A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

Seja bem-vindo. Hoje é
Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

terça-feira, 27 de março de 2012

ODE AO OUTONO



1

Estação de neblinas, doce e fecunda!
Companheira íntima do sol, com ele vais,
Quando ele abençoa e inunda
De frutos as videiras junto dos beirais;
Pra vergar de maçãs a musgosa macieira
E a fruta por inteiro tornar madura
Pra inchar as cabaças, prà avelã ficar gorda
Com uma doce amêndoa; há flores com fartura
Pra que a abelha as tenha sempre que queira
E pense haver dias quentes a vida inteira,
Pois o verão seus favos pegajosos transborda .

2

Quem não te viu já de fartura rodeada?
Às vezes, quem te procura sob outros céus,
No chão dum celeiro encontra-te descuidada,
O vento da limpeza ergue-te os cabelos.
Ou num rego meio-ceifado, em fundo torpor,
Tonta do perfume das papoulas, parada
A foice, junto da ceara a ceifar te demoras;
Às vezes, tens direita, qual rebuscador1,
A pesada cabeça, ao passar a ribeira;
Ou, junto de a prensa, observas tranquila
A cidra a gotejar no fluir das horas.

3

Que é das canções da Primavera? Onde hão-de estar?
Esquece-as, tua música também tem valor –
Nuvens orlam o dia morrendo devagar
Tingem os restolhos de sua rósea cor;
De os mosquitos a dorida serrazina,
Crescente, entre os salgueiros do rio se ouvia,
Diminuindo, se o vento fica mais brando;
Os cordeiros balem na próxima colina;
Cantam grilos, alto, mas cheios de harmonia,
Num quintal, pisco vermelho assobia,
E as andorinhas chilreiam nos céus em bando.

John Keats (1795-1821)

in «Antologia de Poesia Anglo-Americana – De Chaucer a Dylan Thomas », edição bilingue, pp. 239 e 241, Selecção, tradução, prefácio e notas de António Simões, edição “Campo das Letras”, Outubro de 2002.

segunda-feira, 26 de março de 2012

"TEATRO DE SOMBRAS"


Façamos um acordo, sombra minha:
brindaremos a cada noite às mariposas
e sob o pálio das Três Marias tomaremos
porres de dracenas e jasmins;

terei assim a face que quiseres
- dos párias, dos deserdados,
dos medos que arquitetam a noite -
teu servo, e personagem, porei em cena
o fantasma que bem buscares.

Mas, atenta, ouve-me, quando a lua,
após a mais discreta vênia,
sonolenta de seu palco se afasta,
e tão logo os galos cantem,
ensaiando o dia, debulhando a madrugada,
já de ti me disperso, não mais te enxergo.

Recolherás tua cauda, então, saciada e quieta,
adormecerás nossa ressaca, sombra minha,
atrás, bem atrás de mim.

Fernando Campanella

"Do lado da manhã"


Do lado da manhã revi o mar,
trazido no olhar de quem partia.
Erectos, os mastros, desnorteiam
as gaivotas que ostentam uma âncora
pintada nas penas.
Um perigoso vento marítimo
inclina-se sobre a noite caiando, de negro,
a deriva dos búzios.
Os barcos ancorados nos meus braços,
impedem-me de abraçar o mar.
O voo impreciso dos veleiros
torna errante a espuma das conchas.
Mas que mar é este, anterior às dunas,
só conhecido pelos náufragos?

Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007


Agora no Brasil o livro da poetisa portuguesa , Graça Pires,

"Uma vara de medir o sol"

publicado pela Editora Intermeios -
Casa de Artes e Livros, de Joaquim Antonio Pereira.
Rua Luís Murat, 40 - Pinheiros, São Paulo, SP 05436-050
-
Um livro que não pode faltar na biblioteca de quem ama poesia contemporânea de ótima qualidade.
Encomende seu exemplar através de :

www.intermeioscultural.com.br

domingo, 25 de março de 2012

'NOTICIAS LIVRES'


Chove um dia de maravilhas interiores
neste jardim que tudo compreende
e onde está fincada a alma das plantas,
apaziguada.
Sabe-se que os olhos estão acesos
e o dialogo que interromperam
se continua com a chuva.
Mais do que se pode conhecer,
permanece nos pequenos ramos:
ainda mais soberanamente,
que agora lavados.

Quando a chuva parar, outra dança
(irregular, porém perfeita)
vai ressurgir de insetos e zumbidos.

