A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

Seja bem-vindo. Hoje é
Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

terça-feira, 29 de junho de 2010

DESPEDIDAS


Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.

Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas

Nada mais é gratuito, tudo é ritual.
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.


Affonso Romano de Sant'Anna
In 'Epitáfio para o Séc.XX'

domingo, 27 de junho de 2010

De mãos erguidas

(The Helia Sculpture))

De mãos erguidas
junto das nascentes,
convoco o inacessível
e construo os cenários
da infância que não tive.
Agora vou ser livre
de percorrer o vento
em linha recta,
de receber os afagos
às mãos cheias,
de pintar em todas as paredes
as bonecas de trapos que não fiz.
Agora posso marcar
um percurso feliz
no caminho que leva
à outra margem,
ou fabricar um enredo
onde a minha imagem,
petrificada e bela,
seja sempre o reflexo
do crepúsculo que se extingue.
Depois, a vida há-de mover-se
como um vendaval inesperado,
mas nada toldará a limpidez
das lágrimas e da noite,
no ritual quotidiano de estar só.

Graça Pires
Portugal

...É O VERBO

(Photo by Fernando Campanella)

No princípio é o caos
e a poesia se faz cosmo
e habita dentro de mim

sempre a mesma gênesis:
trilhar a órbita das luas

premer o útero das sombras
para a explosão secreta -
o verbo de alguma luz.

Fernando Campanella, 2010

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O vento e as bandeiras

(Alessandro Beltrane)

A ventania que alçou o amargo aroma
do mar às espirais dos vales,
e te assaltou, desgrenhou teu cabelo,
novelo breve contra o pálido céu;

a rajada que colou teu vestido
e rápida te modulou à sua imagem,
como voltou, tu longe, a estas pedras
que o monte estende sobre o abismo,

e como passada a embriagada fúria
retorna agora ao jardim o hálito submisso
que te ninou, estirada na rede,
entre as árvores, nos teus vôos sem asas.

Ai de mim! O tempo nunca arranja duas vezes
de igual maneira suas contas! E é esta a
nossa sorte: de outra maneira, como na natureza,
nossa história se abrasaria num relâmpago.

Surto sem igual, - e que agora traz vida
a um povoado que exposto
ao olhar na encosta de um morro
se paramenta de galas e bandeiras.

O mundo existe... Um espanto para
o coração que sucumbe aos espíritos errantes,
mensageiros da noite: e não pode acreditar
que homens famintos possam ter sua festa.


Eugenio Montale
in 'Poesias'(Trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti)
*Eugenio Montale (Génova, 12 de Outubro de 1896 — Milão, 12 de Setembro de 1981) Poeta italiano, prosador, jornalista e tradutor italiano.
Recebeu o Nobel de Literatura de 1975.

terça-feira, 22 de junho de 2010

POEMA

O sol ao pôr-do-sol (triste soslaio!)…o arroio
Em pedras estendido, em seus soluços
Desmaia o céu d’estrelas arenoso
E o lago anila seus lençóis d’espelho…
Era a Ilha do Sol, sempre florida
Ferrete-azul, o céu, brando o ar pureza
E as vias-lácteas sendas odorantes
Alvas, tão alvas!… Sonoros mares, a onda
d’esmeralda
Pelo areal rolando luminosa…
As velas todas-chamas aclaram todo o ar.

Sousândrade

*Joaquim de Sousa Andrade nasceu na Vila dos Guimarães no Maranhão (consta numa biografia que nasceu em Alcântara, também no Maranhão) no dia 9 de julho de 1832. Formou-se em Letras pela Sorbonne, em Paris, onde também estudou Engenharia. Permaneceu na Europa por muitos anos, viajou muito e conheceu também as repúblicas latino-americanas.Fixou residencia nos Estados Unidos da América.Ao final de sua vida, no Maranhão, incompreendido e só, tido maldosamente como louco, morre só e na mais completa pobreza.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

É um sonho esta vida...


É um sonho esta vida,
mas um sonho febril de um instante único.
Quando dele se acorda,
vê-se que tudo é só vaidade e névoa...

Oxalá fosse um sonho
bem profundo e bem longo,
um sonho que durasse até á morte!...
Eu sonharia com o meu e teu amor.

