A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

''Ano novo''





A quem direi dessa nova
manhã que tinge o horizonte
de uma cor que se renova?
Ao que em toda a caminhada
teve a alma crucificada
e, já sem alma, resiste,
embora não tenha nada,
além do sonho, que é menos
do que nada?
Ou, antes, ao que sentia
estar o mundo já morto
quando mal amanhecia?
Ao pária, ao triste, ao mendigo?
Dá-la a todos? A ninguém,
para que morra comigo
e todos acabem sem?
Ah, não saber a quem dá-la,
não saber a quem levá-la,
mensagem, flâmula, palma,
um sim nítido que fosse
até o sonho, até a alma
já perdida
no que há de morte na vida!  



Emílio Moura
In: Itinerário Poético
Noite Maior 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

"Quando um homem quiser"


 Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
...És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

José Carlos Ary dos Santos
(Lisboa, 7 de Dezembro de 1936 — Lisboa, 18 de Janeiro de 1984)
-Portugal-

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

''Anseio''


Ah, eu quisera ser aquela árvore
coberta pelas garças brancas de vôo incerto!
Árvore plantada pelo acaso
à margem do rio enorme!
Árvore de frondes anantos,
desejosa, quase humana,
que se arrepia ao contato
das penas dos papagaios que passam!
Árvore que tem o grande amor do vento
e que da sombra para o gado descansar.
Árvore estéril, árvore bela, árvore fresca,
árvore amante de todos os crepúsculos,
no solstício do inverno ou do verão,
Árvore do pensamento das outras árvores!

- Adalcinda Camarão,
do livro "Poesia do Grão-Pará"
(seleção e notas de Olga Savary). Rio, Graphia, 2001.

''SORTILÉGIO''


Há um pensamento chorando dentro da noite erma.
Há um pensamento virgem, solitário,
apalpando a floresta,
roçando no rio largo,
por onde bóia, em cada estirão,
o sortilégio da mãe-d’água.

O jurutai canta para a lua cheia,
Os grilos arremedam o assobio do vento,
As nuvens sacodem chuva e tristeza
só porque eu quero luar nos meus pés.

E vem lá de dentro da mata,
lá de onde eu não sei como está,
a voz rouca do silêncio amazônico
consolando as umbaubeiras perdidas
que a trovoada vergou.

Há um pensamento chorando dentro da noite esquecida…
Descendo pela correnteza,

pedindo a mão das estrelas…
Há um pensamento com sono e sem poder dormir…
Marinheiro, vê se tu podes compreender
esse pensamento de mulher.

Adalcinda Magno Camarão Luxardo
Poesia do Grão-Pará
(Rio, Graphia, 2001, seleção e notas de Olga Savary)