A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

Seja bem-vindo. Hoje é
Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

''Ponto de fuga''


Fitam-me olhos de folhagens
molhados de chuva no jardim.
Não sei se me dizem algo
ou se trago carências de um sim.

Se imagem é degredo, ignoro –
tão míope o infinito
onde paralelas haverão de se unir.

Fernando Campanella

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Excerto do nº 3 - Livro do Desassossego -

[...] Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o elétrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer![...]

Do Livro do Desassossego
Bernardo Soares 

(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

''TEMPO''



Tempo essência do Espaço eterno. Tempo - fio
Da vida, mas que enleia a vida e a morte agoura,
Ligando o que hoje cria à destruição vindoura:
Cada berço nascente a um túmulo vazio!

Ilude se é veloz, engana se é tardio,
Porque só se lhe altera a força imorredoura,
Quando encanece o campo ou quando o campo aloura,
Causando o outono, o inverno, a primavera e o estio.

Transforma as cousas: cerra um astro e outro descerra.
Mas, sem que a vida enerve e sem que a morte afoite,
Mantém a coexistência orgânica da Terra.

Desvenda, aos poucos, tudo o que o mistério acoite.
E ao Sol sempre cingindo o mundo, o mundo encerra
No eterno ciclo - a aurora, o dia, a tarde, a noite.

Luís Carlos
de Columnas -(1920)
(p. 21.)

"AH!"


Ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!
Ah se pelo menos o coração não tivesse
[memória!
Como seria menos linda e mais suave
minha história!

Antonio Carlos F. de Brito - Cacaso
In ‘Lero-lero’ (2002)

''Poema de passar o domingo.''


 Num sol sem angustias
esquento a pele
abro os poros
abro as portas
entro eu e o sol
seus raios
expulsando o escuro
e abrindo a casa
aos meus passos de volta
e aos passos incipientes
do domingo

há poeira nos móveis
limpados a pouco
em suas curvas
há poeira em meus olhos
cerrados pela clara imposição
do sol, seus raios
pela fuga das sombras

caminho para dentro
enquanto o domingo
desenrola sua teia sobre
as costas indecisas deste vate
sobre os ombros impacientes do dia...

Georgio Rios

''ENTRE O SEMPRE E O NUNCA''


Entre o sempre e o nunca
é que as coisas acontecem
um segundo sem fôlego
quando menos se espera
o mundo transforma-se

afundado em si próprio
sete corações abaixo
é que de repente se imagina
uma época em que as pedras
começam a sangrar.

Pia Tafdrup
de Tradução colectiva coordenada por Laureano Silveira
de Ponto de Focagem do Oceano, Quetzal, 2004

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

''AO SAL''


 
 "Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria."
(Pablo Neruda)

Nega-me tua alma –
esta alma, mesma, que me furtas

e é ao degredo irremediável
que me remetes.

Nega-me tua chama
que arde no delírio dos deuses,
teu anjo, que ressona na fluidez dos lagos,
tuas asas desdobradas,

nega-me, nega-me tua espuma
que regurgita no sonho das aves
(eu sou o teu infante pássaro)

e é sem minhas fontes que me deixas,
sem meu ar extasiado.

Nega-me teu mar, tua tempestade,
o sonho e a fantasia,
e me deixas ao relento, ao sal amargo
de cada dia.

Nega-me teu olhos e já não me atento

que a felicidade embora utopia das sombras
é também certa luz incidente
que só de teu olhar
meus olhos como cúmplices pressentem.

Fernando Campanella

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

''PRECE''



Eu queria cantar o mundo,
com voz bem afinada,
e fazer ressoar meu canto
em cada canto,
em cada estrada.

Eu queria tocar qualquer instrumento,
que vertesse som,
que fluísse música com harmonia
e fazer cada corpo vibrar
ao compasso da minha melodia.