Este é o jornal do jardim de hoje.


Jorge Wanderley
In: Antologia Poética

sábado, 24 de março de 2012

"DOR OCULTA"


Quando uma nuvem nômade destila gotas,
Roçando a crista azul da serra,
Umas brincam na relva, outras tranquilas
Serenamente entranham-se na terra.

E a gente fala da gotinha que erra
De folha em folha e, trêmula, cintila,
Mas, nem se lembra da que o solo encerra
Da que ficou no coração da argila!

Quanta gente que zomba do desgosto mudo,
Da angústia que não molha o rosto
E que não tomba, em gotas, pelo chão.

Havia de chorar, se adivinhasse,
que há lágrimas que correm pela face
e outras que rolam pelo coração!

Guilherme de Almeida
in Messidor

quarta-feira, 21 de março de 2012

"Baú"


Seguir com pés envoltos
por panos de luz,
entender o dia
como um baú de possibilidades.
E sorrir,
porque o tempo nos encontra
e é mais recomendável
que estejamos livres,
suaves
e iluminados

Wilmar José Matter
(Escritor gaúcho)

terça-feira, 20 de março de 2012

"MONÓLOGO"


Há restos de tempos. . .
folhas soltas aos ventos
aos luares despertos.


Há restos de tempos. . .
noites lúgubres.
. . . momentos aos cantares da vida.


Há restos de tempos. . .
perdidos nos templos
das memórias aos sonhos.


Há restos de tempos.
em mim,
desfolhados, molhados.
. . . céus de chuvas sobre folhas
amarelas, esquecidas deformadas.



Alviana Tzovenos
In: Buscas de Infinitos

segunda-feira, 19 de março de 2012

Respirar...

(Tela de Anouk Lacasse)


Respirar, invisível dom – poesia!
Permutação entre o espaço infinito
e o ser. Pura harmonia
onde em ritmos me habito.


Única onda, onde me assumo
mar, sucessivamente transformado.
De todos os possíveis mares – sumo.
Espaço conquistado.


Quantas dessas estâncias dos espaços
Estavam já em mim. E quanta brisa
Como um filho em meus braços.


Me reconheces, ar, nas tuas velhas lavras?
Outrora casca lisa,
céu e folhagem das minhas palavras.


Rainer Maria Rilke
In: Poesia - Coisa
Tradução: Augusto de Campos

"A nós , nos cabe andar"



A nós , nos cabe andar.
Mas o tempo, os seus passos,

são mínimos pedaços
do que há de ficar.

É perda pura
tudo o que é pressa;
só nos interessa
o que sempre dura.

Jovem, não há virtude
na velocidade
e no voo aonde for.

Tudo é quietude:
escuro e claridade,
livro e flor.


Rainer Maria Rilke
In: Poesia - Coisa
Tradução: Augusto de Campos

PÁSSARO SOLITÁRIO


Ceifaram-me as asas
antes de as sentir

Como
abri-las
senão imaginando?


Casimiro de Brito
In: Ode & Ceia
Poesia 1955-1984

domingo, 18 de março de 2012

"RECORRENTE"



Às vezes, a dor de chuvas passadas
cai em mim tão fina, reelaborada,
a tanto de não ser eu mais que uma bolha
na espuma da tarde molhada.

(Fernando Campanella)

quinta-feira, 15 de março de 2012

RIO VERDE


Para melhor compor as madrugadas
também os galos acordavam cedo.
O vento ao passar pela varanda
contava à folhagem um segredo.
A hora era imensa e tão pouca
ó rastro da manhã que já desanda
no tempo, despetalando sim cada
palavra frágil flor de nossa boca.
Os colibris voavam bailarinos
sobre as sépalas verdes do futuro.
A brisa prenuncia assim os finos
dedos da chuva fria sobre o muro.
Então o relógio para, a vida zera.
Desfaz-se a neblina de quimera.

Lenilde Freitas

MÚSICA SURDA



Como num louco mar, tudo naufraga.
A luz do mundo é como a de um farol
Na névoa. E a vida assim é coisa vaga.

O tempo se desfaz em cinza fria,
E da ampulheta milenar do sol
Escorre em poeira a luz de mais um dia.

Cego, surdo, mortal encantamento.
A luz do mundo é como a de um farol...
Oh, paisagem do imenso esquecimento.


