A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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segunda-feira, 30 de julho de 2007

"8"




borboletas filiformes sobrevoam estes regatos tardios
escondem-se nos torrões da terra lavrada e desovam
plátanos espalham folhas semelhantes a complicados mapas topográficos

mais além
um acampamento cigano

caminho para a noite mas não tenho frio
é só o início dum provável outono
o acampamento recorta-se em contraluz
quando agressivos insectos trabalham recantos nómadas da memória

os ciganos possuem a sabedoria dos fogos acesos ao entardecer
quem poderá afirmar que um deles
o mais jovem
não aprende o mistério das cartas?
ou a mágica vida das linhas da mão?
a essa hora transmite-se de pai para filho
a arte dos insuspeitos ofícios do coração

as casas surgem de repente iluminadas por dentro
a paisagem envolveu-se de solidão
pressinto a força perfumada da terra subindo
ao medo da recente noite.


Al Berto

...



Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.


Eugénio de Andrade
in As Mãos e os Frutos

"A CORRENTE"




Lá vão as folhas secas na corrente...
Lá vão as folhas soltas das ramadas...
Hastes envelhecidas e quebradas
galgando as asperezas da vertente.

A cheia arrasa os frutos e a semente,
a terra inculta, as várzeas fecundadas,
e vai perder-se ao longe, nas quebradas,
numa fúria cruel e inconsciente.

Em nós ainda é mais funda, ainda é mais vasta,
esta ansiedade enorme e sem perdão,
que nos fere, nos tolhe e nos devasta...

As árvores desprendem-se e lá vão...
Mas nós ficamos porque nada arrasta
as raízes fiéis dum coração.

Fernanda de Castro

'NOCTURNO'


Devagar, devagar... A noite dorme
e é preciso acordar sem sobressalto.
Sob um manto de sombra, denso, informe,
o mar adormeceu a sonhar alto.

Devagar, devagar... O rio dorme
sobre um leito de areias e basalto...
Malhada pela neve a serra enorme
parece um tigre a preparar o salto.

E dorme o vale em flor. Dormem as casas.
Nenhum rumor. Nenhum frémito de asas.
Nada perturba a noite bela e calma.

E dormem os rosais, dormem os cravos...
Dormem abelhas sobre o mel dos favos
e dorme, na minha alma, a tua alma.


Fernanda de Castro

"PRIMEIRA HORA"




O ano desfolhou-se, dia a dia,
como uma flor cortada, um girassol,
e dia a dia a sua voz calou-se
como velha cansada melodia
de velho rouxinol.

Ontem, à meia-noite, a minha rua
abriu de par em par as portas, as janelas,
e deitou fora o lixo, as coisas velhas:
cacos, farrapos, latas e panelas.

Era a Primeira Hora
do ano que chegava.
-- E eu?-- pensei -- que posso deitar fora?
Que poderemos todos deitar fora?

Ai, Senhor, tanta coisa!
Nem cacos, nem farrapos,
nem latas velhas nem trapos
mas tanta dor,
Senhor,
mal empregada!
Tantos gestos errados,
as pequenas traições,
os pequenos pecados.
As calúnias subtis,
as flores venenosas
da alma envenenada,
e a cicatriz
da culpa inconfessada,
e as palavras que ferem como gumes
de afiadas adagas.

Ressentimentos, azedumes
que Te fazem sangrar as Cinco Chagas.
As larvas dos ciúmes
e as cobras rastejantes
dos pensamentos impuros.
Egoísmos sem fim
e os altos muros
das torres de marfim.
Descrença,
indiferença,
despeitos recalcados,
amassados com ódio, com rancor,
e o amargo sabor
da solidão.

Ah, Senhor, nesta hora de perdão,
nesta Primeira Hora,
quantas coisas podemos deitar fora!

Fernanda de Castro
in '39 poemas'

"ALMA SERENA"




Alma serena, a consciência pura,
assim eu quero a vida que me resta.
Saudade não é dor nem amargura,
dilui-se ao longe a derradeira festa.

