quarta-feira, 30 de abril de 2008
"De que são feitos os dias?"
De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.
De loucuras, de crime,
de pecados, de glórias,
do medo que encadeia todas essas mudanças.
Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces e em sinistras alianças.
Cecília Meireles.
in Canções.
"MANTIQUEIRA MOUNTAINS"
Do alto destes montes, consigo sentir a terra mais quieta, as cidades sem ruídos, as árvores desenhadas em antigas porcelanas chinesas lá embaixo. Estes tetos são o que preciso para abstrair certa leveza da vida, uma energia menos carregada do humano. Aqui, o silêncio é interrompido apenas pela canção interna do vento ou por um pio rarefeito de um pássaro, sua mística atravessando o ar. O mundo visto daqui é uma aquarela cambiando cores ao longo do dia. Ao longe, às vezes, alguma tempestade se encorpa, confunde céus e terra, e passa.
Quando desço destes refúgios sinto de novo o arsenal de meus conflitos e hábitos. Paciência, não tenho ainda a vibração dos santos. Sorte que destes fundos silêncios e destas úmidas luas vez em quando me embriago. Nestes infinitesimais cortes no tempo posso então amar e me inspirar em minhas nascentes, como Copland em suas Appalachian Springs.
(F.Campanella)
Photo by Fernando Campanella
"Humildade"
Há muito tempo, Vida, prometeste
trazer ao meu caminho uma doida alegria
feita de espírito e de chama,
uma alegria transbordante, assim como esse
alvo clarão que se irradia
da orla festiva das enseadas,
e entre reflexos de ouro se derrama
do cântaro das madrugadas.
Eu, que nasci para um destino manso
de coisas suaves, silenciosas, imprecisas,
e que fico tão bem neste obscuro remanso
onde apenas se infiltra um perfume de brisas,
imagino a tremer: que seria de mim
se essa alegria
esplêndida, algum dia,
houvesse surpreendido a minha inexperiência!...
A vida me iludiu, mas foi sábia na essência.
Minha alegria deveria ser assim:
Pequenina doçura delicada,
gota de orvalho em pétala de flor,
sempre serena lâmpada velada
que me diluísse as brumas do interior.
Sempre serena lâmpada velada,
símbolo do meu sonho predileto...
Se amanhã tu penderes do meu teto
aureolando minha última ilusão,
- para que eu viva em teu amor e em tua paz,
deixa um rastro de sombra pelo chão...
É nesta sombra que hei de me esconder
quando sentir a falta que me faz
a outra alegria que não pude ter!
Henriqueta Lisboa
in "Velário"
(1930 – 1935)
terça-feira, 29 de abril de 2008
"Dúbio"
Um dia, alma criança,
do vento indaguei a idade
e foi o tempo de meu pensamento
o que obtive como verdade.
Do sol, a mesma questão lançada,
como solução tive o tempo de meus olhos
de minha pele à luz disposta.
Estranhas, dúbias respostas:
o universo a um seco estalar de minha finitude
se desmancha, então, e passa?
Ou trago , dos cumes da criação,
em tudo que brota, rebrota,
a mais irrestrita ,
a mais eterna proposta?
Fernando Campanella
Fevereiro 2.008
Imagem:
"Le Voyageur contemplant une mer de nuages"
Caspar David Friedrich
domingo, 27 de abril de 2008
"TRANSITANDO PÁSSAROS"
Hoje no dia dos meus anos
Saio da toca das palavras
E vou festejar no telhado
Por horas ali ficando, um pombo
Ou um tímido rato,
de papo pra tarde virado.
Hoje não mais sou um bicho doído
Nem trago o gosto antigo
De um paletó ou de um guarda-chuva pendurados.
Transito pelo tempo dos pássaros:
Quem me conta os anos ,
quem na memória me guarda?
Se a luz incide, sei que o dia perdura,
E me ilumina por dentro esse fato.
Quando escurece vou dançar conforme a sombra,
contar estrelas intermináveis ou adormecer no anonimato.
Mas não quero agora falar de sombras,
A noite, eu sei, a noite já é bem outro trato.
