sábado, 31 de maio de 2008
"Uma canção"
Por detrás dos meus olhos há águas
Tenho de as chorar todas.
Tenho sempre um desejo de me elevar voando,
E de partir com as aves migratórias.
Respirar cores com os ventos
Nos grandes ares.
Oh, como estou triste...
O rosto da lua bem o sabe.
Por isso, à minha volta há muita devoção aveludada
E madrugada a aproximar-se.
Quando as minhas asas se quebraram
Contra o teu coração de pedra,
Caíram os melros, como rosas de luto,
Dos altos arbustos azuis.
Todo o chilreio reprimido
Quer jubilar de novo
E eu tenho um desejo de me elevar voando,
E de partir com as aves migratórias.
Else Lasker-Schüler
"Ar de Noturno"
Tenho muito medo
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.
O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !
Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho ?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.
O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !
Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.
O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !
Vladimir Maiakovski
"Soledade"
(Vista do rio Tejo)
Encontro-me comigo a todo o instante
Na paisagem noturna do meu ser,
Para nela de novo me perder,
Mais ausente ficando e mais distante.
Ó sorte vária! Assim quem há de ver
Neste mendigo roto e caminhante
Aquele místico e saudoso infante
Que o claro Tejo um dia viu nascer?
Ai da minha alma aos ventos desprendida,
Errando ao luar da morte, nem sei onde,
Nas paragens talvez duma outra vida!
A noite cresce; a dor jamais tem fim;
E a minha própria sombra se me esconde
E anda perdida sem saber de mim ...
Anrique Paço D’Arcos
in "Poesias Completas"
"Pro Nobis"
carente
é juba sem pente
dente sem osso
é fosso
mundo
girando
em vórtice fundo
dentro sem beira
tempo sem flora
quando sem quando
alma que mente
boca que tudo piora
céu sem relento
buraco negro
estrela sem glória
amor indigente
serpente
que a cauda enrola
ora pro nobis
esfinge
que se devora
F. Campanella
Painting - Pablo Picasso-
"Curare"
"Treasured"
sexta-feira, 30 de maio de 2008
"XXV"
XX
"Capela dos Ossos"
(Igreja do Carmo - Capela dos Ossos-Faro-PORTUGAL)
Eu que não vivi o Alentejo,
que não cerrei os olhos de doce sono
às suas albufeiras ao entardecer
( nem em suas dormidas pernoitei)
e que não cantei em motes e glosas
a glória de um D.Manuel e suas esquadras
( nem no Tejo naveguei)
que às suas capelas
não me desfiz dos ossos,
não me embriaguei do néctar
de seus deuses
nem da flor mais bela
em Évora me enamorei,
eu, disso tudo,
por descompasso dos astros,
me privei.
Mas, oh fado lusitano,
Oh, alma dolente e migrante,
tua nostalgia,
teu estar nunca estando,
esta sede por outros mundos,
esse tanto, eu herdei.
(Fernando Campanella)
"Ausência"
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
Sophia de Mello Breyner Andresen
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...
No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.
Sophia de Mello Breyner Andresen
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Sophia de Mello Breyner Andresen
quarta-feira, 28 de maio de 2008
"XXII"
(Alto de Espírito Santo do Dourado - Sul de MG.)
Esta música evoca uma floresta
povoada de mitos e deuses
que por mero acaso não são meus.
Minha floresta tem outros ritos.
Mas a mesma música dela irrompe
e bate em ouvidos que a interceptam
e que por um acaso agora são teus.
Fernando Campanella
da série "O EU confesso"
Photo by Antônio Carlos Januário
"I"
"VI"
"Assim nos céus"
A memória de um jarro,
a etérea flor,
o piano
em dedos de sonho tocando:
um triste noturno ou, quem sabe,
um mais que eterno romance.
Assim nos céus,
À pálida luz de uma lua
ou de velas bruxuleando,
espectros,
irredimíveis ébrios de amor,
em alcovas de nuvens
dançando.