Não me tentam as rotas da aventura,
agora sei que a minha estrada é esta:
difícil de subir, áspera e dura,
mas branca a urze, de oiro puro a giesta.

Assim meu canto fácil de entender,
como chuva a cair, planta a nascer,
como raiz na terra, água corrente.

Tão fácil o difícil verso obscuro!
Eu não canto, porém, atrás dum muro,
eu canto ao sol e para toda a gente.


Fernanda Des Castro

"AH, QUE BELA MANHÃ DE PRIMAVERA"




Ah, que bela manhã de Primavera!
Abram ao sol as portas, as janelas!
Cheira a café com leite, a sabonete,
a goivos, a sol novo, a vida nova!

A Rua canta!... sinos e pregões,
apitos e buzinas, vozes claras.
--"Gostas de mim?" -- "Gosto de ti" -- e o céu
cobre a Cidade com seu manto azul.

Ah, que bela manhã de Primavera!

Pousam no Tejo barcos e gaivotas,
com velas novas, belas asas novas.
Os eléctricos voam, transbordantes,
a tilintar, a rir nas campainhas,
e os automóveis, como borboletas,
circulam, tontos, nas ruas sonoras.

Ah, que bela manhã de primavera!

No Tejo, os vaporzinhos de Cacilhas
brincam aos barcos grandes, às viagens,
e o pequeno comboio vai e vem,
como um brinquedo de menino rico.
Confundem-se nas árvores, ao sol,
folhas e asas, pássaros e flores.
É festa em cada rua. Em cada casa,
um canário a cantar, uma cortina,
um craveiro florido na janela.

Despejaram-se armários e gavetas,
frasquinhos de perfume...Toda a gente
foi para a rua de vestido novo,
de fato novo, de gravata nova,
e tudo canta, a Rua é uma canção.

Ah, que bela manhã de Primavera!

--"Gostas de mim?" -- é o tema da canção.
--"Gostas de mim?" -- pergunta-lhe ele a ela.
--"Gostas de mim?" -- pergunta à flor o vento
e a flor ao rouxinol... -- "Gostas de mim?"
--"Gostas de mim?", "Gostas de mim?"
Cheira a goivos, a sol, a vida nova...

Ah, que bela manhã de Primavera!


FERNANDA DE CASTRO

"AMAR"



O segredo é Amar... Amar a Vida
Com tudo o que há de bom e mau em nós.
Amar a hora breve e apetecida,
Ouvir todos os sons em cada voz
E ver todos os céus em cada olhar..

Amar por mil razões e sem razão...
Amar, só por amar,
Com os nervos, o sangue, o coração...
Viver em cada instante a eternidade
E ver, na própria sombra, claridade.

O segredo é amar mas amar com prazer,
Sem limites, sem linha de horizonte...
Amar a Vida, a Morte, o Amor!
Beber em cada fonte,
Florir em cada flor,
Nascer em cada ninho,
Sorver a terra inteira como um vinho...

Amar o ramo em flor que há-de nascer
De cada obscura e tímida raiz...
Amar em cada pedra, em cada ser,
S. Francisco de Assis...

Amar o tronco velho, a folha verde,
Amar cada alegria, cada mágoa,
Pois um beijo de amor jamais se perde
E cedo refloresce em pão, em água!

Fernanda de Castro

"ENTRE A SOMBRA..."




Entre a sombra e a noite há um submisso instante
de preparação.
Aberto espaço onde aves não cantam,
imaculado, instantâneo refúgio.
Entre a sombra e a noite, único passo!

— E é serena e frágil a presença
dos nossos vultos passageiros
isolados na própria condição.

Onde nada se move, uma estrela suspensa.

E tão inutilmente despedaço o encanto,
e tão súbita me vem uma tristeza antiga,
que entre a sombra e a noite encontro o meu refúgio
— o intocável, único espaço.


Maria Alberta Menéres

"PRONTO"



Pronto. O ponto ponte para tudo.
Fim do silêncio balançado no lance.
O desespero agora e de granito
a pequena picada de sugarem o sangue.

