternidade


Eu percorro por estas ruas tão vazias,
olhando-me através desses transeuntes,
predizendo-me entre essa paisagem,
com meu olhar do meio dia à eternidade.

Vazio nestes instantes que divago,
percebo-me como ave necessária,
seja por entre as árvores plumárias,
dilúvio cotidiano pela estrada.

O mar apoderava o desespero,
floresta dos rebanhos brios difíceis,
então as águas eram superfície!

As corridas das ondas entre ventos,
estuário dessa alma tão longínqua,
do jovem rio estava ali nas fontes.


Eric Ponty

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

'INSÔNIA'


É silencio na calçada.
A noite avança
e os meus olhos
cansados,
amigos das madrugadas,
buscam memórias
veladas.
Tristonha
debato-me no leito
qual ave ferida no peito.
Não vejo o que sinto
mas
sinto tudo o que vejo.


Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivências

(Poetisa, professora e artista plástica de Porto-Alegre RS,
nascida em 1.929)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

ADEUS'


Adeus, fugitiva, enfuna
livre asa prá fuga e voo -
impenetrável a runa
que o teu nome encerrou.

Tenho de ir andando,
volto a meus jardins soturnos,
ouço já cisnes cantando
do canavial dos mares noturnos.

Adeus, dono da tristeza,
da tortura e do chorar,
perdido - a profundeza,
mais longe, a pôr e tirar.

Gottfried Benn
Trad.:Vasco Graça Moura

domingo, 15 de agosto de 2010

Para aprender a voar


Para aprender a voar nos bastava
o começo e o fim
de uma linguagem pessoal,
em que as mãos, impacientes,
despissem a paisagem
e, apenas por um instante,
se tornassem asas.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996