quarta-feira, 20 de junho de 2007
'HOJE EU QUERIA QUE CHOVESSE MUITO...'
Hoje eu queria que chovesse muito...
- que chovesse...chovesse...intermitentemente,
e tudo se entristecesse: o céu, a terra, o mar...
- e não houvesse alvorada, e não houvesse poente
e não fizesse sol...e não fizesse luar...
Hoje eu queria que chovesse muito
e a terra toda se enchesse de densas neblinas,
e a terra toda se enchesse de estranhas sombras e véus...
- queria turvo o olhar alegre e transparente
das vidraças,
e turvo e triste o olhar sereno e azul dos céus!
Hoje eu queria que chovesse muito...
- que chovesse...chovesse
e não parasse,
e na face
de tudo que vivesse,
uma imensa tristeza se estampasse...
- hoje eu queria que o sol não nascesse,
e a noite, nem uma estrela cintilasse!
Queria as ruas úmidas e silenciosas, e as árvores
como sombras, à beira das calçadas,
encolhidas e embuçadas,
nas roupagens molhadas das ramagens frias...
- queria o sussurro da chuva surdinando
e a ária exótica das goteiras, pingando... pingando
nas latas vazias...
Hoje eu queria que chovesse muito...
(que bem que à alma da gente a chuva às vezes faz!)
- e o dia se escurecesse, e a noite se nublasse,
e que tudo ao redor que vivesse ou passasse
fosse um gesto de paz...
Queria abrir a janela e ver tudo embaciado,
os contornos das coisas desaparecendo
e fugindo
como se a paisagem fosse uma lembrança
esquecida
no passado,
aparecendo esbatida
dentro da chuva caindo!
Hoje eu queria que chovesse muito!
Às vezes a chuva faz-nos tanto bem...
- Quem sabe se não há na alma triste da chuva
um pouco da alma e da música triste de Chopin ?
Ouvindo, noite a fora, além, pelos telhados,
seus monótonos sons, impassíveis,
soturnos,
é como se assistisse em estranhos teclados
dedos nervosos e invisíveis
improvisando "noturnos"!
Hoje eu queria que chovesse muito,
queria a paz, o silêncio, a solidão
de um inviolável recolhimento,
ouvindo a chuva cair... tão doce a sua canção!
- tão bom a gente dormir com a chuva no pensamento!
Hoje eu queria que chovesse muito,
e que dentro da chuva tudo perdesse a cor,
a se esvair...
- não é que eu hoje sofra alguma dor
ou procure esquecer qualquer teimosa mágoa,
não sei o que é - mas bem quisera ouvir
distante... numa lata do quintal
a ária singela e musical
de um pingo d'água!
Queria tudo assim, tudo turvo, tudo baço,
tudo vago
a terra, o mar, o espaço,
a montanha, o rio, o lago,
tudo nublado
tudo assim...
- não sei porque, talvez falte um ambiente adequado
para o meu esplim...
....
Esse dia de sol me faz mal e entontece,
e esta festa de luz e de cores, parece
que zomba e que escarnece
da angústia sem razão que sinto e ninguém vê...
Hoje eu queria que chovesse muito,
(queria porque queria!)
- toda hora, todo o dia...
não sei por quê...
J.G. de Araújo Jorge
em 'Eterno Motivo'
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