Pronto. A eternidade numa terna cidade
de vendavais ao vento e doces automóveis
- Pele que repele o ódio sobre a pele,
alcatrão da memória em cor imóvel.

E quando de repente da violência
de um nefasto fastio irrompe o sono
- Pronto – eis o ponto ponte para nada
A pequena picada de sugarem o nome.

Loucura é não gritar de noite ao meio-dia
quando as florestas iniciam os gestos.
Tudo o que às vezes nasce, masca e morde:
palha de burro é coração de insectos!


Maria Alberta Menéres

"ÁGUA-MEMÓRIA"




Que súbita alegria me tortura
alegria tão bela e estranha
tão inquieta
tão densa de pressentimentos?

Que vento nos meus nervos
que temporal lá fora
que alegria tão pura, quase medo ao silêncio?
Pára a chuva nas árvores
pára a chuva nos gestos,
interiores contornos
divisíveis distâncias
ultrapassáveis gritos
que alegria no inverno,
que montanha esperada ou inesperado canto?

Maria Alberta Menéres

...




Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.


Sophia de Mello Breyner Andresen

"VIDA"




Nós vivemos num mundo de espelhos,
mas os espelhos roubam nossa imagem...
Quando eles se partirem numa infinidade de estilhas
seremos apenas pó tapetando a paisagem.

Homens virão, porém, de algum mundo selvagem
e, com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.

E não posso terminar a visão
porque ainda não terminou o soneto
e o tempo é uma tela que precisa ser torcida...

mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
Que outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa eterna primeira canção?!

Mário Quintana

'A CASA DO TEMPO PERDIDO'




Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.

A casa do tempo perdido está coberta de hera
Pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
Pela dor de chamar e não ser escutado.

Simplesmente bater. O eco devolve
Minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
No bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

Carlos Drummond de Andrade

'TERNURA'




Com as estrelas que deixei cair
de minhas asas de borboleta-transparente,
pedi à minha fada-madrinha
que bordasse, com linhas do infinito,

uma noite somente para meu amor.
E com as flores que deixei cair
De minhas folhas de violeta amadurecida,
Pedi ao meu anjo-da-guarda

Que bordasse, com linhas de eternidade,
Um céu branco e lilás
para ser o dia da noite do meu amor.


Oswaldo Antônio Begiato

'MISTÉRIO DENTRO DOS OLHOS'




De onde será
Invento os sonhos que não tenho?

De palavras bem ditas e mal ditas
Ao passar da leveza e da brisa
E por elas levadas?

De olhares intrigantes e deixados
Escondidos atrás da porta
Que o vento fechou?

De gestos ímpios e invisíveis
Gravados no deserto da alma
Que as tempestades apagaram?

De onde será vêm
Os sonhos que não consigo ter?

De mim mesmo
desenganado e fragmentado
Ou de minhas imagens
refletidas nos cacos do espelho
Que se quebrou de tantos desencantos.


Oswaldo Antonio Begiato

"PENUMBRAS"




Bom dia, estrela pequenina,
Que, distraída de sua grandeza,
Soltou-se de suas alças
E caiu a meus pés!

Por que quer abandonar suas iluminâncias
E vir estar aqui comigo cavando minhas penumbras
Neste gineceu que inventei dentro de mim?

Quer, sei, trocar comigo experiências.
Mas, digo-lhe:
- Eu não tenho nenhuma experiência nova
Que seja digna de ser ofertada a você como troca.

É laudável este amor que me devota,
Ao querer trocar sua infinidade celeste
Pela pequenez de meu espectro cinzento
E sua luminosidade incorpórea
Pela minha rotina de sombra ofuscada.

É que, mesmo tendo olhos azuis,
Tenho visto as coisas com olhos cinzas,
E você pequenina como é
quererá vê-las com olhos da cor de mel.

Não ando sendo boa companhia, minha pequenina estrela!
Deve voltar pra sua altura inatacável
Se não, vai morrer antes do tempo,
E não convém a uma estrela,
Pequenina como você,
Morrer precocemente!