Dante Milano
• In Obra Reunida
Organização e estabelecimento do texto,
Sérgio Martagão Gesteira
Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2004

AO TEMPO


Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida


A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?

Dante Milano
Publicado no livro Poesias (1948). Poema integrante da série Sonetos e Fragmentos.
In: MILANO, Dante. Poesias. Pref. Ivan Junqueira. Petrópolis: Ed. Firmo, 1994. p.41. (Pedra mágica, 1)

CONTA-ME OUTRA VEZ

(Tela de Jack Ventriano)

Conta-me outra vez, é tão bonita
que não me canso nunca de a ouvir.
Repete-me de novo, os dois da história
foram felizes até à morte,
ela não foi infiel, ele nem
se lembrou de a enganar. E não te esqueças,
apesar do tempo e dos problemas,
continuavam a beijar-se cada noite.
Conta-me mil vezes, por favor:
é a história mais linda que conheço.

Amalia Bautista

CUÉNTAMELO OTRA VEZ

Cuéntamelo otra vez, es tan hermoso
que no me canso nunca de escucharlo.
Repíteme otra vez que la pareja
del cuento fue feliz hasta la muerte,
que ella no le fue infiel, que a él ni siquiera
se le ocurrió engañarla. Y no te olvides
de que, a pesar del tiempo y los problemas,
se seguían besando cada noche.
Cuéntamelo mil veces, por favor:
es la historia más bella que conozco.

Amalia Bautista

LAS HORAS PASAN LENTAMENTE...


Las horas pasan lentamente
Como el desfile de un entierro
Llorarás la hora en que lloras
Que huirá también rápidamente
Como pasan todas las horas

Guillaume Apollinaire
(Versión de Andrés Holguín)

"A la santé, V"
''Que lentement passent les heures''
Que lentement passent les heures
Comme passe un enterrement

Tu pleureras l'heure où tu pleures
Qui passera trop vitement
Comme passent toutes les heures
 
Originale en français
de
 
Alcools (v)  de  Guillaume Apollinaire

'Tempos-juncos'


Na margem do lago,
Onde as pedras são tempo,
Onde o tempo é de pedra.
No lago da margem,
Tempos, juncos,
Na margem do lago,
Santos, juntos.

Velimir Khlébnikov
(Tradução: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman).

domingo, 11 de março de 2012

Como um lamento



Tento esboçar o tamanho da lua cheia
no vértice das empenas viradas a nascente.
Tento calcular a geometria do mar
que bate nos limites do molhe
como um lamento adivinhado.
Tento seguir as pombas que invadem as cidades
com rumores de solidão colados nas asas.
Trago a enfeitar-me o decote pérolas de areia e sal.
A surpreendente claridade das águas
lava meus olhos da sugestão de tormenta
que guardo por hábito sobre o rosto.


Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

"ESTRANHA SOMBRA"


A noite entra
sem levantar os olhos.

A lâmpada acesa
é mero lampejo
— sorriso sem alegria.

No desenho do prato
sobre a mesa
um pássaro cruza o horizonte
onde rubra declina a luz do dia.

Por que sangra
o céu desta paisagem?

Por que resmunga
lá fora a ventania?

Lenilde Freitas

sábado, 10 de março de 2012

"PONTO DE FUGA"


"...Earth's the right place for love..."
("...A terra é o lugar certo para o amor...")
(Robert Frost)


Fitam me olhos de folhagens
molhados de chuva no jardim.
Não sei se me dizem algo
ou se trago carências de um sim.


Se imagem é degredo, ignoro -
tão míope o infinito
onde paralelas haverão de se unir.


Fernando Campanella

quinta-feira, 8 de março de 2012

Caio Fernando Abreu


Te desejo uma fé enorme
em qualquer coisa, não importa o que,
como aquela fé que a gente teve um dia,
me deseja também uma coisa bem bonita,
uma coisa qualquer maravilhosa,
que me faça acreditar em tudo de novo,
que faça a cada um de nós acreditar em tudo outra vez.”

Caio Fernando Abreu

terça-feira, 6 de março de 2012

"Desejo"


desejo de ser eu
e de não ser

de viver
e morrer


de partir
e ficar


- desejo de
não desejar ...


Anrique Paço D'Arcos
(1906-1993- Lisboa)

domingo, 4 de março de 2012

"Os Dois Horizontes"


Dois horizontes fecham nossa vida:

Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro,—
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.

Dois horizontes fecham nossa vida.


Machado de Assis,
in 'Crisálidas'