A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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segunda-feira, 29 de julho de 2013

''Pressinto a hora dos naufrágios''

 
Sobre a linha do horizonte sulco 
a tristeza que se apodera da noite 
pela extrema possibilidade da mudez. 
Pressinto a hora dos naufrágios 
em meus lábios onde rangem 
os cascos dos barcos sem rota. 
Tenho nos joelhos a turbulência das marés. 
E fico com os dedos arroxeados 
como se remasse dias a fio 
até amainarem os ventos. 
Quando a cegueira me exigir, 
posso olhar a minha sombra sem medo do luto. 

Graça Pires 
De A incidência da luz, 2011

''Com o silêncio emboscado na voz''


Com o silêncio emboscado na voz
uma mulher atravessou um impossível retorno
rente a horários sem sentido.
Na linha das marés o magoado vértice das sombras
desenhava a solidão dos barcos destruídos.
Como se um frio de aço mutilasse todas as esperas.

Graça Pires
De ''Uma vara de medir o sol'', 2012

'DE VENTOS'


(Bouquet of spring flowers, Renoir)

Tua beleza, inconsciente de si,
Me puxa em seus encantos
Para o seu leito.
Mas o que fazer de tua beleza
Senão armá-la em vaso
Para nutrir a mesa?

(Senão sofrer/gozá-la em doses
de solidão noturna e densa?)

Como um jardineiro de ventos
Prefiro ver-te
Hera galgando muros
Erva tecendo pastos
Ou aérea flor da memória.

Amar tua beleza , não mais,
Como cor que não apreendo
Rio que não estanco
e que passa.


(F.Campanella)

terça-feira, 23 de julho de 2013

''DISTÂNCIA''


Levanto-me e olho o céu
numa tarde de primavera sob o voo
Estranho! A estrela maior
é uma coisa minúscula, pequenina
que a folha do vidoeiro pode cobrir.
– – –
Distância, é a distância
que torna o que é eterno suportável
Ainda bem que lança tão grande sombra,
a pequena coisa que está próxima…
das galinholas.



Hans Børli
(1958)

[Fotografia retirada do Google ; Galinhola d'agua]

quarta-feira, 17 de julho de 2013

***

 
Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um voo de ave
E me entristeço!

Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?

Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade

Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh’alma alheia

Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do voo suave
Dentro em meu ser.

( Fernando Pessoa )

''No ciclo eterno das mudáveis coisas''


No ciclo eterno das mudáveis coisas
Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
Porém a mim nem me acha diferente
Nem diferente deixa-me, fechado
Na clausura maligna
Da índole indecisa.
Presa da pálida fatalidade
De não mudar-me, me fiel renovo
Aos propósitos mudos
Morituros e infindos.

Ricardo Reis
heterônimo de Fernando Pessoa

''Como Sou''



Sou brumas de calmarias
embaladas em melodias,
diáfanas esperanças
nas mãos que me afagam

Transgrido normas,
quebro paradigmas
sou açoite do tempo,
prece dos arrependidos

Silencio a alma
nas asas de cada instante,
sou fruto da descrença,
poder da indiferença,
caminhos itinerantes

Realizo travessias
coloridas de venturas,
acalentando a magia
tal dores do pensamento
nos sabores de muitas lágrimas

Conceição Bentes

***

 

Tu és o que eu supunha,
és as lições que aprendi sobre delicadeza,
és a ternura que precisei por tanto tempo,
és tudo o que não sei e quero aprender.

Pela vida, mesmo sem o saber, estavas lá,
pois te busquei em cada rosto,
procurei teus gestos entre os mais raros gestos,
pude te ver em cada olhar que me olhava.

Mesmo ainda não estando,
mesmo quando eu não estava,
já aprendíamos para o instante
em que te pude ver e ternamente te olhar.

(Igz Furiati)


Poema da amiga Ignez Furiati

***

 
Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não.
E a chuva cai levemente
(Porque *Verlaine consente)
Dentro do meu coração.

Fernando Pessoa, 15-11-1930.
de Poesias Coligidas

*O poeta faz menção a Paul Marie Verlaine, poeta francês.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

***



Amanhece.
O Sol come a neblina
e começa a pintar
caminhos,
árvores,
casinhas,
animais,
pessoas…
E a cada um
lhe põe sombra.

Humberto Ak’abal
De Tecedor de palavras
p. 45 - Melhoramentos Livrarias

sexta-feira, 5 de julho de 2013

"POEMA"



III

Hoje não vou colher
nem laranjas, nem flores, nem amoras.
Vou ver crescer o dia
no redondo das frutas,
e ouvir sem pressa o canto destas aves.
Serão as mesmas de ontem?
Um dia a mais que fez de mim, que faz?
E as aves que cantavam,
se não são estas, onde
estão? O canto apenas se repete?
Aquela que ontem via
o que ora vejo não é mais em mim?
Então eu me renovo
como as águas e as plantas?
Sou outra ou me acrescento ao que já sou?
No entanto, é tudo igual,
embora eu saiba que só na aparência;
e meu prazer me vem
de estar sentada aqui,
detendo um tempo que se não detém.

[ Marly de Oliveira]

Marly de Oliveira (Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo 1935 — Rio de Janeiro, 1 de junho de 2007) foi uma poetisa brasileira.
Era a ex-mulher do poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, João Cabral de Melo Neto. Foi também professora de língua e literatura italiana, assim como de literatura hispano-americana.

''Minha felicidade vem de quando estou só''




Minha felicidade vem de quando estou só
e ninguém me interrompe no poema,
essa espécie de transfusão
do sangue para a palavra,
sem qualquer estratagema.
A palavra é meu rito, minha forma
de celebrar, investir, reivindicar:
a palavra é a minha verdade,
minha pena exposta sem humilhação
à leitura do outro,
hypocrite lecteur, mon semblable.

[Marly Oliveira]

''Parecia um pássaro''




Parecia um pássaro, um frêmito
de folha, uma libélula,
uma coisa evanescente
e volátil:
não era nada, um pensamento / de amor? /
que se ensaiou na sombra
e desapareceu qual rã.

[Marly de Oliveira]

''POEMA''



IV

Na tarde sem soçobro o azul instala
sobre as coisas um líquido silêncio,
e a mim me deixa só, desapartada,

na observância fiel de um obsidente
solilóquio amoroso, propiciado
por tua ausência e minha infausta mente.

Do jugo não imposto e incerto estado
ninguém me livra, que este mal de agora
ainda é o bem em mal transfigurado

por obra de distância e da memória,
não do acaso ou do sonho, não da sépia
que às vezes cobre o chão de melancólicas

paisagens. Que noturnas, vãs, repletas
formas criadas pelo imaginar
venturoso (que nem o sonho aquieta)

sobem de mim a ti, crescem no ar,
sem perguntas, propósitos, certezas,
e enrolam-se em si mesmas devagar,

impregnadas de límpida escureza.
Em torno a solidão não desampara,
antes fecunda a antiga natureza

que dorme a tanto mito entrelaçada

[Marly de Oliveira]