Oawaldo Antonio Begiato

"Sugestões do Crepúsculo'


I e IV

Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia-luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar

Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.

[...]
No seu clamor esmorecido
Vibra, indistinta e espiritual,
Alguma coisa do gemido
De um órgão numa catedral

E pelas praias aonde descem
Do firmamento - a sombra e a paz;
E pelas várzeas que emudecem
Com os derradeiros sabiás;

Ouvem os ermos espantados
Do mar contrito no clamor
A confidência dos pecados
Daquele eterno pecador

Escutem bem... Quando entardece,
Na meia-luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar..."

Vicente de Carvalho
Excertos de 'Sugestões do Crepúsculo)

"A FLOR DA NOITE"


(Epiphyllum oxypetalum- Flor da noite)


No enredado dossel da mata solitária
Onde murmura o vento e o ribeiro responde,
A parasita galga o corpo da araucária
E entre festões de prata, abre o pálio da fronde.

Lá no rincão mais fundo e mais selvagem de onde
Não sobe um vago som de vida tumultuária,
Corpo a corpo com o tronco, ela toda, se esconde
Na imaginária paz da sombra imaginária.

Sua existência no ermo é uma perpétua boda!
E quando a noite estende a pálpebra dormente,
De volúpia e de amor ela estremece toda,

Esperando que o luar desça por uma fresta
Para se aconchegar como um gato indolente
No berço verde dos seus braços, na floresta.


Olegário Marianno
Toda uma vida de Poesia
1.957.

'XII PRECE'



Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode ergue-la ainda.

Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia-
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância -
Do mar ou outra, mas que seja nossa!


Fernando Pessoa
de 'Mensagem'

'NUMEROSO AMOR'




Ah, numeroso amor de que padeço
que me conta mistérios sobre mim...
Ô, enigma! princípio sem começo
destino que termina e não tem fim...

Amor que apraz e dói! amor avesso
que assim se exaure e se refaz assim
morrendo de viver por quem mereço
na volúpia de crer que é amor afim...

Flor de lótus de deuses consagrados
nos desígnios dos bem-aventurados
de alma pronta na vida já completa.

É deusa quem me dá o dom divino
de confirmar nas cartas do destino
o carisma do amor que me liberta...

A. Estebanez
(Soneto dedicado a Maria Madalena Cigarán Schuck – moderadora das comunidades “Confrarias Poéticas I e II” e responsável pela divulgação de minha poesia no sul do país)

'VIMOS A LUA'



Vimos a lua nascer, na tarde clara.

Orvalhavam diamantes, as tranças aéreas das ondas
E as janelas abriam-se para florestas cheias de cigarras.

Vimos também a nuvem nascer no fim do oeste.
Ninguém lhe dava importância.
Parece uma pena solta – diziam.
Uma flor desfolhada.

Vimos a lua nascer, na tarde clara.
Subia com seu diadema transparente,
Vagarosa, suportando tanta glória.

Mas a nuvem pequena corria veloz pelo céu.
Reuniu exércitos de lã parda,
Levantou por todos os lados o alvoroto da sombra.

Quando quisemos outra vez o luar,
Ouvimos a chuva precipitar-se nas vidraças,
E a floresta debater-se com o vento.

Por detrás das nuvens, porém,
Sabíamos que durava, gloriosa e intacta, a lua.


Cecília Meireles

"TARDE TRISTE"




É o Outono doente que começa.
Cada folha parece que tem pressa
De morrer.
Madura e fatigada, a natureza,
Roída por não sei que súbita incerteza,
Até nos frutos quer apodrecer.

E há um desalento igual dentro de mim.
Uma renúncia assim
Calada e conformada.
Perdi o gosto verde de cantar,
A emoção vem à tona e degenera,
Infecunda, a negar
As muitas flores que dei na Primavera.


