A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

Seja bem-vindo. Hoje é
Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O cisne

Este cansaço de passar como que atado
a coisas que ainda não foram feitas,
parece o caminho incriado do cisne.


E o morrer, esse desapegar-se
do fundo em que diariamente estamos,
seu tímido abandonar-se às águas


que mansamente o acolhem e por serem
felizes e já passadas, onda a onda,
sob seu corpo se retraem;


então, firme e tranqüilo,
com realeza e crescente segurança,
abandona-se o cisne ao deslizar.


Rainer Maria Rilke
Tradução de Dora Ferreira da Silva



'The Swan''

This laboring through what is still undone,
as though, legs bound, we hobbled along the way,
is like the akward walking of the swan.

And dying-to let go, no longer feel
the solid ground we stand on every day-
is like anxious letting himself fall

into waters, which receive him gently
and which, as though with reverence and joy,
draw back past him in streams on either side;

while, infinitely silent and aware,
in his full majesty and ever more
indifferent, he condescends to glide.

Rainer Maria Rlke
Translated by Stephen Mitchel

Wolga

WolgaBist Du auch fern:
ich schaue Dich doch an,Bist Du auch fern:
mir bleibst Du doch gegeben ---
Wie eine Gegenwart, die nicht verblassen kann.
Wie meine Landschaft liegst
Du um mein Leben.
Hätt ich an Deinen Ufern nie geruht:
Mir ist, als wüsst ich doch um Deine Weiten,
Als landete mich jede Traumesflut
An Deinen ungeheuren Eisamkeiten.


Rainer Maria Rilke

Volga


Por longe que estejas: posso ainda te ver,
Por longe que estejas: tu permanecerás
Qual presença que não pode empalidecer,
Qual paisagem, a mim sempre contornarás.
Se tuas margens eu jamais tivesse tocado,


Mesmo assim saberia tua imensidão:
Ondas de meus sonhos me teriam levado
À beira de tua infindável solidão

Rainer Maria Rilke

Photography :
The Volga (Russian: Во́лга; [ˈvolɡə] ( listen)) is the largest river in Europe in terms of length, discharge, and watershed. It flows through central Russia, and is widely viewed as the national river of Russia. Out of the twenty largest cities of Russia, eleven, including the capital Moscow, are situated in the Volga's drainage basin. Some of the largest reservoirs in the world can be found along the Volga. The river has a symbolic meaning in Russian culture and is often referred to as Volga-Matushka (Volga-mother) in Russian literature and folklore.

Rainer Maria Rilke -(Praga, 4 de dezembro de 1875 — Valmont, Suíça, 29 de dezembro de 1926)

Amo as horas noturnas do meu ser em
que se me aprofundam os sentidos;
nelas fui eu achar, como em cartas velhíssimas,
já vivida a vida dos meus dias
e como lenda longínqua e superada.

Delas eu aprendi que tenho espaço
para uma segunda vida, vasta e sem tempo.

E por vezes me sinto como a árvore
que, madura e rumorosa, sobre uma campa
realiza o sonho que o menino foi
(em volta do qual apertam suas raízes quentes)
e perdeu em tristezas e canções.


Rainer Maria Rilke
(In ‘Poemas As Elegias de Duíno Sonetos a Orfeu’,
Tradução de Paulo Quintela, ( 2001)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Samuel Beckett - (Dublin, 13 de abril de 1906 — Paris, 22 de dezembro de 1989)

Que faria eu sem este mundo sem rosto sem perguntas
Onde o ser só dura um instante e onde cada instante
Transborda para o vazio o esquecimento de ter existido
Sem esta onda onde por fim
Corpo e sombra juntos se anulam
Que faria eu sem este silêncio poço fundo de murmúrios
Curvando-se a pedir socorro pedir amor
Sem este céu posto de pé
Sobre o pó do seu lastro

Que faria eu faria como ontem e como hoje
Olhando para a minha janela vendo se não estou sozinho
A errar e a mudar distante de toda a vida
preso num espaço incontrolável
Sem voz no meio das vozes
Que se fecham comigo.

Samuel Beckett
(tradução inédita de Mário Carvalheira)


Samuel Beckett (Dublin, 13 de abril de 1906 — Paris, 22 de dezembro de 1989)
foi um dramaturgo e escritor irlandês.
Recebeu o Nobel de Literatura de 1969. Utiliza nas suas obras, traduzidas em mais de trinta línguas, uma riqueza metafórica imensa, privilegiando uma visão pessimista acerca do fenômeno humano. É considerado um dos principais autores do denominado teatro do absurdo. Sua obra mais famosa tanto no Brasil como em Portugal é a peça Esperando Godot.