(Fernando Campanella)
Photo by Fernando Campanella
'AO SAL'
AO SAL
(A Neruda)
Nega-me tua alma –
Esta minha alma mesma
Que me furtas -
E é o degredo irremediável
que, em troca, me concedes.
Nega –me tua chama
Que tremula no delírio dos deuses,
Teu anjo, que ressona no silêncio dos lagos,
Nega-me, nega-me tua espuma
Que regurgita no sonho das aves
(eu sou o teu infante pássaro)
E é sem minhas fontes que me deixas,
Sem meu ar extasiado.
Nega-me teu mar, tua tempestade,
O sonho e a fantasia,
E me deixas a seco, ao sal amargo
De cada dia.
Nega-me teu olhos e já triste não me enxergo
Que a felicidade, embora utopia das sombras,
É também certa luz incidente
Que só de teu olhar
meus olhos como bênção recebem.
(Fernando Campanella)
quinta-feira, 24 de abril de 2008
"Venho de longe, trago o pensamento"
Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonia.
Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.
Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha
Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.
Paulo Bomfim
quarta-feira, 23 de abril de 2008
"Ernste Stunde"
Wer jetzt weint irgendwo in der Welt,
ohne Grund weint in der Welt,
weint über mich.
Wer jetzt lacht irgendwo in der Nacht,
ohne Grund lacht in der Nacht,
lacht mich aus.
Wer jetzt geht irgendwo in der Welt,
ohne Grund geht in der Welt,
geht zu mir.
Wer jetzt stirbt irgendwo in der Welt,
ohne Grund stirbt in der Welt:
sieht mich an.
Rainer Maria Rilke
****
"Solemn Hour"
Whoever now weeps somewhere in the world,
weeps without reason in the world,
weeps over me.
Whoever now laughs somewhere in the night,
laughs without reason in the night,
laughs at me.
Whoever now wanders somewhere in the world,
wanders without reason out in the world,
wanders toward me.
Whoever now dies somewhere in the world,
dies without reason in the world,
looks at me.
Rainer Maria Rilke
****
"Hora Grave"
Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.
Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.
Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.
Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.
Rainer Maria Rilke
"OF ROSES"
Let’s toast, lovers, each morn,
With a caring tinkling of petals,
And the finest liquor
of a rose
So finite & everlasting,
So obvious & anew,
So painfully a thorn
And lovingly a rose
Still.
That’s love
In its redundant,
Yet most irreproachable
Metaphor –
All the rest is merely prose.
(Fernando Campanella)
*****
"DE ROSAS"
Brindemos, amantes, a cada manhã
com um suave tilintar de pétalas,
com o mais fino licor de uma rosa
tão finita & sempre viva,
tão óbvia & super nova,
tão dolorosamente espinho
e ainda amorosamente rosa:
eis o amor em sua mais redundante
e ainda irretocável metáfora -
todo o resto é meramente prosa.
(Fernando Campanella)
Photo by Fernando Campanella
"Autumn Day"
Lord: it is time. The summer was immense.
Lay your shadow on the sundials
and let loose the wind in the fields.
Bid the last fruits to be full;
give them another two more southerly days,
press them to ripeness, and chase
the last sweetness into the heavy wine.
Whoever has no house now will not build one
anymore.
Whoever is alone now will remain so for a long
time,
will stay up, read, write long letters,
and wander the avenues, up and down,
restlessly, while the leaves are blowing.
Rainer Maria Rilke
segunda-feira, 21 de abril de 2008
"Balm"
Love is sad - would my widows
proclaim.
But said the philosopher:
Joy courts the deepest eternity.
All in all, I leave the valley
where the shadows rise domain.
The crickets are tinkling,
the moonlight is embalming
the trees-
wait , shall you, my love,
I can now see the trail.
I am returning to thee.
(Fernando Campanella)
Photo by Fernando Campanella
“Bálsamo”
O amor é triste – proclamam minhas viúvas.
Mas rebate o filósofo: a alegria corteja
A mais profunda eternidade.
Uma coisa pela outra, abandono o vale
Onde as sombras compõem a enormidade.