Miguel Torga,
Diário XIV, 1.984

'NÃO DIGAS NADA'



Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver…
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada…
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa
Photo Hakubaikou (Deviantart)


A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


Sophia de Mello Breyner Andresen

'SONETO'



Canta. Busca na vida o que é perfeito.
Olha o sol e não queiras outro guia.
Sonha com a noite e absorve, aspira o dia,
Tal uma flor que te florisse ao peito.


Da terra maternal faze o teu leito.
Respira a terra e bebe o luar. Confia.
Faze de cada pena uma alegria
E um bem de cada mal insatisfeito.


Colhe todas as flores do jardim,
Todos os frutos do pomar e enfim
Colhe todos os sonhos do universo.


Procura eternizar cada momento,
Fecha os olhos a todo o sofrimento
E terás feito a carne do teu verso.

Fernanda de Castro
Portugal

'LIBERTAÇÃO'



Não sofro porque não tenho
ilusões a quem servir;
sou como um dia de Outono
olhando no chão as folhas
que o vendaval fez cair.

Não sonho, que não é bom
enganos dentro da gente.
Já neste mundo aprendi
que o sonho, como o amor
vai matando lentamente.

Deixei pender os meus braços
como cruz feita em pedaços.

Nem a morte nem a vida
me abalam o coração.
Sou como rocha batida
pelo vento a toda a hora:
falo da vida, não freme,
penso na morte, não chora.


Maria Adelaide Motta D'Oliveira
Portugal

'A CORRENTE'



Lá vão as folhas secas na corrente...
Lá vão as folhas soltas das ramadas...
Hastes envelhecidas e quebradas
galgando as asperezas da vertente.

A cheia arrasa os frutos e a semente,
a terra inculta, as várzeas fecundadas,
e vai perder-se ao longe, nas quebradas,
numa fúria cruel e inconsciente.

Em nós ainda é mais funda, ainda é mais vasta,
esta ansiedade enorme e sem perdão,
que nos fere, nos tolhe e nos devasta...

As árvores desprendem-se e lá vão...
Mas nós ficamos porque nada arrasta
as raízes fiéis dum coração.

Fernanda Castro
Portugal

'SONHO'




Sonho. Não sei quem sou.

Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.


Fernando Pessoa
em 'Cancioneiro'

'SE RECORDO'



Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui São sonhos diferentes.

Ricardo Reis
de 'Odes de Ricardo Reis'

'ESTOU CANSADO'



Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Álvaro de Campos

'POESIA'




Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos


Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor


Prometido nas formas que perdemos.
Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.


Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.


Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,


Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.

Sophia de Mello Breyner Andresen

'SEGREDO'




Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.


Fernando Pinto do Amaral

'CÂNTICO DE BARRO'



Inquieta chuva, inquieta me dispersa,
esquecida a tradição e o cansado som.
Dentro e fora de mim tudo é deserto
como se as ervas fossem arrancadas
ou se esgotasse a dor por que se chora.

Na grande solidão me basta, e a contemplo
para o sonho interior que me resolve!
Tão fácil é esperar, que já nem sinto
o que vem a dormir ou a morrer
na mesma angústia que o silêncio envolve.

Maria Alberta Menéres

...



Amo as horas sombrias do meu ser
em que os meus sentidos se aprofundam;
nelas encontrei, como em velhas cartas,
o meu dia a dia já vivido,
ultrapassado e vasto como numa lenda.

Elas me ensinam que possuo espaço
p’ra uma intemporal Segunda vida.
E por vezes sou como a árvore
que, madura e tumorosa, sobre uma campa
cumpre o sonho que a criança de outrora
(abraçada por suas cálidas raizes)
perdeu em tristezas e canções.


RAINER MARIA RILKE (1875-1926)
Tradução: Ana Hatherly

'A paz sem vencedor e sem vencidos'



Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos


Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Dual' (1972)

'DOCE CANÇÃO'




Pus-me a cantar minha pena
com uma palavra tão doce,
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade - e não pena.

Anjos de lira dourada
debruçaram-se da altura.
Não houve, no chão criatura
de que eu não fosse invejada,
pela minha vez tão pura.