Samuel Barclay Beckett
was an Irish avant-garde novelist, playwright, theatre director, and poet. He wrote both in English and French. His work offers a bleak, tragicomic outlook on human nature, often coupled with black comedy and gallows humour.
Beckett is widely regarded as among the most influential writers of the 20th century.Strongly influenced by James Joyce, he is considered one of the last modernists. As an inspiration to many later writers, he is also sometimes considered one of the first postmodernists. He is one of the key writers in what Martin Esslin called the "Theatre of the Absurd". His work became increasingly minimalist in his later career.
Beckett was awarded the 1969 Nobel Prize in Literature "for his writing, which—in new forms for the novel and drama—in the destitution of modern man acquires its elevation". He was elected Saoi of Aosdána in 1984.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

ELA, SOB ÁRDEGO E CARO SUPLÍCIO

Vem, atrela, alavanca e mais ordena.
Encanta, sua, assanha, sobrenada.

Solta o verbo; profere a sagrada
E profana ordenha. Nada quero à toa.

Diz para, como quer, e a que veio:
Com a Voz que me alimenta e creio.

Sobe, monta, morde e crava alvos
Dentes de marfim sobre cada seio.

Escava, finca, amolda, avilta meu Ser.
Dispa-me; grita como quer e devo ceder.

Na ponta e pente da Língua, mata:
A sede, com força e flauta de seda.

Ata-me em visgo e sal ao céu em cio:
Resgata da morte aquele infinito rio.

Jairo De Britto,
em “Dunas de Marfim”

Que Há para Lá do Sonhar?


Que Há para Lá do Sonhar?
Céu baixo, grosso, cinzento
e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.

Mas que há para lá do sonhar?


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

''A montanha''


(Para Olavo Bilac, que faria hoje 146 anos)

Calma, entre os ventos, em lufadas cheias
De um vago sussurrar de ladainha,
Sacerdotisa em prece, o vulto alteias
Do vale, quando a noite se avizinha:

Rezas sobre os desertos e as areias,
Sobre as florestas e a amplidão marinha;
E, ajoelhadas, rodeiam-te as aldeias,
Mudas servas aos pés de uma rainha.

Ardes, num holocausto de ternura...
E abres, piedosa, a solidão bravia
Para as águias e as nuvens, a colhe-las;

E invades, como um sonho, a imensa altura,
- Última a receber o adeus do dia,
Primeira a ter a bênção das estrelas!

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A DO RIO, QUE BRANDA!

A do rio, que branda!
Mas que dura é esta...
A que cai das pálpebras
é uma água que pensa.

MANUEL DEL CABRAL
(1907 - 1992), poeta e escritor dominicano.
Grandes Vozes Líricas Hispanos-Americanas. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1990.
Tradução: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira

O JUNCO

Fazia já algum tempo
o junco no seu íntimo chorava em silêncio
Deve ter sido numa daquelas noites
Ele soube que todo o seu corpo estremecia

Não era o vento, nem o luar
O junco nunca sequer imaginou
que era o seu pranto silente a sacudi-lo

Nunca soube
que viver era
um pranto, secreto e silencioso


SHIN GYÓNG-RIM
(1935), poeta coerano.
'O Pássaro que Comeu o Sol' Poesia Moderna da Coréia. Pau-Brasil, São Paulo, 1993.
Tradução: Yun Jung Im

domingo, 11 de dezembro de 2011

Um crônica de Renata Carone Sbogia -



"...à mesa sentada.Observo as cadeiras. É final de ano...A casa não mudou. Mudei.Talvez a maior alteração: a interna. Vejo o porta-retrato-amarelado jovial.O olhar está cansado e nublado.Ouço fogos de artifícios comemorando...Pergunto para mim o que celebrarei nesta sala???O piano silencia-se. Abro a janela para dar evasão ao sufoco. Debruço-me no meu diário. Necessito escrever uma bela história sobre um passado recheado de recordações neste momento. A memória falha, mas a saudade lembra. Sentada à mesa. Contemplo um devaneio. Afinal, é final de ano e a casa 'não está mais cheia...está habitada de móveis e vazia de queridos.O barulho interno é ensurdecedor. Inquieto-me. Pergunto para o tempo se terei mais tempo para gastar pela vida.Aguardo a resposta.Deixo a porta aberta."


Renata Carone Sborgia
Crônica-trecho- 'À Mesa' - publicada--com carinho--Renata--dia 08/12/11

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Um vislumbre do fim - Homenagem aos 34 anos da morte da escritora Clarice Lispector, 09/12/0977

“Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”

Textos extraídos do livro ''Aprendendo a viver'', Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

CRISTAL


O tempo de viver tem seu cristal intato,
limpo de toda névoa e de tudo o que é forma
mesmo precária e vã de existir e sonhar.