Eu queria ser pintor,
espalhar cores, muitas cores,
manchar telas com habilidade,
retratar a natureza, os sentimentos,
alegrar olhos e almas
e transmitir paz, serenidade.

Eu pedi a Deus tudo isso,
pois queria enternecer corações,
encher a vida de alegria,
colorir pensamentos
e despertar emoções...

Antes mesmo de nascer,
eu pedi para ser esteta...
Ah! como eu pedi a Deus!...
Pedi tanto, tanto,
que Deus me fez poeta.

Adélia Maria Woellner

domingo, 11 de novembro de 2012

''POR AÍ ALÉM''


Deixa um momento o asfalto, vem comigo,
entre jogos de sombra e claridade
conhecer a cintura da cidade.

Respira a plenitude do silêncio
destes montes e montes sucessivos
que ignoram a dor dos seres vivos.

Mergulha no mistério vegetal
da mata exuberante, onde as lianas
e as bromélias se calam, soberanas.

E na imobilidade do saveiro
diante da igrejinha, vai sentindo
o que é doçura e paz na hora fluindo.


Carlos Drummond de Andrade
in ‘Poesia Errante ‘

''ACORDAR, VIVER''



Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém pode, a vida é pétrea.


Carlos Drummond de Andrade.
In 'Poesia Completa'

''A PALAVRA''

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.


Carlos Drummond de Andrade,
in 'A Paixão Medida'

''QUALQUER TEMPO''



Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.

Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver.


Carlos Drummond de Andrade,
in 'A Falta que Ama'

''A vida tem cores''





A vida tem cores
nas cores da vida,

em aquarela tingida
...desenha luz e som!
 
A vida tem cores
no beijo dos pássaros,
num adeus sem perfumes
... no pólen das flores!

A vida tem cores
numa palavra amarga,
num céu muito amplo
... presença que tarda!

A vida tem cores
num abraço amoroso,
num sorriso que chega
... num crepúsculo choroso!

A vida tem cores
nos sonhos vividos,
nos mares inquietos
... encontros perdidos!

A vida tem muitas e muitas cores,
as que ninguém pode ver,
quando minh'alma chora e ri
pela felicidade
que eu posso conter!

A vida tem cores
mesmo num coração morto!

Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivencias

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

''AERODINÂMICA''

A tarde às vezes me convida
para um exílio nos campos

entre contornos de montes
ante o silêncio de uma ermida.

A uma luz inclinada
por um certo sopro de outono
às vezes a tarde me quer voo
em transparências de azul
por entre as nuvens à deriva.

A tarde, soberana, irreverente,
se esquece às vezes
que não tenho o descompromisso
das aves, que sou gente.

(Fernando Campanella

''MEMORIAL''


 Aqueles túmulos me contam
que meus mortos vivem comigo,
que apenas deixaram invólucros
por algum tronco, suas vestes
ao esquecimento da estrada.

Um dia cantaremos também,
na memória, como as cigarras.

  Fernando Campanella

(Fotografia de Fernando Campanella)

domingo, 28 de outubro de 2012

''Soneto da porta''



Quem bate à minha porta não me busca.
Procura sempre aquele que não sou
e, vulto imóvel atrás de qualquer muro,
é meu sósia ou meu clone, em mim oculto.

Que saiba quem me busca e não me encontra:
sou aquele que está além de mim,
sombra que bebe o sol, angra e laguna
unidos na quimera do horizonte.

Sempre andei me buscando e não me achei:
E ao pôr-do-sol, enquanto espero a vinda
da luz perdida de uma estrela morta,

sinto saudades do que nunca fui,
do que deixei de ser, do que sonhei
e se escondeu de mim atrás da porta.


Ledo Ivo
de  "Plenilúnio".
 In: Poesia completa (1940-2004)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

''MENSAGEM''


Onde estiveres, além do arco-íris,
do mundo e das estrelas e até do

infinito se ele finito fosse.