Gustavo Adolfo Becker

*Gustavo Adolfo Domínguez Bastida
(Sevilla, 17 de Fevereiro de 1836 - Madrid, 22 de Dezembro de 1870)
Poeta e escritor espanhol, um dos expoentes da literatura romântica.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

‘Retrato do poeta quando jovem’

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exato,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

José Saramago


Premio Nobel em literatura- 1.998.
Nasceu em Azinhaga, Golegã, Portugal. 16 de Novembro de 1922-
Faleceu (hoje) 18 de junho de 2010- Lanzarote, Ilhas Canárias, Espanha.



quinta-feira, 17 de junho de 2010

Miudências


Ser feliz
é ter o coração livre
e a consciência tranquila;
é receber a brisa
e falar de alegria!
É vestir
o agasalho da saúde
a camisa do sonho
e os sapatos do amor!
É cantarolar no silêncio
brindar a paz
e então
sair de si
estender seu coração
e dizer:
estou pronto
o sofrimento é canto!


Luiz José Maia
In’ As Quatro Faces do Homem’

quarta-feira, 16 de junho de 2010

As Belas, As Perfeitas Máscaras


As belas, as perfeitas máscaras de perfil severo
Que a morte, no silêncio, esculpe,
Encheram-se de uma estranha claridade...
Que anjos tocam, através do mundo e das estrelas,
Através dos sensíveis rumores,
O canto grave dos violoncelos profundos?
Alma perdida, vagabunda, Messalina sonâmbula,
insaciada...

Que procuras na noite morta, Alma transviada,
Com tuas mãos vazias e tristes?
Cantam os violoncelos... A noite sobe como um
balão...

Meus olhos vão ficando cada vez mais lúcidos...
Soluçam os violoncelos... Ah,
Como é gelado o teu lábio,
Pura estrela da manhã!


Mario Quintana;
in Aprendiz de Feiticeiro

terça-feira, 15 de junho de 2010

SONETO DE PAPEL


"Por escrito sou mais do que respiro”
Antônimo de mim, há sinonímias
Em eu querer já não querer mais nada,
Senão a minha ausência de mãos postas.

Por escrito! E a escrever que ninguém pode!
Contudo, que descanso em que pudesse!
A única viagem que é só minha
Mora na asa infinita da palavra!

Hã muitas vozes neste vôo e entanto
O meu suspeito coração consegue
Amealhar fortunas de silêncio!

Natureza concreta que rabisco
De almas, à custa de buscar-me um outro
Nos dicionários que anoiteço em mimm...

Homero Frei
In “Sonetos Brancos” (1998)

PENUMBRA


Minha cabeça afaga o meu cansaço
Como uma luz no coração da sombra;
Corpo da sombra, coração da terra,
Rima do verso branco que sou eu.

Qual uma rosa que fizesse falta
Às ruas murchas de não serem rios,
Embalo a sombra como um berço estéril,
Antecipando o último berço imóvel.

Felizmente ainda venta no destino.
Ainda o perfume comparece às flores.
Sim! Afinal, a vida é uma verdade

(Por que falei tão alto, se acredito?)!
Meu cansaço fecunda a minha sombra –
A morte amanheceu, quase nasci!


Homero Frei
In “Sonetos Brancos” (1998)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

TÃO CÚMPLICES AS PALAVRAS


Às vezes vêm de muito longe:
de fatigadas viagens,
de mortes prematuras,
de excessivas solidões.
Mas vêm.
E trazem a inicial pureza das fontes.
E a lâmina do silêncio.
E a desordem da noite.
E a luz extenuada do olhar.
Tão cúmplices, as palavras.


GRAÇA PIRES
De O silêncio: lugar habitado, 2009

terça-feira, 8 de junho de 2010

XXXVII


Aguarda, resta uma vela, ou duas,
e este vento que as sopra nos basta.
Segura-as ao largo da noite,
e me deita e cerra meus olhos.

Oh velador de meus sonhos,
zela pelas minhas imagens,
tuas águas,
trêmulas ondas que passam.

(Fernando Campanella)
Poema da série “O Eu confesso”
-Inédito-

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O estéril


Dentro da minha vida vou guardando o meu sonho
em chuviscos sutis de amor e de veneno.

O abismo me fecunda e se desfaz o encanto,
com a Dor permaneço dolorido pensando.

(Era um canto dormido
em seda triste e branda,
adormeceu no estéril desencontro dos ventos
e a vida, estilhaçada como árvore deserta,
ficou.)

Oh! como doem, doem essas dores humildes.

Pablo Neruda
In Cadernos de Temuco

'Encontrado' no blog da amiga Dione,'Gotas de poesias e outras Essências!Aqui.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

XXXVI


Espelho do outono
que me convida a esquecer,
um desabrir , um encerrar
sem no entanto morrer.
Esse tempo de fora
- quando a sombra estremece
e em minha cama se deita -
eu espreito por dentro.

