A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

Seja bem-vindo. Hoje é
Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O C I S N E



Este sacrifício de avançar
pelos feixes do irrealizado
lembra um cisne, altivo a caminhar.


E a morte – esse nada mais buscar
do chão diariamente repisado –
lembra a sua angustia de pousar


sobre as águas que o recebem mansas
e cedem sob ele, em suaves tranças
de marolas que cercá-lo vem;
enquanto ele, calmo e independente,
segue sempre majestosamente
como ao seu capricho lhe convém.



Rainer Maria Rilke
In: Poemas
Tradução: Geir Campos
(Editora José Olympio)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

o sol do meio dia



o sol do meio dia
não veio nos visitar
meu anjo
não guardou
o lugar na primeira fila
o filme está prestes a começar

guerreiros inflamados
desnutridos de cultura
com armas em punho
espumam líquido rubro
conspiram contra almas
(ainda inocentes)

o sorriso
uma uzi
me faz de alvo
de repente
vi meu escalpo
sangrar
feliz
em suas mãos

herói sem nome
frente ao espelho
diz;
- olá!

bússola sem controle
faz o caminho correto
leva
a lugar nenhum

seres devassos
sussurram preces bucólicas
um cai
outro levanta
traz migalhas de carinho

minha metade homem
sente saudade
a outra
sonha ainda te encontrar

lobos
(os donos da noite)
querem acabar com
a solidão

frestas de desejo
(suave toque)
comandado pelo
derradeiro sopro da vida

maltrapilhos
famintos
cobiçam o beijo do luar
a mão que acaricia
o amor

o grande pano
dá seu último cochilo
fico sentado
impaciente

aguardo uma
continuação



José Geraldo Neres
(São Paulo 04-12/1966)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Cair da noite


Cai a noite a mudar devagar os vestidos
que uma franja de árvores velhas lhe segura;
olhas: e separam-se de ti as terras:
uma que vai para o céu, outra que cai;

e deixam-te, sem pertenceres de todo a qualquer delas,
não tão escuro como a casa silenciosa,
não tão seguro a evocar o eterno
como a que cada noite se faz estrela e sobe;

e deixam-te (indizível de desenredar!)
a tua vida, angustiada, gigantesca, a amadurar, tal
que, ora limitada ora compreensiva,
alterna em ti - ou pedra ou astro.

Rainer Maria Rilke

Magia das cores



De quando em quando um sopro divino,
Céu em cima, céu no fundo,
Mil canções canta a luz,
No multicolor Deus se fez mundo.


Branco para o preto, quente para o frio
Sentem-se sempre atraídos.
Do eterno turbilhar desse caótico rio
Filtra-se novo o arco-íris.


Pela nossa alma assim se transforma mil vezes em
tortura e encontro
A luz de Deus criada, forma
E como sol a enaltecemos.



Hermann Hesse
In: Caminhada

domingo, 25 de outubro de 2009

TO THE SUPREME BEING



The prayers I make will then be sweet indeed,
If Thou the spirit give by which I pray:
My unassisted heart is barren clay,
Which of its native self can nothing feed:
Of good and pious works Thou art the seed,
Which quickens only where Thou say'st it may;
Unless Thou show to us Thine own true way,
No man can find it: Father! Thou must lead.
Do Thou, then, breathe those thoughts into my mind
By which such virtue may in me be bred
That in Thy holy footsteps I may tread;
The fetters of my tongue do Thou unbind,
That I may have the power to sing of Thee,
And sound Thy praises everlastingly.

Michelangelo
translated into English by William Wordsworth

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

SOBREVIVENCIA


(Kamilk)


Imagens fulgidas bailam no segredo das horas
brincam de luas
redemoinham emoções em espirais de fogo.


Imagens secas ou desfolhadas
manchadas de luz severa
não vestem intenções.


Revoltas em cinzas
brincam de quimeras.


Imagens crianças
risonhas prometem céus.


Imagens esperanças
gritantes
imitam o marulhar das águas.


Imagens retalhos vermelhos
prometem auroras
na crença de todas as horas.


Alvina Nunes Tzovenos
In: Palavras ao Tempo

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Spring



Spring is again returned. The Earth
is like a child, that knows poems,
many, o many . . . . For the rigor
of such long learning she receives the prize.