No meu imaginário encontrei-me contigo,
parece até que o tempo está no mesmo ponto.
Que pena não poder te enlaçar, que castigo,
teu cheiro não sentir, porém, ouve este conto.

Quase nada mudou, pássaros cantam iguais,
as guerras continuam e há vírus mortais.
Aumenta a estupidez com raras exceções,
sempre buscando o ser ilusões e emoções.

As condutas humanas ainda são banais,
morre-se por tolices em ações bestiais.
Por sua perfeição a mulher não mudou,
sofrendo por amar ou porque não amou.

Cantos de parabéns nas festas continuam,
as modas vão e voltam e os desejos flutuam.
A juventude acha que domina a história,
porém todos se vão, apenas uns com glória.

Walter Dimestein
 Homenagem ao médico e poeta pernambucano, Walter Dimenstein,
(16.12.1924 / 25.10.2009).

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

"Não deves entender a vida"

 
Não deves entender a vida,
seria então como uma festa.
Deixe que cada dia aconteça,
como uma criança que passa
e a cada dor
com muitas pétalas se presenteia.

Juntá-las e guardá-las
para a criança não tem sentido.
Retira-as suavemente dos cabelos,
onde tão facilmente se prenderam,
retoma os jovens e amados anos
de novo em suas mãos.

Rainer Maria Rilke

(Arte : Amanda Cass)

"Moro entre o dia e o sonho"


   Moro entre o dia e o sonho.
Onde cochilam crianças, quentes da correria.
Onde velhos para a noite sentam
e lareiras iluminam e aquecem o lugar.

Moro entre o dia e o sonho.
Onde tocam claros sinos vesperais
e meninas, perdidas da confusão,
descansam à boca do poço.

E uma tília é minha árvore querida;
e todos os verões que nela se calam
movem outra vez os mil galhos,
e acordam de novo entre o dia e o sonho.

Rainer Maria Rilke

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"Canção amiga"

(Tela de Emile Munier)

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

Carlos Drummond de Andrade

12 de Outubro, Dia da Criança !

domingo, 7 de outubro de 2012

''O NEGRO FALA SOBRE RIOS''


(UM POEMA DE LANGSTON HUGHES)
TADUÇÃO DE FERNANDO CAMPANELLA

Conheço os rios:
rios ancestrais como o mundo
e mais remotos que o fluxo de sangue humano
em veias humanas.


Minha alma tornou-se profunda como os rios.


Banhei -me no Eufrates quando a aurora
era ainda criança.
Construí minha choupana às margens do Congo
que me adormecia com suas canções de ninar.
Voltei meus olhos ao Nilo e acima dele
alcei as pirâmides.
Ouvi o canto do Mississipe quando Abe Lincoln
até Nova Orleans por ele navegou
e vi seu coração lamacento dourar-se por inteiro
a cada declinar do sol.


Conheço os rios,
rios nevoentos, imemoriais.


Minha alma tornou-se profunda como os rios.

(Tradução de Fernando Campanella)


THE NEGRO SPEAKS OF RIVERS
(Langston Hughes)

I've known rivers:
I've known rivers ancient as the world and older
[ than the flow of human blood
[ in human veins.

My soul has grown deep like the rivers.

I bathed in the Euphrates when dawns were
[ young.I built my hut near the Congo and it lulled me
[to sleep.
I looked upon the Nile and raised the pyramids
[ above it.
I heard the singing of the Mississippi when
[ Abe Lincoln went down to New Orleans,
[ and I've seen its muddy bosom turn all
[ golden in the sunset.

I've known rivers:Ancient, dusky rivers.

My soul has grown deep like the rivers.

sábado, 6 de outubro de 2012

Vida que se desvive
por viver, vida viva,
maravilha sedenta
coroada de ecos.
Cada murmúrio pulsa
atento a cada folha,
silêncio suspendido
por uma boca eterna.

A si mesmo sussurra
o céu canções de festa,
música a sós, e sol,
água, luz, ar e erva.