Que relógio de sol lhe marca a intensidade,
o íntimo viver da contínua linguagem?

Que dia se abrirá como dourada lâmina
no obscuro girassol do amor nas madrugadas?

Mesmo que tudo apague ou dilua no pranto
a presença da morte, e a noite só convoque
a seu largo silêncio inadiável, como
gritar,gritar que há sempre um outro renascer,
uma esperança além nos desígnios da vida?

Que sombra permanece a não ser esta angústia,
esta tranqüilidade em que as coisas se deixam
conduzir, como um rio à procura de um mar?

Que sonho restará senão o desespero
de riscar com carvão este breve cristal?

Gilberto Mendonça Teles
In Sintaxe Invisível

AMORES


III

Não traçarei novos caminhos.
Entrelaçados, nascemos de raízes
mais fundas que saber.
És o que virá, se vieres.
E eu espero. Véspera da morte,
agora que o amor é mudo ou canta sem parar.
E o canto um silêncio parece
de tão fundo viver, que a vida já se despe
de si mesma, e avança sem andar:
bem longe
ou perto
aberto dom
de
amar.

IV

Não o que dizíamos
nem o que víamos,
mas o olhar desviado,
taça em demasia. E o que insistia:
os mesmos pórticos, a hora
na torre austera. E tudo fazíamos
para não ouvir, calado,
o passo do passado
e não olhar, à janela cega,
um vulto debruçado
o olhar isento
do amor que não se vê
e, em fuga, se extravia.


Dora Ferreira da Silva
Uma Via De Ver As Coisas
São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1973. 124 p.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Arco de cores


dobrei o labirinto
e lá ele estava
assente, como um farol
- não indaguei quando
nem quis saber por que -

melhor que as belezas
aconteçam assim
- um engaste do tempo -
um instante sem fim

Fernando Campanella
Do Blog do autor.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Harpa esquisita

Dói-te a festa feliz da verdade da vida...
Tanges da harpa, em teu sonho, almas e cordas, cantas,
Bóiam-te as notas no ar, a asa no azul diluída
E, assombrados, reptis – homens, não! tu levantas!

E apupilam-te a frente as mil pedras agudas
De ódios e ódios a olhar-te... E és um rei que as avista,
No halo, do Amor, que tens! se em colar as transmudas
Vais – um dervixe persa, o manto azul – Artista!

Inda olhar adormido abre, e é de ocre, e avermelha!...
Vem colar-te ao colar...e, oh! tua harpa esquisita
Plange... flora a zumbir, minúscula, que imita
A abelheira da Dor, em centelha e centelha.

E é a sombra... E o instrumento, a gemer, iluminado,
Como que à noite estrela um núbio corvo... E lindo
(Inda que as asas não no terás ao lado)
Por que os pétalos d’ouro, a haste de prata, abrindo,

Um lírio de ouro se alça?...Os passos voam-te, pelas
Ribas...Oh! que ilusões da flor, que tantaliza!
Sobe a flor? Sobes tu e a alma nas pedras pisa?....
Pairas... Em frente, o mar, polvos de luz – estrelas...

Pairas... e o busto a arfar – longe, vela sem norte.
Negro o céu desestrela, o seio arqueado: escuta.
No amoroso oboé solveja um vento forte
E, alta, em surdo ressoo, a onda betúmea e bruta.

A ânsia do mar, lá vem, esfrola-se na areia...
Seu líquido cachimbo é mágoa acesa, e fuma!
E chamas a onda: “irmã!”. E em fósforo incendeia
Na praia a onda do mar, ri com dentes de espuma.

De ametista, em teu sonho, uma antiga cratera
Mal te embebe – alegria! – alvos dedos de frio,
Eis se emperla o rosto e a prantear vês, sombrio
A onda crescer, rajar-se em brutal besta-fera!

Olhas... E, soluçoso, à música das mágoas
Amedulas o Mar e amedulas a Terra!
A sombra aclara... E é ver a dança verde de águas
E arvoredos dançando ao coruto da serra!

Gemes... Dedando o Azul as magras mãos dos astros
Somem, luzindo... Ao longe, esqueleta uma ruína
Em teu sonho a anervar argentina, argentina...
De ilusões, no horizonte, ossos brancos... são mastros!

Quente estrias a alma, à frialgem, nas cousas...
Que bom morrer! manhã, luz, remada sonora....
Pousas um dedo níveo às níveas cordas, pousas
E és náufrago de ti, a harpa caída, agora.