Strict was her teacher. We appreciate the white
in the old man's beard.
Now, what to name green, or blue,
we may not ask: she knows, she knows!

Earth, now free, you happy one, play
now with the children. We want to catch you,
joyful Earth. Only the joyful are able.

O, what the teacher taught her, such plenteousness,
and that which is pressed in roots and long
heavy trunks: she sings, she sings!


by Rainer Maria Rilke
from Die Sonette an Orpheus 1, no. 21


XXI

Eis outra vez a Primavera. A Terra
é um menino que sabe dizer versos;
tantos, oh tantos... Por aquele esforço
de longo estudo vai receber um prémio.

Severo foi o mestre. Nós gostávamos
da brancura da barba daquele velho.
Agora podemos perguntar o nome
do verde, o azul: ela sabe, ela sabe!

Terra feliz, em férias, brinca agora
co'as crianças. Queremos agarrar-te,
Terra alegre. A mais jovial consegue-o.

Oh, o muito em que o mestre as instruiu
e o impresso nas raízes e nos longos
troncos difíceis: ela o canta, canta!


Rainer Maria Rilke
de 'Sonetos a Orfeu'
tradução de Paulo Quintela

DE UM ANDAR NOTURNO



Tempestade, chuva oblíqua,
negreja a pradaria,
solenes sombras de nuvens
fazem-nos companhia.


De um vão entre escuras nuvens
súbito a se iluminar
a noite esgueira-se e espia
plena de luar.


Límpidas ilhas do céu,
estrelas sóbrias saúdam;
ao luar, fímbria de nuvens
em rios de prata ondula.


Alma, prepara-te, alma!
Das trevas do tempo,
irmãos de longe te acenam
com pisos de ouro.


Alma, responde ao sinal:
banha-te no espaço!
Deus guiará para a luz
teus obscuros passos.



Hermann Hesse
In: Andares

MONTANHAS DENTRO DA NOITE



O lago está apagado,
escuro dorme o canavial
a resmungar em sonho.
Espalham-se terríveis sobre a terra
as longas ameaças das montanhas:
elas não tem descanso,
respiram fundo e ficam
umas de encontro às outras apertadas,
num surdo respirar,
carregadas de forças abafadas
sem remissão numa paixão insaciada.


Hermann Hesse
In: Andares
Tradução; Geir Campos

A UMA FLOR


(Photography by Antônio Carlos Januário)

Hoje é dia de fotos.
Oh, delicada, universal vaidade,
seria impressão ou recolhes as pétalas
ocultando alguma ruga que desponta?

Mas não me respondas.
Alguns segredos melhor se guardam
no faz-de-conta.


Fernando Campanella


TO A FLOWER

It's photo's day.
Is it impression
or recoil you thy petals
concealing some wrinkle
you've relieved?

But don't respond.
Some secrets are better kept
on the make-believe.

Fernando Campanella

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Solidão



A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios...

Rainer Maria Rilke,
in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

DO AZUL, NUM SONETO



Verificar o azul nem sempre é puro.
Melhor será revê-lo entre as ramadas
e os altos frutos de um pomar escuro
- azul de tênues bocas desoladas.


Melhor será sonhá-lo em madrugadas,
fresco, inconstante azul sempre imaturo,
azul de claridades sufocadas
latejando nas pedras – nascituro.


Não este azul, mas outro e dolorido,
evanescente azul que na orvalhada
ficou, pétala ingênua, torturada.


Recupero-o, sem ter, e ei-lo perdido,
azul de voz, de sombra envenenada,
que em nós se esvai sem nunca ter vivido.



Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Antologia Poética

SONETO



Vínhamos de ontem como quem da sorte,
embora finda a vaza, não se olvida
e a quer de novo, quando novas cartas
tem entre as mãos, como nos têm os dias.


Os naipes jogo sobre a mesa. Espero
que cada lance nunca se repita,
mas possa ver o céu que amanhecia
outrora, no que vai surgir da noite


aberta inteira sobre o verde. E quero
que seja agora meu o haver passado
como as tardes se foram, mas as somos.