Acordei a quem dormia,
fiz suspirarem os defuntos.
Um arco-íris de alegria
da minha boca se erguia
pondo o sonho e a vida juntos.

O mistério do meu canto
Deus não soube, tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
- Todos perdidos de encanto só eu morrendo de triste!

Por isso tão docemente
meu mal transformar em verso,
oxalá Deus não aumente,
para trazer o Universo de
pólo a pólo contente!

Cecília Meireles

ASAS NO ESPAÇO



Asa no espaço, vai, pensamento!
Na noite azul, minha alma, flutua!
Quero voar nos braços do vento,
quero vogar nos braços da Lua!


Vai, minha alma, branco veleiro,
vai sem destino, a bússola tonta...
Por oceanos de nevoeiro
corre o impossível, de ponta a ponta.


Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim,
que a terra é curta, que o mar é pouco,
que tudo é perto, princípio e fim.


Castelos fluidos, jardins de espuma,
ilhas de gelo, névoas, cristais,
palácios de ondas, terras de bruma,
... Asa, mais alto, mais alto, mais!

Fernanda de Castro

"CONFIDENCIAL"



Não me perguntes, porque nada sei
Da vida,
Nem do amor,
Nem de Deus,
Nem da morte.
Vivo,
Amo,
Acredito sem crer,
E morro, antecipadamente
Ressuscitando.
O resto são palavras
Que decorei
De tanto as ouvir.
E a palavra
É o orgulho do silêncio envergonhado.
Num tempo de ponteiros, agendado,
Sem nada perguntar,
Vê, sem tempo, o que vês
Acontecer.
E na minha mudez
Aprende a adivinhar
O que de mim não possas entender.

Miguel Torga

'FIM DE OUTONO'




Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...


Tudo seco pelas hortas,
Grandes lágrimas no chão
Nem uma flor pelos montes,
Tudo numa quietação
Soluça numa oração
O triste cantar das fontes.


Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...


A terra fechou as portas
Aos beijos do sol ardente,
E agora está na agonia...
Valha à terra agonizante
A Santa Virgem Maria!


Fim de Outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...


Fernanda de Castro
Portugal

'PERDÃO'



Aqui me tens, meu Deus, em confissão.
Não roubei. Não matei. Não caluniei.
Mas nem sempre segui a tua lei,
nem sempre fui a irmã do meu irmão.


Não recusei aos outros o meu pão.
Amor, algumas vezes, recusei.
Mas por tudo o que dei e o que não dei,
eu te peço, meu Deus, o meu perdão.


Perdão para os meus pecados conscientes
e para os meus pecados inocentes,
para o mal que já fiz e ainda fizer ...


Perdão para esta culpa original,
para este longo e complicado mal:
o crime sem perdão de ser mulher.


Fernanda de Castro

'OS ANOS SÃO DEGRAUS'


Os anos são degraus; a vida, a escada.
Longa ou curta, só Deus pode medi-la.
E a Porta, a grande Porta desejada,
só Deus pode fechá-la,
pode abri-la.


São vários os degraus: alguns sombrios,
outros ao sol, na plena luz dos astros,
com asas de anjos, harpas celestiais;
alguns, quilhas e mastros
nas mãos dos vendavais.


Mas tudo são degraus; tudo é fugir
à humana condição.
Degrau após degrau,
tudo é lenta ascensão.


Senhor, como é possível a descrença,
imaginar, sequer, que ao fim da estrada
se encontre após esta ansiedade imensa
uma porta fechada
— e nada mais?


Fernanda de Castro

'VOA , MEU SONHO'



Voa, meu sonho, voa sobre as planícies geladas,
Voa sobre as árvores mortas do Inverno,
Paira sobre a lonjura das belas noites de estrelas,
Nunca pares, continua a voar cada vez mais.
Arde, minha saudade, como uma chama eterna,
Arde na escuridão onde tudo se apagou e foi há muito.
Eterna é esta saudade, é a vida, é a ousadia,
E o fogo que salta sobre o véu de cinzas.

