A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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sexta-feira, 2 de maio de 2008

"Mimus"





Segundo dia de um congresso sobre Educação , os workshops da manhã martelando o tema ‘O papel do professor no negócio-ensino’. Finca-se no ar e no subconsciente dos participantes, uma idéia tão cara ao neo-liberalismo, a de que são os mais competitivos de nossa espécie os que sobrevivem. Corro os olhos pelos palestrantes, pela sala de conferências do hotel, pelos assistentes do evento em seus sorrisos profissionais e suas embalagens impecáveis, e dou uma sacudidela na mente para me distrair da impressão aterradaora de que tudo: educação, saúde, música , gentilezas... vai se transformando em business e marketing.

Duas horas para almoço, preciso me afastar daquela atmosfera e saio a percorrer as ruas da pequena cidade turística.

A pracinha central sob um céu retinto de azul, acalentada por um sol brando de inverno, vai aos poucos me seduzindo com a arquitetura delicada de seus gramados, seus ciprestes esculpidos em forma de aves enormes , uma agradável descoberta para mim. E lá estavam, e cantavam, seus freqüentadores mais assíduos, seus pássaros, alguns voando de arbusto em arbusto, outros atingindo às vezes o topo de um pinheiro mais alto, demorando-se lá em cima por longos minutos, que tive a paciência de contar na tentativa de melhores enquadramentos para fotos. Na espera, que me parecia infinita, as nuvens às vezes cobriam os canteiros , a sombra tingindo os pinheiros de um tom mais adensado de verde, depois se abriam, as árvores agora carregadas de luz, lembrando uma decoração temporã de natal. E os pássaros nos cimos , como apêndices, a meditar ao céu.

Àquela altura, eu já havia esquecido o almoço, e a própria areia movediça dos intrincados negócios onde todos nos enfiamos. Tiro várias fotos , mas sempre dos mesmos personagens: rolinhas, joões de barro, pardais, e.... sinceramente, a espécie em maior número, e de maior rebuliço , na praça, era desconhecida por mim. Confesso minha condição de ignorante turista a um vendedor de pipocas, e pergunto-lhe o nome daquela maravilha em tons de marrom, peito e sobrancelhas brancos, cauda alongada. Sabiá-do-campo – diz-me o homem, um tanto incrédulo com meu desconhecimento de algo tão banal.

Ou galo-do-campo – acrescenta, nome dado à ave na região rural onde fora criado. Não satisfeito, vou perguntar, mais adiante , a uma senhora que por mim passava. Sabiá do campo parecia ser mesmo o nome popular daquele pássaro semelhante aos sabiás nas cores, na forma, mas de diferente canto. E pensei com meus botões se aquela espécie não haveria sofrido mutações em sua trajetória: de galo-do-campo, passando por sabiá-do-campo, chegando agora a sabiá-da-praça com suas ensaiadas poses para fotos de turistas, em seus negócios de pipocas como alimento garantido em troca da exposição. Mas não, pássaros ainda são pássaros, alimentam-se de bichinhos e sementes, não têm negócios com os homens. E, sobretudo, ainda cantam para Deus , como dizem os chineses, nos jardins pródigos, de graça.

Volto ao hotel para mais uma rodada de palestras na tarde, mas agora menos comprometido , mais leve: outras sintonias havia , outros encantos ainda não conspurcados.

Findo o congresso, vou pesquisar sobre aquela variedade de sabiá em um site científico e constato a veracidade da informação obtida . O ‘Mimus Saturninus’, ou popularmente ‘Sabiá-do-Campo’, é uma ave dócil que pode se adaptar às grandes cidades. É bastante comum nas cidades do interior de São Paulo, e de Minas pelo que eu pude observar. É vista sempre em pequenos bandos de três a sete indivíduos. Imita sem maestria o canto de outros pássaros e de vez em quando se abre em exibição denominada ‘lampejo de asas’, atitude ainda não satisfatoriamente esclarecida pelos ornitólogos.

Quando baixo as fotos no computador, alguns dias depois, a mais tocante, para minha surpresa, é justamente a de um ‘Mimus’ ( gênero da ave, mas assim, carinhosamente, passo agora a chamá-la) no fio de luz de um poste, mirando algum ponto indefinido no céu. Bate em mim, então, uma irreprimível saudade, uma falta, como de um amigão distante, ou de algo em mim há muito esquecido, quase perdido. Confesso, que sob o peso de minhas couraças, deixei escapar alguma lágrima, assim meio camuflada. Mas tenho que voltar aos meus negócios, já estou ficando um pouco sensível demais.


(F.Campanella, 0l de Julho de 2007)

*Sabiá do Campo (Mimus Saturninus)
Photo by Fernando Campanella

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