Ah! os homens percorre um frêmito. Num choro...
Move oceânica a espécie, amorosa, amorosa!
Mais que um dervixe, és deus, que morre, a irradiosa
Glorificação de ouro e o sol de ouro... à paz de ouro.


Pedro Kilkerry*

*Pedro Kilkerry (Salvador BA, 1885 – 1917) formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Bahia, em 1913. Na época, já atuava como colaborador das revistas Nova Cruzada, Os Anais, Via Láctea, A Voz do Povo e de vários jornais, entre os quais A Tarde, A Gazeta do Povo e Jornal Moderno, onde publicou a série de crônicas Quotidianas - Kodaks. Foi advogado e escriturário da Repartição de Contabilidade do Tribunal de Contas de Salvador. Poeta simbolista, Kilkerry não publicou livro em vida. Apenas em 1971 ocorreria a publicação póstuma de 36 de seus poemas, no livro ReVisão de Kilkerry, de Augusto de Campos. Para Campos, “Kilkerry não só compreendeu mais conscientemente que outros simbolistas o papel desempenhado na criação pelo subconsciente - mais tarde supervalorizado pelo Surrealismo - como soube levar mais longe a liberdade de associação imagética. Por outro lado, a capacidade de síntese, assim como a consciência das limitações da sintaxe ordinária, são mais agudas em Kilkerry do que em qualquer outro poeta do nosso Simbolismo”.

CÉUS NOSSOS


Céus nossos, terra nossa,
nossa é a graça,
a graça de existir por um momento.
Chamas, ensinai-nos a lição
de iluminar morrendo.

Péricles Eugênio da Silva Ramos*

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Para reflexão...


"Um homem só é nobre quando consegue sentir piedade por todas as criaturas". - Buda (563? - 483? A.C.)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A flor


Penso que cultivo tensões
como flores
num bosque onde
ninguém vai.

Cada ferida — perfeita —,
fecha-se numa minúscula imperceptível pétala,
causando dor.

Dor é uma flor como aquela,
como esta,
como aquela,
como esta.


Robert Creeley
(tradução: Régis Bonvicino)


The Flower



I think I grow tensions
like flowers
in a wood where
nobody goes.

Each wound is perfect,
encloses itself in a tiny
imperceptible blossom,
making pain.

Pain is a flower like that one,
like this one,
like that one,
like this one.

Robert Creeley

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Esboço de Cantiga


Subo e desço noite e dia,
noite dia subo e desço
por mil escadas de nuvens
no castelo em que padeço.

Subo com ramos de flores,
e a água dos jarros esqueço,
há mil escadas de nuvens
no trabalho que ofereço.

Ai, que trabalho tão grande
nas nuvens que subo e desço
não só por águas e flores,
mas recados de mais preço,

que me mandam, que me chamam,
neste sem fim nem começo,
castelo entre a vida e a morte
de um dono que não conheço.

Subo e desço noite e dia,
gasto-me e desapareço...
Ai que castelo tão alto,
tão alto e sem endereço!


1961


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

SOLIDÃO


A SOLIDÃO É COMO CHUVA

Sobe do mar nas tardes em declínio;
das planícies perdidas na saudade
ela se eleva ao céu, que é seu domínio,
para cair do céu sobre a cidade.

Goteja na hora dúbia, quando os becos
anseiam longamente pela aurora,
quando os amantes se abandonam tristes
com a desilusão que a carne chora;
quando os homens, seus ódios sufocando,
num mesmo leito vão deitar-se: é quando
a solidão com os rios vai passando...


Rainer Maria Rilke
In o livro das imagens, 1902


Solidão (outra tradução)


A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios...


©Rainer Maria Rilke
Tradução de Maria João Costa Pereira

TAL É A NOSTALGIA


Tal é a nostalgia: habitar sobre as ondas
e jamais ter abrigo no tempo.
E tais são os desejos: diálogo em surdina
da hora cotidiana com a eternidade.

Tal é a vida. Até o dia em que de ontem
se eleva a mais solitária dentre todas essas horas,
e, sorrindo diferentemente das irmãs,
em silêncio se oferece ao eterno.
Cala-se, como uma oferta ao eterno.

Rainer Maria Rilke
Tradução de Antônio Roberto de Paula Leite
In Antologia Poética

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

CHAFARIZ (Sob primaveras)



O chafariz do largo da praça tem lá sua história oficial , porém, no percurso de seu silêncio, foram guardando suas conchas um acervo humano que sua placa-epitáfio não diz. Assim estórias anônimas: lutos de amor, antigos carnavais, serenatas, burricos de carga (quem sabe a poesia sob aquelas luas tintas, abissais).