(Fernando Campanella)
Tela de Washington Maguetas
"XVI"
"Cova Rasa"
"XXII"
"XXIV"
"XXI"
"XVIII"
sábado, 24 de maio de 2008
"Só"
De pronto a névoa apaga o sol, e morre o dia,
sombras tristonhas roubam cor ao entardecer...
Quando partiste... (foste o bem que eu mais queria...)
Anoiteceu, por sempre, a vida em meu viver.
Restaram dor, que o peito, em fúria, cilicia,
conceitos vagos – mal os pude compreender...
Adormeceu o Tempo, envolto em agonia,
tanta saudade... Tanta dor varou-me o ser.
E muito embora já distante no passado,
sou ré, cativa ao jugo desse cruel fado,
luto plangente, dor sem trégua, dor sem dó.
Não há quem dome o Mal que, agudo, me espezinha,
pois ao perder teu doce amor, minha Mãezinha,
eu fiquei só, tão miseravelmente... Só!
Patricia Neme
Recebi este poema de uma poeta amiga, me causou profunda emoção, deixo aqui dedicado a memória, de minha sogra e de minha avó.
"Sextina 2"
A vida me anoitece
de sofrê-la no açoite
e vivê-la vazio
da beleza que a tece
— mudo me faço e noite
cego surdo e sombrio.
O futuro é sombrio
quando a alma anoitece
e me engolfo na noite
e me entrego ao açoite
— voltas que a vida tece
nesse abismo vazio.
De coração vazio
escondo-me em sombrio
casulo que me tece
a vida que anoitece
a alma ao pleno açoite
que me oferece a noite.
Faço-me a própria noite
e em minh'alma o vazio
silêncio lembra o açoite
latejante sombrio
da idade que anoitece
— fiação que me tece.
Pois tudo que me tece
lembra a pedra da noite
no peito que anoitece
— a alma sente o vazio
desse peso sombrio
à maneira de açoite.
Claro nítido açoite
é o que a vida me tece
extraindo o sombrio
refugo dessa noite
— deixa na alma o vazio
do corpo que anoitece.
Este açoite anoitece
e me tece vazio
no sombrio da noite.
Fernando Py
"Inquietude"
As horas passam, lentas como beijos,
ou rápidas, como setas.
Nem desejo de continuar, nem vontade de parar.
Eu só queria que a minha vida fosse uma página em branco,
sem dizeres que não dizem nada,
porque é sempre a mesma inutilidade,
sempre o mesmo espetáculo.
Mas, o tempo não pára:
As horas passam lentas como beijos,
ou rápidas, como setas.
Emílio Moura
in "Itinerário Poético"
"Vai chover"
Vai chover, e eu vou estar mais triste.
Chuva é distância: esfuma, apaga, esconde.
Doerei por não saber por não saber se ainda existe
o verde luar e sonha um quando e um onde.
(É talvez mais mortal haver sorrido
que ter chorado: talvez guarde a boca
sombras que os os olhos já terão perdido...)
Sinto distância em mim. A vida é oca,
e dentro dela chovo, transbordando,
minha cinza, meu longe, estes em que ando
restos de sons e faces de arrebol;
e vejo entre submissa névoa e vento
reabrir-se em curva de ouro o pensamento
das horas que moraram no teu sol.
Abgar Renault
in "Obra Poética" – l.990 –
"Mundo Imaginário
Sob o olhar desta tarde,
quantas horas revivem
e morrem
de uma nova agonia? Velhas feridas se abrem,
de novo somos julgados, o que era tudo some-se
e num mundo fechado outras vigílias doem.
A noite se organiza e, no entanto, ainda restam
certas luzes ao longe. Ah, como encher com elas
este ser já não-ser que se dissolve e deixa
vagos traços na tarde?
Emílio Moura
in "Itinerário Poético"
"Foto de perfil"
Quem me vê com a alma repousada
entre as cores manchadas desta foto
não sabe que ela é resto de alvorada
desmaiada entre as barras do ignoto.