Os grilos agora tilintam, e a luz da lua
impregna as árvores de um bálsamo –
Meu amor, se possível, me aguarda,
Retorno a ti, clara a trilha
Que agora a meus olhos se abre.
(F. Campanella)
domingo, 20 de abril de 2008
"Antíqua IV"
"Antíqua III"
"Antíqua II"
"Antíqua I"
Meu coração tem o lirismo rude
das charnecas (acridoce palavra).
Chegam os ceifeiros e o cortam,
arrancam –lhe os capins e piolhos
mas traz a teimosia,
a suave resistência dos restolhos
(bela palavra) : tosa-me o tempo ,
retrocedo, tudo me desaba
mas o que me podam é o que cresço.
(F.Campanella)
Photo by Fernando Campanella
"Roteiro da sobremorte"
A gente não era esta carne
a gente não era este espinho
a gente não era esta nave...
De repente assumiu-se caminho.
Ela veio estevando através do universo
e a nós associou o joio dos espíritos
(centelhas subitâneas das divinas subjeções)
e a gente entrou como flor na manhã ou
súbita janela deflorada pelo dia...
E como era um só roteiro
sem destino luz nem som
Ela então inconcebível
concebeu-se Armagedom....
Em tudo Ela punha a agonia do amor
na espera.
Os raios de alabastro do sol recém-nascido
tecendo cordões umbilicais no ventre das colinas
o mar ensaiando pulmões ao sopro do vento nas velas
as feras gritando no túnel da noite
ou nascendo uma flor.
E o mistério enredava atos sestros de amor
donde vinham à luz
fantasmas e bastardos e negros e brancos
– os irmãos.
E a gente ia surgindo
da manhã amanhecida
– bom dia, minha amada!
– bom dia, minha vida!
... ia por aí reconhecendo tudo
como se Ela fosse apenas isso
que antecede as lucipotentes primaveras...
A submissão da terra sob os pés
milhões de rotas subjacentes nos passos dos meninos
a ilusão sativa nas constelações dos caminheiros
o luxo de poder julgar irmão o verdadeiros irmão
perder a vida dando nome às pedras
dar uma rosa livre ao mundo que a rejeita...
Mas é tempo de antiflora
sob tanques de antivida
e a liberdade é lançada
sob patas de corrida...
A vida, antes de tudo
é reconhecer...
o que se toca como quem fecunda
o que se encontra onde tudo está perdido
o que tange os rebanhos para os campos
exorciza com fuligem a manhã dos operários
o que conduz à guerra os comungados da pátria
na conquista do após-as-conseqüências...
A mão que solta a esperança no céu escasso da ilha
ave que parte e regressa
à nossa espécie andarilha...
Foi Ela quem traçou à espécie
a porta concessória da agonística
no embate pela igualha mal provada
e pôs setas cruzadas nos caminhos:
– gente pra montar leis timocratas
– coisa pra fazer o pão dos ricos
– gente pra mandar na coisa escrava
– coisa pra poder haver os mitos...
Há gente que sempre ganha
no jogo bilateral
de repente a roda pára
todo o mundo fica igual...
... caminhos do após acontecido
milhões de primaveras saturadas
virgens inseminadas por enguias soltas
em tempo estéril de estiagem
onde são murchas as romãs rubras da carne
e é morta a flor
e é morto o pólen
e os pássaros são mortos.
A esperança... evento interrompido
como a raça humana num centauro.
E a gente sabe que é a Morte
interrompendo o caminho...
Ma de longe eu reconheço
a doce face da amiga
que pôs no termo da carne
as auroras do infinito
e na noite do universo
a alvorada do meu grito:
– bom dia, minha amada
minha vida, minha sorte...
E vou jogar-me nos braços
da Vida de minha Morte...