Aquelas bacias sob primaveras lavaram a roupa da plebe ; aplacaram aquelas taças a sede da imperatriz.

Secaram as pias , passaram conselheiros e generais, mas resistiram o granito e a pedra de cantaria .

Aqui, sob esta árvore-orquídea, no banco de ferro forjado, diante de sua muda memória me sento...

Minguaram as bicas, impunemente, mas de outras intrínsicas águas eu bebo. Rega-me o chafariz por dentro.


(Fernando Campanella , texto inspirado pelo chafariz da cidade sul-mineira de Cristina, topônimo em homenagem à imperatriz Dona Teresa Cristina, esposa de
Dom Pedro II)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

SINA

(Fotografia de Fernando Campanella)

Sempre ouvi dizer que poetas
têm um solitário destino.
(A solidão ora enlouquece
ora floresce.)
Não sei: ser poeta é minha sina
ou busco a poesia
que a solidão me atina.

Fernando Campanella, 1993.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Vandalismo

(Ogiva da Basílica de Saint-Denis, Paris)

Meu coração tem catedrais imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

Augusto dos Anjos
do Livro 'Eu'

PAZ



Vamos hacia los árboles... el sueño
Se hará en nosotros por virtud celeste.
Vamos hacia los árboles; la noche
Nos será blanda, la tristeza leve.

Vamos hacia los árboles, el alma
Adormecida de perfume agreste.
Pero calla, no hables, sé piadoso;
No despiertes los pájaros que duermen.

Alfonsina Storni



PAZ

Caminhemos até as árvores... o sonho
Se fará em nós por virtude celeste.
Caminhemos até as árvores; a noite
Nos será branda, a tristeza leve.



Caminhemos até ás árvores, a alma
Adormecida de perfume agreste.
Cala-te, porém, sê piedoso, não fales;
Não despertes os pássaros que dormem.

Alfonsina Storni
(Livre tradução de Fernando Campanella)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

ALVA PAISAGEM


Sim, na Espanha dos teus olhos
Debrucei meus lábios cansados:
Sol e sede me fizeram avesso,
Lento ao reconhecer o alimento.

Sim, na França da tua boina inclinada
Descobri outra vida, outros hábitos:
Lua e mar me conferem o desvelo,
Estranhos rios do país que desejo.

Sim, no amanhecer do teu corpo
Apreendi inteira farmácia do amor:
Ervas em brava salmoura, alguidares
de prazer e pavor; ternura e outra cor.

Sim, na arena dos teus atos mais simples,
Avistei caravelas; na algazarra, a calmaria:
Sargaços rompidos, novo olhar sobre a dor
- perfume. Lá fora, os fantasmas da maresia.

Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

AVARENTAMENTE

Avarentamente
a vida nega, a vida
se retrai, se esquiva.
Quem pudera em frente
ver a luz perdida
onde, em recidiva,

tudo se renova
para novamente
murchecer, cair
no que a vida prova
ser o que há de vir,
mas sustém-se ausente.

A luz nunca tida...
Nunca tido encanto...
Avarentamente
se retrai a vida
prometendo tanto
lá bem longe, em frente,

que no ser cansado
de uma espera aflita
há um sol frustrado,
uma luz que grita,
um doer pungente,
infinitamente...



Alphonus de Guimaraens Filho
In: O tecelão do Assombro

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Feliz Ano-Novo Judaico,Shaná Tová 5772 -שנה טובה


Um sorriso se faz
olha lá os passos de luz vindo
te abraçar feito azul,
na tua estrada,
tua história,
tua memória,
teu coração.
Bem Vindo
doce abraço
aromas de mel
e maçã.
e o que passou deixa ir
feliz ou não.
Vai nascer um big bang
momento virgem
sair do mar
o sol
a vida
o alimento,
na alma
uma estrela
brilhando
ano novo
chegando.

Aharon

מל

חיוך גורם
נראה במורד המדרגות של אור מגיע
אני מחבק אותך כמו האור,
הדרך שלך,
הסיפור שלך,
הזיכרון שלך,
הלב שלך.
רצוי
מתוקה חיבוק
ארומות של דבש
וגם תפוח.
ומה להרפות עכשיו
מאושר או לא.
ייוולד המפץ הגדול
בתולה רגע
מן הים
השמש
חיים
אוכל,
נשמה
כוכב
מבריק
ראש השנה
הקרובים.

אהרון

honey

A smile makes
looks down the steps of light coming
hold you done blue
in your road
your story,
your memory,
your heart.
Welcome
sweet embrace
flavor of honey
and apple.
what happened and let it go
happy or not.
Will be born a big bang
moment virgin
out of the sea
the sun
life
food,
soul
a star
shining
new Year
coming.

