A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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domingo, 20 de abril de 2008

"Roteiro da sobremorte"




A gente não era esta carne
a gente não era este espinho
a gente não era esta nave...
De repente assumiu-se caminho.
Ela veio estevando através do universo
e a nós associou o joio dos espíritos
(centelhas subitâneas das divinas subjeções)
e a gente entrou como flor na manhã ou
súbita janela deflorada pelo dia...

E como era um só roteiro
sem destino luz nem som
Ela então inconcebível
concebeu-se Armagedom....

Em tudo Ela punha a agonia do amor
na espera.
Os raios de alabastro do sol recém-nascido
tecendo cordões umbilicais no ventre das colinas
o mar ensaiando pulmões ao sopro do vento nas velas
as feras gritando no túnel da noite
ou nascendo uma flor.
E o mistério enredava atos sestros de amor
donde vinham à luz
fantasmas e bastardos e negros e brancos
– os irmãos.

E a gente ia surgindo
da manhã amanhecida
– bom dia, minha amada!
– bom dia, minha vida!

... ia por aí reconhecendo tudo
como se Ela fosse apenas isso
que antecede as lucipotentes primaveras...
A submissão da terra sob os pés
milhões de rotas subjacentes nos passos dos meninos
a ilusão sativa nas constelações dos caminheiros
o luxo de poder julgar irmão o verdadeiros irmão
perder a vida dando nome às pedras
dar uma rosa livre ao mundo que a rejeita...

Mas é tempo de antiflora
sob tanques de antivida
e a liberdade é lançada
sob patas de corrida...

A vida, antes de tudo
é reconhecer...

o que se toca como quem fecunda
o que se encontra onde tudo está perdido
o que tange os rebanhos para os campos
exorciza com fuligem a manhã dos operários
o que conduz à guerra os comungados da pátria
na conquista do após-as-conseqüências...

A mão que solta a esperança no céu escasso da ilha
ave que parte e regressa
à nossa espécie andarilha...

Foi Ela quem traçou à espécie
a porta concessória da agonística
no embate pela igualha mal provada
e pôs setas cruzadas nos caminhos:
– gente pra montar leis timocratas
– coisa pra fazer o pão dos ricos
– gente pra mandar na coisa escrava
– coisa pra poder haver os mitos...

Há gente que sempre ganha
no jogo bilateral
de repente a roda pára
todo o mundo fica igual...

... caminhos do após acontecido
milhões de primaveras saturadas
virgens inseminadas por enguias soltas
em tempo estéril de estiagem
onde são murchas as romãs rubras da carne
e é morta a flor
e é morto o pólen
e os pássaros são mortos.
A esperança... evento interrompido
como a raça humana num centauro.

E a gente sabe que é a Morte
interrompendo o caminho...

Ma de longe eu reconheço
a doce face da amiga
que pôs no termo da carne
as auroras do infinito
e na noite do universo
a alvorada do meu grito:

– bom dia, minha amada
minha vida, minha sorte...
E vou jogar-me nos braços
da Vida de minha Morte...


A. Estebanez

(O poema “Roteiro da Sobremorte” foi destacado com “Menção Honrosa” durante o III Torneio Nacional da Poesia Falada – conferida pelo Departamento de Difusão Cultural da Secretaria de Estado de Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro – Governo Geremias de Matos Fontes – 1970)

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