A. Estebanez
(O poema “Roteiro da Sobremorte” foi destacado com “Menção Honrosa” durante o III Torneio Nacional da Poesia Falada – conferida pelo Departamento de Difusão Cultural da Secretaria de Estado de Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro – Governo Geremias de Matos Fontes – 1970)
sábado, 19 de abril de 2008
"JUNTO DE HERMANN HESSE"
As chuvas de março já começam a ensopar os jardins, a quase transbordar os rios. As tardes de março se tornam mais leves, já se aliviando do calor que vai indo embora lentamente.Tardes para vôos de bicicletas, mergulhos em nervuras de folhas outonais, caminhadas no sempre renovado coração da natureza.
Como Minas está arraigada em mim! E ainda que sensação de estranhamento e exílio! Meus olhos vão se enchendo de montanhas, copas de árvores, sibipirunas e capins. E vão seguindo as comunidades voantes das garças, recortes brancos itinerantes contra o céu. Despejando seus últimos pingos de ouro nos pastos, o sol realiza a alquimia final do dia. E Minas ainda resiste.
Acodem-me à mente memórias, do mundo, de mim. Lembro, vivo lembrando. Mas melhor agora estancar este fluxo perpétuo de imagens, embarcar nesta solidão da quase-noite. A primeira estrela já pulsa o olho neutro indecifrável.
Melhor ainda, quem sabe, trazer à alma o consolo universal do Tao:
“...E no entanto, sossega meu coração.
Tu vives no seio da mãe do universo.”
E espalhar pelo corpo uma fina onda de trégua e paz. Ouvir sinos longínquos, ver luzes de casas pequeninas engastadas nas serras, ou até mesmo pintar aquarelas fluidas mentalmente. Ou procurar alguém , algum ser, com quem compartir esta tarde. Mas quem viajaria assim tarde a dentro? A cidade arde suas luzes, regurgita seus ruídos e vaidades, lustra suas armaduras cimento e vidro. A cidade já encontrou o que lhe basta e consuma-se em seu próprio tempo.
Vejo, agora, ao longe, no cimo de uma montanha, uma torre de televisão, delicada como um brinquedo. Queria pintar uma aquarela, agora de verdade, neste momento, ilustrar um livro de meus poemas, de minhas miúdas andanças. Depois, beber copos e mais copos de vinho, desabotoar os meus grilhões de Minas, e rir, rir, rir de tanta beleza e bobagem. Ah, sim, junto de Hermann Hesse.
(F. Campanella, 13.03.94)
Tela "Vinho e rosas" João Barcelos.
"Ventos do Leste"
Esta brisa de outono me traz, íntima e leve, um poema de Bashô. Desperta aromas maduros , nascentes e frutos, traz também o viés da vida, , fogo e cinza, imagem ressequida, amplo leque de pretéritos e prenúncios. Este vento remoto nos pinheiros do leste tocou poetas longínquos e agora vibra minhas cordas, concede-me colo e já não sou o pária da noite, o grande órfão do mundo. Este sopro traduzido , transportado a laranjeiras, paisagens de minha vida, me abre o grande livro da alma : minha natureza é grande mãe e madrasta de meus versos.
(F.Campanella)
"TRÊS MAGOS"
Subo, uma vez mais, pelas encostas de Minas, avisto a terra um pouco mais do alto. Vejo árvores decrépitas, e parasitas como seus hóspedes, troncos abraçados em aberração Darwiniana, em singelo desenho de amor, nuvens furtando cores ao sol poente, e a sentinela dos montes, contrafortes delimitantes da geografia onde me espaço.
Na estrada cercada de matas, coelhos selvagens saltam distraídos, dos lados.
E voam corujas já à boca da noite; um enorme pássaro, em retardo ao ninho, ameaça asas à minha frente.
Impressões de uma tarde, um prenúncio de noite, quando a natureza se insinua em suas intrigantes faces, e me inspira uma compaixão despojada, uma doce arritmia, com seus inusitados traços.
No céu, uma meia lua e lampejos de três risonhos magos (ou três comadres Marias) me dão boa-noite ao esmorecer de mais um dia."
(Fernando Campanella, 25 de Março de 2007)
Photo by Fernando Campanella
segunda-feira, 14 de abril de 2008
"Saudades que são?"
Saudades o que são? São cinzas frias
Que foram fogo e luz no coração;
Mas cinzas tristes, pálidas e frias
Sepultadas no fundo dum vulcão.