Aharon

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Prece

dá-me a lucidez das
correntezas para que eu descubra
entre as tristezas que se
avolumam algum
sorriso mesmo
que não seja para mim

dá-me a serenidade de uma
estrela para que eu imagine
entre as lágrimas que não
me deixam qualquer
paz ainda
que breve

dá-me a claridade das
luas cheias para que eu invente
entre as angústias que se
esparramam um
horizonte mesmo
que se transmude em ilusão

dá-me a esperança das
árvores para que eu teça
entre as ausências que se
imensificam uma sanidade ainda
que estofada de
delírios

Adair Carvalhais Júnior

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

FUNERAL COTIDIANO

são 24
as covas
que cavo
no solo de sal
& ossos
do quarto

e sobre cada
cadáver meu
que deponho
ergo a lápide
de um sonho

Adriano Wintter

ANTOLOGIA

(Paint, 'Skrik' by Edvard Munch)


assim como espera
da flor
a esfera
triunfal do fruto

o mundo empurra
o eu
do poeta
para
o abismo

e vós
que mordeis
a polpa
macia

nem mesmo
sabeis
que o verso
é um compêndio
de quedas e gritos

Adriano Wintter
(Porto Alegre - RS )

sábado, 24 de setembro de 2011

'Outono'


Alheia à continuidade das manhãs
fixo um encontro comigo
para a hora em que a terra se deixa amar sem cólera.
Tudo converge no sombreado das árvores
chorando as folhas.
Sento-me na esplanada dos prodígios
e abro um bloco pautado
para fixar a voz daqueles que ninguém ouve.
Ao mesmo tempo, apanho do chão
as memórias desta cidade
onde todos os sinais de vida
se conjugam com o verbo esperar
e todos os odores são uma mistura de fumo,
de fadiga, de suor e de solidão.
Tudo se passa, simultaneamente,
como uma despedida e um reencontro.

Graça Pires
-Portugal-

Livro dos Desejos


Não consigo superar as colinas
O sistema foi abaixo
Vivo de comprimidos
Coisa que agradeço a D--s

Segui o trajecto
Do caos à arte
Desejo o cavalo
Depressão a carruagem

Naveguei como um cisne
Afundei-me como uma rocha
Mas o tempo passou há muito
Pelas minhas reservas de riso

A minha página era demasiado
branca
A minha tinta era demasiado fina
O dia não quis escrever
Aquilo que a noite rabiscara

O meu animal uiva
O meu anjo aborreceu-se
Mas não me é permitida
Uma réstia de remorso

Pois alguém há-de utilizar
Aquilo que eu não soube ser
O meu coração será dela
De uma forma impessoal

Ela pisará o caminho
Perceberá a minha intenção
A minha vontade partida em duas
E a liberdade pelo meio

Por menos de um segundo
As nossas vidas colidirão
O interminável suspenso
A porta de par em par

Então ela há-de nascer
Para alguém como tu
O que nunca ninguém fez
Ela continuará a fazer

Sei que ela vem aí
Sei que ela irá olhar
E esse é o desejo
E este é o livro

Leonard Cohen - Livro do Desejo
tradução de Vasco Gato


(Montreal, 21 de setembro de 1934) é um cantor, compositor, poeta e escritor canadense.
Embora seja mais conhecido por suas canções, que alcançaram notoriedade tanto em sua voz quanto na de outros intérpretes, Cohen passou a se dedicar à música apenas depois dos 30 anos, já consagrado como autor de romances e livros de poesia.

..........

Leonard Cohen nasceu em Montreal, província de Quebec, Canadá, de uma família judia de origem polonesa (polaca). A sua infância foi marcada pela morte de seu pai quando Cohen tinha apenas 9 anos, fato que seria determinante para o desenvolvimento de uma depressão que o acompanharia durante boa parte da vida.
Aos 17 anos, ingressa na Universidade McGill e forma um trio de música country. Paralelamente, passa a escrever seus primeiros poemas, inspirado por autores como García Lorca.

.........

Em 1994, consolidando a sua aproximação com o budismo, Cohen passa a viver no mosteiro de Mount Baldy Zen Center, próximo de Los Angeles. Em 1996, seria ordenado monge zen, e ganharia o nome Dharma de Jikan ("silencioso").
Nesse meio-tempo é lançado, em 1995, um outro disco-tributo, Tower of Songs, dessa vez com nomes mais conhecidos, como Elton John, Bono e Willie Nelson.
No mesmo ano é lançado o livro Dance Me to the End of Love, onde poesias suas são mescladas com pinturas do francês Henri Matisse.
Sua experiência no mosteiro iria até o ano de 1999, quando voltaria a morar em Los Angeles. Apesar disso, Cohen ainda se considera judeu, ressaltando que não procura "por uma nova religião".