(Faça-se a luz,
invento da alma,
que irisa meus olhos
e me reflui.)


(Fernando Campanella)
Poema da série “O Eu confesso”
-Inédito-

A voz de meu rio


Da serra das Gerais ouço a voz de meu rio.


Que me quer o seu eco, se a memória
guarda de tudo apenas esta fimbria
entre o real e o irreal? Tudo se apaga,
terra céu, verde e azul, tudo se apaga,
e há um fluir mais triste que se escuta
em mim, mas já sem mim.


Emílio Moura
In: Intinerário Poético
Lira Mineira

'VERDADE DE BRINQUEDO'


A minha verdade
é o Atlântico Amadeus Oceano:
uma saudade tão simples
que não alcanço ou espanto.

A minha verdade
é Flora pura, verbo Purim:
inteira Jazz; Moura
Paulo, Leonardo - princípio e fim.

A minha verdade
é feita de prima Vera: uma Itália
nortista, único Moai em Santiago;
esmeraldas na Serra da Mantiqueira.

A minha verdade
é tão infame quanto Rimbaud:
um espantalho, um alaúde,
“O Novo Arrabalde”: Vitória desnuda.

A minha verdade
é cigana como meus olhos e sonhos,
vã como Veneza; adora a vida em Milão:
é portuguesa como António, o Boto.

A minha verdade
é profana, sacra, rara, sacana:
é Adriana e Frida; passa por Bocage
e Camões, mas deságua seus mitos
na boca saúva da Cobra Norato.

A minha verdade
é longa e Londres, um sítio da City.
É vasta - mais que perfeita escuridão:
dela nada conheço; nela me refaço e fortaleço.

A minha verdade
foi parida em noite de Lua Cheia.
Tão urbana como minha vida em viés:
seleta e diversa como nuvens grávidas.

A minha verdade
é um pouco dali, outro tanto daqui.
Chega de mansinho como um carinho
afoito e fortuito: um verso de areia.

A minha verdade
é benta, nada andarilha, nada Anchieta:
é como ruas vazias; crua como Alfabeto
Celta; Sevilha - Amsterdã adormecida e nua.

A minha verdade
só existe nas línguas, em todos os lábios:
é labareda Amazônica que afoga crenças
de outras eras; ressuscita tempestades.

A minha verdade
não é cômoda, nem alvo escuso:
é certeira como Jorge, reluz como
Lótus no pântano; gira sóis como Van Gogh.

A minha verdade
namora a madrugada; despeja letras
sobre folhas virgens: fatia pão e Pound,
dispensa Salomão - saúda Sandburg!

A minha verdade
é tão incerta como humanos dentes de marfim;
tão pretensa que uma criança pode imitá-la.
Mas é a minha, nem boa nem má:
apenas brinquedo, pura ilusão.

*Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

quinta-feira, 3 de junho de 2010

'À NOITE'

(Foto by Fernando Campanella)

Este silêncio, vasto e imponderável,
revive as coisas mortas
atraindo a luz em sua corte.
Tempo de sedar,
de transbordar as taças
com fluidos de lua -
e de brindar à noite.

(Fernando Campanella)


'TO THE NIGHT'

This vast imponderable silence
revives dead things
by casting its charms
upon the light.
Time to sedate,
to overflow the glasses
with moon's fluids -
and here's to the night.

(Fernando Campanella)

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Motivo


No coração
a palavra rumina
a indignidade do chumbo
que escurece as manhãs.

Com suas garras de luz
os versos que vingam
no deserto interior
anunciam o oásis
onde a linguagem sacia
a sede de sonhos.

Na manhã dourada
que se anuncia
entre um vento e outro

as estrelas mortas
ressucitarão na obscuridade da alma
reverberando um farol de mel
contra as varizes do desencanto
sepultando o latifúndio as noites.

Eis o poema

ponte dialética

entre a sintaxe do abismo
e a gramática dos silêncios.


Ronaldo Cagiano
in Suplemento Literário de Minas Gerais


O tempo imóvel

O calor de seu canto vai parando
a tarde. Um pássaro canta.
Ao campo e à tarde a chama do verão
seu canto vai levando.

Fica parado dividindo a várzea
um marinheiro rio. A várzea morta,
o rio sem passar e o pássaro
que o sono do verão leva no canto,

e o tempo de lazer o tempo de jazer
antes da morte mais profunda. A sombra
do campo claro a sombra do silêncio

nasce do canto e do calor e dura
pára na terra pobre o mata-pasto
pára no campo o coração da tarde.


H. Dobal
In: O Tempo Conseqüente