O que vê são as sombras do remoto
porvir de alguma aurora desenhada
na areia do crepúsculo onde aporto
a foto que o amor deixou marcada.
Foi-me o tempo e levou a mocidade
das minhas rosas só deixou saudade
só espinhos me restam de uma flor...
Nem de sonho vivido já me lembro...
Só das saudosas tardes de setembro
como memórias póstumas do amor...
A. Estebanez
"Não acordem a minha morte"
Não acordem minha morte
que descansa adormecida...
E que à alma não importe
se a morte é sono da vida.
Minha carne não acordem
e nem do sangue exaurido
o fluído que em desordem
deixa-me o corpo esvaído.
Dêem pó para minh’alma
que de mais nada precisa
senão do canto da calma
que de amor não agoniza.
Não acordem minha vida
que está só desacordada
e que a alma amortecida
só me acorde despertada.
E da morte não desperte
a minh’alma adormecida
e da vida ainda me reste
o outro lado desta vida...
A. Estebanez
"Soneto da circunstância"
Algo que escutas entre o mar e o vento
algo que perdes entre a onda e a areia
um vago instante de algum pensamento
à luz que há entre a chama e a candeia.
Algo entre o aroma, a brisa e o relento
fios que urdidos entre a aranha e a teia
vibram em mim de um átimo do tempo
a chama desse amor que me incendeia.
Em minh’alma inda incólume à deriva
nem sei o que fazer do que ainda resta
de meus barcos de bruma sobre o mar...
Faças de mim a tua circunstância viva
e desses restos me celebras uma festa
e o que ainda resta é para eu te sonhar...
A. Estebanez
quarta-feira, 21 de maio de 2008
"XV"
"XIV"
"XIII"
Vão, que já não são meus
os filhos, os versos, a estória.
Comigo não ficam meus passos
nem o desenho do corpo.
Vão os que do mundo vieram:
as folhas, os porres, os cansaços.
Se depositamos guirlandas e lágrimas
aos pés deste Deus, meu amor,
nossos tesouros já não ficam ensimesmados.
Vão, fiquem vazios nossos barcos
por tamanha generosa partida.
E para tantos outros encontros,
Solte-se a órbita do peito no espaço.
Fernando Campanella
da série "O EU confesso"
"IV"
"III"
"II"
Vou tocando meus versos
como conduziam ovelhas
os bem antigos pastores.
Alimento, toso, tranco o estábulo
e deixo uma intenção em fresta
para os olhos do mundo
para a luz-vaidade.
Mas sei que isso ainda não basta.
O sonho é mais vasto
E o infinito de mim
puxa mais embaixo.
Fernando Campanella
da série "O EU confesso"
Tela de Jean-François Millet.
segunda-feira, 19 de maio de 2008
"XII"
"XI"
"X"
'VI'
"V"
"I"
Haverá uma tarde
em que alguém lerá meus versos
mas neles, distraído, já não me acho.
Não uma tarde como esta
de pretensões confessas
onde tudo que fiz conta
ou não.
Ou não haverá uma tarde
para toda idiossincrasia.
A cada dia o fardo que se mereça.
Ao delírio,
a camisa de força
e a psiquiatria.
Fernando Campanella
da série "O EU confesso"
"Esboço"
"Legado"
sexta-feira, 16 de maio de 2008
"Outono"
Outono
uma aragem
uma estação
um rito de passagem...
um cão sem pelo
em cima do muro:
não é lava nem gelo
nem claro nem escuro -
uma luz quase sedada
em transição
(as árvores confrangem;
os ursos já estendem
as compridas camas)
um sopro
esta alma esvoaçada
um verso
uma folha de mim
à tua janela
deixada.
(Fernando Campanella)
"Again Winter"
Again Winter. Again Winterwind: Against-wind.
Again to the grave in his windingsheet
the body of love so that it lives through to the spring
perhaps.
The twig not yet ready
again from the tree of hope
it broke off it broke
the broken twig sweeps
rootless and useless and sightless through lanes and drains in the
winterwind.