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BALÉ ESPACIAL

Seremos eternos?
Sucessões
esféricas
no tempo.

Dentro de mim
não há
nada.
Dentro de mim,
o mundo.

Simples,
breve,
leve,
caminho sobre esferas
- degraus? -que me conduzem
ao extrato universal.

A leveza sutil
do planeta em rotação
eleva-se num balé essencial:
a dança fantástica de astros
improváveis.

Deus meu!
Quero navegar no rastro
de um astrolábio na segurança de seu passo,
dançarino encantado
do eterno suceder,
com a respiração mais elevada.

Sou de sempre,
miríades esféricas do instante.

Seremos eternos?

Onévio Zabot
In Arco de Pedra

Do blog de minha amiga Dione.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Arco-íris



A Pedro Nava

O coração se aperta.
Nem sabe se foi a lembrança de certo cair de tarde
que a memória subtraiu ao tempo, ou um reviver de luzes
entre horizonte e nada.
O coração se volta, há luzes ao longe, uma cidade aparece,
some-se, já é outra cidade.
Em qual delas habita e se redescobre o menino?
Em qual delas a vida se multiplica, as manhãs renascem,
os caminhos se desenvolvem num atlas inexistente e a imaginação arma
o seu mundo de mágicos? Em qual delas
a luz é luz, a sombra é sombra?
Não sabe.
Tantas coisas já se misturaram, ou se confundiram no tempo.
Algumas realmente vistas.
Outras apenas sonhadas, ou imaginadas. E como agora todas
a distancia se ordenam,
entrelaçam-se, formam,
fundidas, transfiguradas,
um só arco-íris!



Emílio Moura
In: Itinerário Poético

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Olhar concebido

Disneylândia girando nos olhos distraídos
desbotando retratos, palavras expostas.

Fita embalada enfeita o mundo complexo.
(perfeito laço
com grandes lapsos)

Estante congestionada de livros lidos por olhos famintos.

Nada entendeu
repensou a modernidade
envenenada
reverso maldito somente
mal dito
pelo silencio em tributo.

Conversão de sonhos espalhados em alguma alma
(êxtase antigo)
entender é o machado decepando
prazeres.

Nada de novo nem por instantes, mas repare
ao menos em tudo
o florescimento constante das flores.

Montes, campos, concretos.
Farol de sementes
para canteiros certeiros
vento chora
naufrágio imaginário
no presente.

Corte rente....

Tudo pode estar oculto da razão
que sonha com a vastidão em palavras,
meras palavras criadas.

Correntes.

Nascente floral
mais que os olhos podem conceber.

Aharon

terça-feira, 20 de setembro de 2011

INICIAÇÃO


São as horas paradas
Cada uma do ano atalho
Em hera entrelaçadas
Cobertas de esplendido orvalho.


É a fala infantil
Que sua voz na flauta ensaia
A replica sutil
Coro de mata e vento e praia.


É a primeira pena
Pois o sonho em palavras mente
E a longe altiva rena
Confinada tomba demente.


É o inicial mosto
E saudade e só submissão
O Maldito indisposto
Que inspira comiseração.


É ainda na Camena
Que hesita pálida e se insurge
Com os seus sons acena
E assusta-se com o que surge...


Tal qual uva azedia
Que lenta perfuma e colora
Da folhagem sombria
Se alça a cotovia na aurora.



Stefan George
In: Crepúsculo

domingo, 18 de setembro de 2011

PRIMAVERA

Em crepusculares criptas
eu longamente sonhei
com teus ares azuis e árvores,
com teus perfumes e cantos de pássaros.

Agora toda te abres
em glorioso resplendor, assim
inundada de luz
como um prodígio diante de mim.

De novo me reconheces e com ternura me tentas:
vibra ao longo de todos os meus membros
tua alegre presença.

Hermann Hesse
in 'Andares'.
Recebido da amiga Dione Eller

terça-feira, 30 de agosto de 2011

2° MADRIGAL


Quis dar em versos
a dor da tua ausência;
mas depois vi que vivias dentro de mim
eu é que tinha partido.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Eu morrerei.
E nos outros serei a recordação
dum grande pássaro selvagem
que bateu as asas
longamente. . .
longamente. . .
Enquanto se ouvir
o eco das minhas asas,
terei a vida das aves.

Isabel Meyrelles
Palavras Noturnas & Outros Poemas

terça-feira, 23 de agosto de 2011

CANÇÃO DO INVERNO

Faz tempo que cai
a chuva cinzenta
no longo vazio
da rua onde, lenta,

minha alma vai
como nevoenta
brisa em que se embala
a chuva cinzenta.