Som que ilumina fundo,
incessante milagre:
eu que me sinto ouvir,
a voz que faz memória.

A árvore na terra,
a canção sob o sol,
as folhas lá no céu,
o vento em meio às folhas.

Repleto de frescura,
meu sangue reconhece
esse frigir alado:
não há mais que universo.


Rodolfo Alonso
Tradução de José Jeronymo Rivera

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

''MÍNIMOS''



"um sopro
ninguém viu
de onde vem
ninguém sabe
aonde vai"

um vírus
quase
nada

um
ponto
na
enseada

um quantum
envieza o olhar


uma artéria
e Minas não tem bocas
e Inês é folha morta

um dedo de luz
na chuva oblíqua
um arco de cores
instala

um vôo desanda a rota

ninhos desovam

um triz
frio polar
oceanos que resvalam

torres se movem
pés desarvoram

espelhos que descamam
não consigo me achar

um mínimo
e já não me sou

de repente
algo me sonha

(Fernando Campanella)

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

''Fui eu''


(Tela de Emile Munier)
 
Fui eu essa menina que me espia
- melancólico olhar, sereno rosto,
postura fixa e o todo bem composto -
no retrato que o tempo desafia.
Fui eu na minha infância fugidia
de prazeres ingênuos, e o desgosto
de sentir tão efêmera a alegria
bem depressa trocada em seu oposto.
Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa
e tudo altera nem sequer deixou
um grão de infância feito esmola escassa.
Fui eu: e na figura só ficou
o olhar desenganado, na fumaça
em que a criança inteira se mudou.

Fernando Py
in '70 poemas escolhidos'
 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

'O MOMENTO DIVINO'



Quando o crepúsculo caiu,
foi que notaste como as coisas todas são infinitas...

Quando o silêncio te envolveu,
foi que sentiste as pulsações mais profundas do teu ser...
ser, aquilo que está dentro da casca, na interioridade.

E então sonhaste
que o sangue te batia nas artérias
ainda sob o impulso primordial
do Instante da criação...

E que o teu peito ofegava
ainda sob cansaço
das migrações dos povos ancestrais...

E te pareceu que chegavas do fundo dos tempos
como um esclarão das gerações inumeráveis,
que viesse explorando a estrada indefinida,
e ao fim da caminhada
trouxesse ainda nos olhos
a mesma interrogação ansiada
da partida...

E te pareceu que respiravas
ao ritmo das marés montantes e vasantes
ao ritmo das montanhas,
ao ritmo do arfar da Terra toda,
quando mais pesa sobre ela, pela noite,
a mudez do infinito ardendo de astros!...

Tasso da Silveira
(MURICY, 1936, p. 167)

''DIÁLOGO''


Debruçados sobre a vida,
indagamos seus mistérios
e raramente alcançamos
suas respostas cifradas.

Ao calor do interrogar-se
nuvens ocultas esgarçam-se,
a luz em nós amanhece.
Helena Kolody 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

'FLORES'




Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura.

Sophia de Mello Breyner

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

'LEMBRA?'




Lembra o tempo
em que você sentia

e sentir
era a forma
mais sábia de saber

E você nem sabia?


Alice Ruiz

'REQUIEM'



Não escreverei sobre ausências.
Ausência é bandeira de nada.
É ter partido
em direção de um país sem lodo nem lama.
Onde a identidade se faz de afeto.
E a dúvida é poço entreaberto
e o coração um fruto de semente madura.

Ausência é só lembrar, é só lembrar!

Ausência é só lume de esquecimento.
É só limo de eternidade.
É só flor de certeza e agonia.
Só o corpo impedido, só surdo desejo,
só pele mudada em terra,
só tempo feito areia.

Ausência é só lembrar, é só lembrar!

LINDOLF BELL
In Requiem, 1994

''Hora Grave''



Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.

Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.

Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.

Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.

Rainer Maria Rilke
(Tradução: Paulo Plínio Abreu)

'Solidão'


A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios...