Again in the wind
split the seams of pictures so cheap
flutter in tatters the songs in a hurry
fly away nocturnal birds so holy:
Jacob misses his hour.
Again against the wind
bent and blind words drag themselves
words without hosts
wander into their winter.
Curly from clouds
drops drowsiness
softly wintering on weary lashes
and snowing up the withered mouth
so that when the bridal time is nearing
again it greens in the wind of spring
perhaps.
Hans Werner Cohn
Translated by Frederick G Cohn
"Love Song"
How can I keep my soul in me, so that
it doesn’t touch your soul? How can I raise
it high enough, past you, to other things?
I would like to shelter it, among remote
lost objects, in some dark and silent place
that doesn’t resonate when your depths resound.
Yet everything that touches us, me and you,
takes us together like a violin’s bow,
which draws one voice out of two seperate strings.
Upon what instrument are we two spanned?
And what musician holds us in his hand?
Oh sweetest song.
Rainer Maria Rilke
The translation of the poem by David Hill was removed at the request of the author. Thanks
A tradução do poema feita por David Hill foi retirada a pedido do autor. Obrigada
quarta-feira, 14 de maio de 2008
"Outono"
O outono é pomo... É puro pomo o outono.
Pomo de sonho e de recolhimento,
pendendo, longe do amargor violento,
num perdido pomar de sombra e sono.
Há o vento, é certo, o lamentoso vento,
uivando, uivando como cão sem dono.
E a tristeza passando a passo lento
na alameda... E as lembranças. E o abandono.
Mas há também, no outono, essa doçura,
essa total renúncia de oferenda,
esse eterno alheiamento à dor e ao mal,
que faz do pomo uma presença pura
da bondade de Deus na ânsia tremenda,
no degredo da angústia universal.
Tasso da Silveira
Poemas de Antes – l.966 –
"Fronteira"
Há o silêncio das estradas
e o silêncio das estrelas
e um canto de ave, tão branco,
tão branco, que se diria
também ser puro silêncio.
Não vem mensagem do vento,
nem ressonâncias longínquas
de passos passando em vão.
Há um porto de águas paradas
e um barco tão solitário,
que se esqueceu de existir.
Há uma lembrança do mundo
mas tão distante e suspensa...
Há uma saudade da vida
porém tão perdida e vaga,
e há a espera, a infinita espera,
a espera quase presença
da mão de puro mistério
que tomará minha mão
e me levará sonhando
para além deste silêncio,
para além desta aflição.
Tasso da Silveira
in "Regresso à Origem" (1960).
"Canção"
Quando a alta onda de poesia
veio do arcano profundo,
no pobre e efêmero mundo
o eterno pôs-se a pulsar.
Vidas se transfiguraram,
permutaram-se destinos.
O azul se fez mais etéreo,
estradas mais se alongaram,
silêncio cantou na aldeia
sino ficou a escutar,
moeu trigo a lua cheia,
lampião de rua deu luar,
a água mansa da lagoa
ergueu-se em repuxo límpido
e se esqueceu de tombar,
alvas estrelas em bando
desceram lentas pousando
sobre a terra e sobre o mar.
Tasso da Silveira
in "Regresso à Origem" (1960)
POETAS do modernismo: antologia crítica. Org. Leodegário A. Azevedo Filho. Brasília: INL, 1972. v.4, p.69. (Literatura brasileira, 9C)
"Canção"
No fim de contas, um pássaro
cantando na noite densa
é coisa que a gente encontra
muitas vezes, mesmo longe
do vago mundo da lenda.
Alma é dor, mas também êxtase.
E quando menos se espera
da areia surge uma fonte,
nasce uma rosa na sombra,
canta um pássaro na treva.
A amada chegando tímida
é a rosa por que esperamos,
o amigo, uma fonte fresca,
e a lua no céu acesa
vale um pássaro cantando.
Solta um pássaro notívago
profunda e grave cantiga
no entanto pura e singela:
isto ocorre quando o Poeta
canta na noite da vida.
Tasso da Silveira
1.895-1.968
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