Que são saudades? Sombras fugidias
Que em vão tentamos alcançar, em vão;
Sombras errantes pelas noites frias
Nos caminhos sem luz do coração.
Saudade é fumo que uma brisa ondeia,
Vento triste que chora por alguém;
Ondas mortas rojando-se na areia,
Sombras que vindas de outro mundo, além,
Formam a névoa que hoje me rodeia,
Sombras perdidas, sombras sem ninguém ...
Anrique Paço D'Arcos
(Henrique Belford Corrêa da Silva
Portugal- 1906-1993-)
"Amor Perfeito"
Abro a caixa de música
E salta a infância
em pássaro refeito.
Dançarinos e sons
são mais que coreografia
ou especiais efeitos
deste vôo
que é delicado,
que é simetria.
(Amante e objeto amado
em trama
de amor perfeito
tecidos.)
Cortem-nos o instante das cordas
- plunct -
e somos anjos opacos,
somos rasteiros e frios.
A nós, o dom e a maldição
De sonhar.
(Fernando Campanella, 1986)
sexta-feira, 11 de abril de 2008
"Natureza Harmoniosa"
Pego de um búzio, levo-o aos meus ouvidos
E ponho-me a escutar, ouvido atento,
Nele os sons que murmuram confundidos
Com idéias ainda em pensamento.
Que serão esses sons indefinidos
De um vago e misterioso sentimento:
A voz da vaga, ou os cânticos do vento
Na saudade do mar reproduzidos?
Esses confusos, múrmuros rumores
serão os ecos das canções saudosas
Dos Marinheiros e dos pescadores?
Ou são vozes das ondas marulhosas,
Segredando os marítimos amores,
Remotas, abafadas, silenciosas? ...
Da Costa e Silva
in "Poesias Completas"
1885-1950
"NATUREZA MISTERIOSA"
Essa voz interior, que sempre ouvimos,
Ainda dizer não pode o que nós somos:
Tudo o que em vão pensamos e sentimos
É a antítese talvez do que supomos.
No seio panteísta de onde vimos,
Árvores – mães de flores e de pomos,
Arbustos e ervaçais, musgos e limos,
Tem o mesmo poder do que dispomos.
Não logramos saber quanto sabemos:
Névoas volúveis, ilusórios fumos,
São as idéias que de tudo temos.
Vindos da mesma essência, do mesmo húmus,
Vivemos de contrastes e de extremos
Sem ter destino, por incertos rumos ...
Da Costa e Silva
in "Poesias Completas"
"Horas Mortas"
Horas mortas ... silêncio do luar
Descendo sobre as águas;
E os rochedos na sombra a meditar
E o vento adormecendo as misteriosas mágoas.
Horas mortas ... Fantástica paisagem ...
Ó bailado das sombras pelo chão!
É quando me aparece o luar da sua imagem
No sem luz que leva ao coração.
Horas mortas de sonho e de mistério,
Em que as almas e as coisas entristecem;
E os mortos, ao luar, no cemitério,
Se levantam da campa e os vivos adormecem ...
Horas mortas da noite, em que medito;
Paisagem da saudade ...
Horas mortas, perdidas no infinito,
Quando a vida se eleva e alcança a Eternidade ...
Anrique Paço D’Arcos
in "Poesias Completas"
"NÉVOA'
Que densa névoa cobre a terra inteira!
Dir-se-ia que pousou na terra o próprio céu ...
E lembra um andorinha prisioneira
Dum condor que sobre ela as asas estendeu.
Moldados pela noite à sua negra imagem,
Cismam meus olhos fundos como um rio.
Tornam mais densa ao longe a noite da paisagem
Os montes dum perfil ascético e sombrio.
E esqueço-me a pensar se tudo o que me envolve,
As árvores, os montes e os rochedos,
Não é um sonho só que em névoa se dissolve,
Como ao quebrar da luz, sombras, noturnos medos.
Tão ausente me sinto, tão distante,
Que um sonho me parece a própria vida;
A névoa cresce, aumenta a cada instante ...