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

''O Último Poema''


Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação

Manuel Bandeira

sábado, 15 de setembro de 2012

'A incidência da luz '


Monótonos se tornam os gestos com que refaço,
grão a grão, o celeiro dos dias, mil vezes ardilosos,
na arca onde se guarda o pão
sem a pressa da fome em ávidas bocas.
Pela janela iluminada vê-se a jarra das mimosas
e o lenço colorido preso à haste do candeeiro.
É o instante em que as sombras dançam
em redor da noite perseguindo as mínimas variações
da luz no amarelo excessivo dos malmequeres
e nas asas das borboletas presas nas traves do tecto.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

'PRESERVAÇÃO'


Chama-se liberdade o bem que sentes,
Águia que pairas sobre as serranias;
Chamam-se tiranias
Os acenos que o mundo
Cá de baixo te faz;
Não desças do teu céu de solidão,
Pomba da verdadeira paz,
Imagem de nenhuma servidão!

Miguel Torga
In: Antologia Poética

domingo, 9 de setembro de 2012

"Olhos"

Dois pássaros voam,
de um leve azul inebriados.
De onde os vejo
Só há o espelho quieto de um lago.
E já não sei o que é mais visível
se o que enxergo, as aves,
com meus olhos,
ou se aquelas flautas moventes
sincronizadas,
que sonho
com os olhos quietos do lago.

Fernando Campanella

' As Coisas Transitórias'


Irmão,nada é eterno, nada sobrevive.
Recorda isto, e alegra-te.

A nossa vida
não é só a carga dos anos.
A nossa vereda
não é só o caminho interminável.
Nenhum poeta tem o dever
de cantar a antiga canção.
A flor murcha e morre;
mas aquele que a leva
não deve chorá-la sempre...
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Chegará um silêncio absoluto,
e, então, a música será perfeita.
A vida inclinar-se-á ao poente
para afogar-se em sombras doiradas.
O amor há-de ser chamado do seu jogo
para beber o sofrimento
e subir ao céu das lágrimas ...
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Apanhemos, no ar, as nossas flores,
não no-las arrebate o vento que passa.
Arde-nos o sangue e brilham nossos olhos
roubando beijos que murchariam
se os esquecêssemos.

É ânsia a nossa vida
e força o nosso desejo,
porque o tempo toca a finados.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Não podemos, num momento, abraçar as coisas,
parti-las e atirá-las ao chão.
Passam rápidas as horas,
com os sonhos debaixo do manto.
A vida, infindável para o trabalho
e para o fastio,
dá-nos apenas um dia para o amor.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Sabe-nos bem a beleza
porque a sua dança volúvel
é o ritmo das nossas vidas.
Gostamos da sabedoria
porque não temos sempre de a acabar.
No eterno tudo está feito e concluído,
mas as flores da ilusão terrena
são eternamente frescas,
por causa da morte.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

'TODA VIDA É RASCUNHO PERMANENTE '



XXIII

Toda vida é rascunho impermanente
manuscrito com tinta azul lavável.
Não divise futuros, não invente
eternidades nem se torne escrava

de horizontes perdidos e apagados.
Somos mortais, por isso celebramos
casuais centelhas de imortalidade.
Por mais que dure e se transvie em ramos,

uma árvore tem a sua hora.
Se a chuva a curva, sofre mas não chora,
senão, dizem, até se alegra e gosta

sem se dar ao trabalho de sorrir.
Deus, amor, lhe dê olhos de menina
que a paisagem de hoje descortinem.

