A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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domingo, 18 de janeiro de 2009

SAGA DE ASAS


(Foto by Fernando Campanella)

Novembro, estação das chuvas, e as garças já retornaram, para nidificação, àquelas árvores junto ao velho rio Sapucaí. Centenas delas, diferentes tamanhos, cores, e espécies ( branca-grande, vaqueira ou boiadeira, socó-dorminhoco ou garça-cinzenta...).

Algumas, como as brancas grandes, exibindo suas egretas, penachos especiais no dorso usados para o ritual de corte.

É a época da reprodução. No ninhal já se vêem as estruturas de gravetos e galhos secos, forradas de capim. Logo as fêmeas postarão os ovos verde-azulados, e os pais os chocarão e alimentarão os filhotes que vingarem.

Alvoroçadas com minha presença em seus domínios, emitem sons roucos, entrecortados, e brandem as poderosas asas quando de mim se afastam. Porém, jamais me atacam.

Quando pela primeira vez fotografei a colônia dessas aves , em meados de dezembro do ano anterior , os filhotes já estavam em seus ninhos, recém-nascidos, de uma beleza grotesca, plumas escassas , o bico enorme, desproporcional à estatura do corpo. Cerca de um mês mais tarde, em minha segunda visita, já eram adolescentes, com plumagem mais definida, em pleno ensaio para a rara beleza que portariam quando adultas.

Em Abril deste ano , por ali passando, não mais as vi. No outono, após as águas de março, baixando o nível das águas do Sapucaí, as várzeas da região do ninhal secam , dificultando para as garças encontrarem suas presas - plâncton, pequenos peixes e anfíbios - naquelas lagoas marginais. Em sua natureza migrante, as brancas grandes voam, então, para regiões de águas fartas, abundantes, como nas proximidades do imenso lago de Furnas.

As exóticas vaqueiras, insetívoras, rumam aos pastos em busca dos insetos do gado, abrigando-se em outros pousios. E do milagre dos instintivos rituais da vida, daquele clamor de sons e asas, restarão, após partirem, ali junto ao rio, tão somente algumas penas, fezes branco-acinzentadas e o silêncio dos ninhos vazios.

Agora, mais uma vez , em novembro, ali estão elas, os filhotes do ano anterior já são aves absolutas e plenas que, dando continuidade ao ciclo natural, postarão e chocarão seus ovos, revitalizando o local com o grasnar coletivo, o vôo elegante, as delicadas poses e movimentos de bailarinas.

Eu as aguardei durante longos meses para revisitá-las agora na estação das chuvas, meu coração como se atendesse a um chamado para registrar a renovação da vida em sua mais encantada alegria. Mas até quando as verei, agrupando-se, vindas algumas de longe, impulsionadas por um misterioso código biológico que lhes assegura um santuário de procriação precisamente naquele sítio?

Contemplando-as na tarde, consortes , amantes em plena, festiva cumplicidade, ciente de que logo partirão, em incansável saga de asas, para cuidar de outras conquistas, lembro-me dos versos do poeta irlandês, Yeats, referindo-se aos seus selvagens cisnes de Coole:

‘... Entre que juncos edificarão sua morada,
Junto a que lago, junto a que charco,
Deliciarão o olhar do homem quando um dia eu despertar
E descobrir que voando se foram?’



(Fernando Campanella, 22 de novembro de 2008)

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