Compreende que para quem nada conseguiu,
E junto à praia nunca repousou,
Não há morte para alta fogueira que ardeu,
Não há medida para as terras azuis da sua saudade.
O meu coração vive de saudade em saudade.
Sempre para desconhecida costa se volta –
A saudade de um poeta não obedece às leis do espaço,
A terra de sonhos não tem fronteiras.


Bertel Gripenberg
(1878 - 1947)
Born Sept. 10, 1878, St. Petersburg, Russia died May 6, 1947, Sävsjö, Swed

'SOBE O PANO'




Onde se solta o estrangulado grito
Humaniza-se a vida e sobe o pano
Chegam aparições dóceis ao rito
Vindas do fosso mais fundo do humano.

Ilumina-se a cena e é sobretudo,
No palco, o real oculto no conflito.
É tragédia? É comédia? É, por engano,
O sequestro de um deus num barro aflito?

É o teatro: a magia que descobre
O rosto que a cara do homem cobre;
E reflectidos no teu espelho - o actor -

Os teus fantasmas levam-te para onde
O tempo puro que te corresponde
Entre horas ardidas está em flor.


NATÁLIA CORREIA

...




é no silêncio
que melhor ludribio a morte

não
já não me prendo a nada
mantenho-me suspenso neste fim de século
reaprendo os dias para a eternidade
porque onde termina o corpo deve começar
outra coisa outro corpo

ouço o rumor do vento
vai
alma vai
até onde quiseres ir


Al Berto

'PARA A MANHÃ'



Rosa acordada, que sonhaste?
Nas pálpebras molhadas vê-se ainda
Que choraste...
Foi algum pesadelo?
Algum presságio triste?
Ou disse-te algum deus que não existe
Eternidade?
Acordaste e és bela:
Vive!
O sol enxugará esse teu pranto
Passado.
Nega o presságio com prefume e encanto!
Faz o dia perfeito e acabado.


Miguel Torga

'POEMAS'




combinara o encontro no limite deste século
onde nenhum homem dorme no limiar do dia
e o sonho se desfaz sob a nocturna incerteza

um raspar de veia reacende lumes
ilumina o turvo sangue os caminhos e a casa
onde pararam todos os relógios

quanto tempo para erguer a cabeça?
quem nos exterminará? no fim deste século
acordarão homens no outro lado da manhã?

que vestígios permanecerão desta reclusão?
e a morte existirá ainda
para além do ínfimo estremecer deste corpo?

é no silêncio
que melhor ludribio a morte
não
já não me prendo a nada
mantenho-me suspenso neste fim de século
reaprendo os dias para a eternidade
porque onde termina o corpo deve começar
outra coisa outro corpo

ouço o rumor do vento
vai
alma vai
até onde quiseres ir


Al Berto
em 'Poeta do Mundo II'

'PAISAGEM'



Cercada de mar profundo.
Montanhas, uma baía
Que a muitos se parece
Na idade, que não esquece
A poeira que há nas almas,
Nem as areias que as invadem.
Passaram dias sem que a vida ousasse
Sujar-me de atritos
E a vida foi um gesto de água
Intenso de tráfego
Na ilha. Finalmente, os dias...

Ruy Cinatti
Photo: Ilha Bela -SP-BR

ENTRE O SER E AS COISAS



Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
é a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N’água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é pungido,
uma fogueira a arder no dia findo.


Carlos Drummond de Andrade

'PARA ESQUECER'



Para esquecer as nuvens cor de fruto,
o acenar do crepúsculo absoluto
e este ficar-me em restos retardios,
a minha sombra escrevo entre dois rios.

Cada minuto é o último minuto,
e com meus olhos e meus dedos luto,
e de cegueira teço ávidos fios
sobre pêndulos, pedras, poços frios.

A vida cabe em minha boca ardente,
e eu a soletro, em fuga, no acidente
de disparadas linhas. E o que existe,

o que de meu mais fundo mim afogo
sob a ilusão de verbo, rosa e fogo
é engano, rastro e som de um homem triste.

Abgar Renault