Tite de Lemos
In: LEMOS, Tite de. Caderno de sonetos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

Biografia: Tite de Lemos

Newton Lisboa Lemos Filho (Rio de Janeiro RJ, 1942 – idem, 1989). Foi poeta, letrista., dramaturgo e jornalista.
Publicou seus primeiros livros de poesia, Marcas do Zorro e Corcovado Park, em 1979. No final dos ...
anos de 1970 produziu três peças teatrais: A Serra, A Liça e A Bola. Trabalhou como jornalista, nos anos seguintes; foi redator do jornal carioca O Globo. Em 1988 foi lançado seu livro Caderno de Sonetos e, em 1989, ocorreu a publicação póstuma de Outros Sonetos do Caderno. No ano de 1970, escreveu em parceria com Gutemberg Guarabira, Luiz Carlos Maciel, Sidney Miller, Paulo Affonso Grisolli e Marcos Flaksman, o musical “Alice no país divino-maravilhoso”, do qual participou Sulei Costa, que viria a se tornar sua parceria musical mais constante. O espetáculo estreou no Teatro Casa Grande, no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. No início da década de 1970, junto a Luís Carlos Maciel, Torquato Neto e Rogério Duarte, foi editor da revista literária Flor do Mal. A ilustração que escolhi faz referência ao campo de sua poesia que gravitava entre o clássico e o experimental.

domingo, 26 de agosto de 2012

''JUBILAÇÃO''


(Painting by Alfred Gockel)


Deus me deu um amor na madureza...
(Carlos Drummond de Andrade)

Concedeu-me Deus um amor aos cinquenta
quando Eros põe as barbas de molho
já transposto o vale das primícias
e das tormentas;

estendeu-me para leito o alvo linho,
acercou-me dos anjos de Jó,
deu-me calhas, de anteparo, para a tempestade.

Coroou-me de alvíssaras, no retorno,
e de minhas cismas fez um Éden redivivo -

pôs a arder em mim a chama mesma
dos que não tomam o santo nome do tempo
em vão.

Para o gozo deu-me romã e serpente,
e a vontade infinda, a fome grata de menino.

Fernando Campanella

'ELEGIA N° 2'


Cheiro de flor ao sol. Setembro.

Alada flor,
atingida em pleno vôo,
tombou no asfalto.

O vento fareja suas penas macias,
e só ergue-lhe as asas,
a querer ressuscitar se vôo
ágil e sereno.

Algo belo e frágil
a ser preservado
evolou-se.
E falta.


Helena Kolody
de Trilha Sonora






'Colheita"


Nas asas do sonho arde o meu desejo,
Confiando ao vento minha chama clara,
Que corre o espaço profundo colhendo doçuras.
Sonhar é preciso-gratuito em qualquer lugar,
Mas há que saber trabalhar a quimera,
Acordar ação em hora certeira,
Entender a magia e os limites do tempo.
Sonho é semente de horizonte:
Pede plantio, trabalho, espera.

Stella de Sanctis

terça-feira, 21 de agosto de 2012

***



se um dia tudo for cinza, lembra do vento, ele assobiará uma canção azul...

Denison Mendes

''SONHANDO''

(Tela de Bruno Amadio )

Faço poemas
como criança que chora
como navio que se despede
como pássaro alvejado.


Faço poemas
na paisagem das horas
ao entardecer dos sonhos.


Faço poemas
sem desencanto
como uma vela morrendo
ou como um louco
desenhando painéis
de falsas caricaturas.


Faço poemas crianças
razão de um viver
sabor de fruto
amargo ou doce.


Faço poemas
como um maestro
iludindo-me
de todas as melodias.

Faço poemas.


Alvina Nunes Tzovenos
In: Palavras ao Tempo

terça-feira, 14 de agosto de 2012

'E N T A R D E C E R'


O crepúsculo desce! A tarde finda. . .
Que drama ante os meus olhos se descerra!
O sol, cansado da batalha infinda,
As pálpebras de luz no ocaso, cerra. . .


Silente a tarde a imensidade brinda!
Infinita saudade me soterra! . . .
Ante esta quadra misteriosa e linda,
Recordo-me dos céus de minha terra!