Incerto, ganho. Pois em nós o tempo
refaz de claridade o que perdemos
e repõe no universo o que foi sonho.



Alberto da Costa e Silva
In: As Linhas da Mão (1978)

sábado, 10 de outubro de 2009

GÔNDOLA



No alto, o azul e o fogacho do sol;
em baixo, o rio eternamente calmo;
sobre a quilha ligeira e graciosa,
coisas de amor e instrumentos de cordas.


Recatados e escuros são teus bordos,
mas com doçura o momento se curte;
estranho e doce é o sonho da morte,
do fim do amor e da juventude.


Rumo a desconhecidos objetivos
meus jovens anos deslizando vão
-como tu, leve e graciosa gôndola,
por luminosa e amável amplidão.



Hermann Hesse
In: Andares
Tradução: Geir Campos

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

L’Ange Du Méridien



Na tormenta que ronda a catedral
Como um contestador que o seu juízo
Mói e remói, é um bálsamo , afinal,
Ser-se atraído pelo teu sorriso:

Anjo ridente, amável monumento,
Com uma boca de cem bocas:não
Te ocorre vislumbrar por um momento
O quanto as nossas horas já se vão

Do teu relógio, onde a soma do dia
É sempre igual, em nítida harmonia,
Como se as nossas horas fossem plenas.

Pétreo, como saber das nossas penas?
Acaso teu sorriso é mais risonho
À noite, quando expões a pedra em sonho?

Rainer Maria Rilke,
Tradução: Augusto de Campos

NO BOSQUE DE FAIAS



Andas fundo sobre o chão dourado dos mares.
Insonoro ascendem, em raios, grisalhos corais,
Fogos fosfóreos fluindo de verdes cristais,
Pérolas afundam no solo murcho-marrom.

Lá fora, das margens argênteas do sol
Pendem as flores-de-sino,
Seduzindo com cálices azuis
O fundo esmeralda.

Max Dauthendey
(1867-1918)
Tradução:André Vallias


IM BUCHENWALD

Du gehst tief auf dem goldenen Grunde der Seen.
Lautlos steigen in Strahlen graue Korallen,
Fließen Phosphorfeuer von grünen Kristallen,
Sinken Perlen auf den braunwelken Grund.

Draußen von silbernen Sonnenufern
Neigen sich Glocken
Und locken mit blauen Kelchen
Die smaragdene Tiefe.

Max Dauthendey

SOMBRA DE NUVENS



Negras rastejam as ondas de hera
Sobre pérgulas de laca dourada.
Nas areias faiscantes, fumegam
Nascentes cálido-violetas.

Borboletas de cinza oscilam e caem
Por entre o éter ressonante.
Os cânticos dos lírios
Inclinam-se e suplicam.


Max Dauthendey
in : Ultra Violett
(Alemanha -1867-1918)
Tradução:André Vallias


WOLKENSCHATTEN

Schwarz schleichen Efeuwellen
Über Goldlackranken.
Im Glimmersande rauchen
Violenschwüle Quellen.

Aschenfalter wehen und tauchen
Durch den klingenden Äther.
Die Gesänge der Lilien
Wanken und flehen.

Max Dauthendey
(Germany -1867-1918)

terça-feira, 6 de outubro de 2009

"Razões adicionais para os poetas mentirem"



Porque o momento
no qual a palavra feliz
é pronunciada,
jamais é o momento feliz.
Porque quem morre de sede
não pronuncia sua sede
Porque na boca da classe operária
não existe a palavra classe operária.
Porque quem desespera
não tem vontade de dizer:
"Sou um desesperado".
Porque orgasmo e orgasmo
não são conciliáveis.
Porque o moribundo em vez de alegar:
"Estou morrendo"
só deixa perceber um ruído surdo
que não compreendemos.
Porque são os vivos
que chateiam os mortos
com suas notícias catastróficas.
Porque as palavras chegam tarde demais,
ou cedo demais
Porque, portanto, é sempre um outro,
sempre um outro
quem fala por aí,
e porque aquele
do qual se fala
se cala.


Hans Magnus Enzensberger
(Alemanha- 1929)
Antologia Bilíngue - Tradução Kurt Scharf e Armindo Trevisan