E faz-se a canção
do inverno assim:
com as cinzas da chuva
e o frio de mim.

Ruy Espinheira Filho
In Sob o Céu de Samarcanda

Isabel Meyrelles


Os meus olhos
olham os meus olhos,
para lá da janela
há sombras
suspiros
árvores e rosas.
Dentro da janela,
Só os meus olhos
Olhando outros olhos encobertos.
... ...

O silêncio pesa.

Isabel Meyrelles
In ‘Palavras Noturnas e Outros Poemas’

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Palavras na Penumbra (7)


Há um silêncio leve sobre as ruas.
Esconde-se em sua tênue vaidade.
Ninguém o escuta. Vai pela cidade
compondo um vento de palavras nuas.

Foge do tempo, foge dessa urgência
de dizer tanto, e tudo, e não ser nada,
e encolhe-se no oco de uma ausência,
como uma ave oculta a face alada.

Há um silêncio vivo como a pele,
que pulsa sob um têxtil desatino,
disposto a seduzir o que o impele

ao devaneio. E o impulso vence-o
e abre uma outra face em seu destino:
pois dentro do silêncio há outro silêncio


Renato Tapado
(Porto Alegre 1962, escritor gaúcho, radicado em Florianópolis desde 1974.)

Só Agora



Só agora é que compreendo haver inventado
tantas maneiras de não ser,
ou de ser, dividido,
disperso.
Ah, vida simplesmente pensada
e não apenas vivida, ou se sonhando entre mil fogos,
e por isso despida
de seu dom de unidade ou de sua própria essência!
Colado à sombra das coisas, viajo desesperadamente,
dividido, disperso.
Onde estou, não sou.
Nunca sou totalmente.
E é um ficar, sem deter-me, e um partir, sem levar-me.


Emílio Moura
In: Itinerário Poético
Entre o Real e a Fabula

Gênese


Há sempre uma hora,
uma hora densa,
uma hora inesperada,
em que a paisagem mais inocente
tem o fulgor de um fiat.
O tempo sonha que é espaço,
o espaço sonha que é tempo,
a realidade se compenetra de sua irrealidade.
O homem repensa o mundo
O mundo se recompõe em sua nostalgia de Deus.


Emílio Moura
In: Itinerário Poético
Entre o Real e a Fabula

sexta-feira, 29 de julho de 2011

TÃO CÚMPLICES AS PALAVRAS

Às vezes vêm de muito longe:
de fatigadas viagens,
de mortes prematuras,
de excessivas solidões.
Mas vêm.
E trazem a inicial pureza das fontes.
E a lâmina do silêncio.
E a desordem da noite.
E a luz extenuada do olhar.
Tão cúmplices, as palavras.

GRAÇA PIRES
De O silêncio: lugar habitado, 2009

quinta-feira, 28 de julho de 2011

CLARAS CRUZADAS


Alva - clara,
a palavra das horas
lavra o tempo vivido.

Alva - clara,
a palavra triste
lava os olhos do esquecido.

Alva - clara,
a palavra insiste:
larva sob o vento transido.

Alva - clara,
a palavra marota
capina savana enluarada.

Alva- clara,
a palavra afoita
cavalga amante ensandecida.

Alva - clara,
a palavra servil
escava a alma perdida.

Alva - clara,
a palavra ardente
trava o sumário da vida.


*Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O Solitário

Não: uma torre se erguerá do fundo
Do coração e eu estarei à borda:
Onde não há mais nada, ainda acorda
O indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
Das coisas, e uma luz depois do escuro,
Um rosto extremo do desejo obscuro
Exilado em um nunca-apaziguar,

Ainda um rosto de pedra, que só sente
A gravidade interna, de tão denso:
As distâncias que o extinguem lentamente
Tornam seu júbilo ainda mais intenso.

Rainer Maria Rilke,
Tradução Augusto de Campos

sexta-feira, 15 de julho de 2011

'Neblina'

Estranho é caminhar na densa névoa:
Solitária esta cada planta ou pedra,
Nenhum arbusto enxerga o seu vizinho,
Cada um está só.
Cheio de amigos era, para mim, o mundo
Quando luminosa ‘inda era minha vida;
Agora que a névoa caiu,
Ninguém mais é visível.

Não é deveras um sábio
Quem não conhece a escuridão
Que, suavemente, nos separa
De tudo inexorável.

Estranho é caminhar na densa névoa:
Viver é estar solitário
Entre gente que se ignora.
Todos estamos sós!


Hermann Hesse
“Este Lado da Vida”,