Olho o poente que aos poucos se avermelha!
Nesta contemplação a alma se ajoelha,
Deslumbra ao calor das grandes ânsias


E sequiosa do sol de outra paragem
Integra-se à beleza da paisagem
E mergulha na bruma das distancias! . . .



Jansen Filho
In: Obras Completas

"PÔR DE SOL"


Resfolga a Natureza! Em convulsões tamanhas,
Desce a gaze do céu envolvedora e fina. . .
O espaço esconde a luz da tarde nas entranhas
E sorve as emoções do dia que termina. . .

A cigarra desata um rasgo que fascina
Entre as copas azuis das arvores estranhas!...
A tarde cede! O céu desmaia! O Sol declina
E tomba, ensangüentando a crista das montanhas!...

Espalham-se pelo ar as queixas mais sentidas
De bronzes a gemer, na hora da Ave-Maria,
Num dobre sepulcral de nênias repetidas!


Do côncavo do azul rola a sombra envolvente
E a grande procissão dos astros se inicia
Para o enterro do sol no mausoléu do Poente!



Jansen Filho
In: Obras Completas

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

'SOMA'


De que vale ir somando a própria idade?
certo é somá-la, em dobro, no cansaço
do dia-a-dia lento, na verdade,
qual se escorresse em milenar espaço.

A compreensão da inutilidade
do gesto amigo, do fraterno abraço,
alonga o dia, alonga a soledade,
envelhecendo o coração e o passo.

O tempo, indiferente, traz enganos,
faz os minutos parecerem anos
e num segundo um século caber.

Mas, nada importa a idade acontecida:
importa apenas a canção da vida,
a letra e a melodia de – Viver!



Graciette Salmon
In: Ciranda

''SOLILOQUIO DE SEGISMUNDO''

(Painting by Kathy Ostman-Magnusen)

Sueña el rey que es rey, y vive
con este engaño mandando,
disponiendo y gobernando;
y este aplauso, que recibe
prestado, en el viento escribe,
y en cenizas le convierte
la muerte, ¡desdicha fuerte!
¿Que hay quien intente reinar,
viendo que ha de despertar
en el sueño de la muerte?

Sueña el rico en su riqueza,
que más cuidados le ofrece;
sueña el pobre que padece
su miseria y su pobreza;
sueña el que a medrar empieza,
sueña el que afana y pretende,
sueña el que agravia y ofende,
y en el mundo, en conclusión,
todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.

Yo sueño que estoy aquí
destas prisiones cargado,
y soñé que en otro estado
más lisonjero me vi.
¿Qué es la vida? Un frenesí.
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño:
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son.


LA VIDA ES SUEÑO, Pedro Calderón de la Barca

(Painting by Kathy Ostman-Magnusen)

''SOBREVIVÊNCIA''



Tudo passa, dor e riso,
venturas em róseo friso,
males que em roxo debruam.
Passam deuses, criaturas,
horas azuis ou escuras,
nuvens que alto flutuam.
Tudo passa, gesto e face,
mas a esperança renasce
. . . e as rosas continuam.


Graciette Salmon
In: Ciranda

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"A tarde me convida..."


A tarde às vezes me convida
para um exílio nos campos
entre contornos de montes
ante o silêncio de uma ermida.

A uma luz inclinada
por um certo sopro de outono
às vezes a tarde me quer voo
em transparências de azul
por entre as nuvens à deriva.

A tarde, soberana, irreverente,
se esquece às vezes
que não tenho o descompromisso
das aves, que sou gente.

Fernando Campanella

terça-feira, 31 de julho de 2012

''VIII''


Trânsfuga de agosto –
um prurido rouco –
tanto de mim
em ipês amarelos e roxos.

Fernando Campanella
Poema da série 'Efemérides"
(Atualizado)

'VER'


O dia. Arcos da manhã
em nuvem. Riscos de luz
como vidros arriados.

O claro. A praia armada
entre a sintaxe do verde.

Áreas do ar. Aves
navegando as lajes
do azul.

Antônio Carlos Secchin