E a minha sombra jaz na sombra confundida ...
Anrique Paço D’Arcos
in "Poesias Completas"
"Lamentos em voz baixa"
"Canção"
“Permanência da poesia”
Quando a luz desaparecer de todo,
Mergulharei em mim mesmo e te procurarei lá dentro.
A beleza é eterna.
A poesia é eterna.
A liberdade é eterna.
Elas subsistem, apesar de tudo.
É inútil assassinar crianças. É inútil atirar aos cães os que,
de repente, se rebelam e erguem a cabeça olímpica.
A beleza é eterna. A Poesia é eterna. A liberdade é eterna.
Podem exilar a poesia: exilada, ainda será mais límpida.
As horas passam, os homens caem,
A poesia fica.
Aproxima-te e escuta.
Há uma voz na noite!
Olha:
É uma luz na noite!
Emílio Moura
"AQUI TERMINA O CAMINHO "
Os sinos cantando, as sombras, todas se diluindo
dentro da tarde. Dentro da tarde, o teu grave pensamento de exílio.
Por que ainda esperas? Aqui termina o caminho,
aqui morre a voz, e não há mais eco nem nada.
Por que não esquecer, agora, as imagens que tanto nos perturbaram
e que inutilmente nos conduziram
para nos deixar, de súbito, na primeira esquina?
Essa voz que vem, não sei de onde,
esses olhos que olham, não sei o quê,
esses braços que se estendem, não sei pra onde...
debalde esperarás que o eco de teus passos acorde os espaços que já não tem voz.
As almas já desertaram daqui.
E nenhum milagre de espera,
nenhum.
Emílio Moura
Minha tristeza – chama indefinida
Que ilumina e me queima, num momento,
trazendo cinzas para a minha vida,
a amargura vida de meu pensamento.
Sombra – nem foges numa luz, perdida.
E a tua voz é como um som nevoento,
vago, a dizer a história comovida
do meu tormento, desse vão tormento.
Lembras, às vezes, a linguagem vaga
(onde histórias mais líricas e belas?)
que o céu murmura e que a distância apaga.
Que o céu também possui seus pensamentos,
e eles são as irônicas estrelas
na linguagem dos crivos sonolentos...
Emílio Moura
1923
"Canção"
Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.
Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.
Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.
Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.
Que tudo o mais é perdido.
Emílio Moura
1902-1971
terça-feira, 8 de abril de 2008
"Le ciel est par-dessus le toit"
Le ciel est, par-dessus le toit,
Si bleu, si calme !
Un arbre, par-dessus le toit,
Berce sa palme.
La cloche, dans le ciel qu'on voit,
Doucement tinte.
Un oiseau sur l'arbre qu'on voit
Chante sa plainte.
Mon Dieu, mon Dieu, la vie est là,
Simple et tranquille.
Cette paisible rumeur-là
Vient de la ville.
- Qu'as-tu fait, ô toi que voilà
Pleurant sans cesse,
Dis, qu'as-tu fait, toi que voilà,
De ta jeunesse ?
Paul Verlaine
"Sinos"
Dois sinos tocam ao finado,
um maior, como que do céu
chamando,
e a alma melancólica
respondendo
‘já vou indo, meu pai’,
é o sino menor dobrado.
Outro sino
nove vezes na tarde badala
ad aeternum evocando a chegada
do antigo anjo dos mitos .
Aqui, sinos
não celebram grandes impérios
nem cataclismos rememoram
nem por isto menos sino se torna
o eco do longínquo que sentimos.
Aqui também bate o sineiro
Sinos doces, pequeninos
e da branca torre
todo ano
como num encanto
desce do Deus menino
um soprinho.
(F.Campanella)
Foto by Fernando Campanella
São Tomé das Letras- MG-BR-
"There's a certain slant of light"
There's a certain slant of light,
On winter afternoons,
That oppresses, like the weight
Of cathedral tunes.
Heavenly hurt it gives us;
We can find no scar,
But internal difference
Where the meanings are.
None may teach it anything,'
Tis the seal, despair,-
An imperial affliction
Sent us of the air.
When it comes, the landscape listens,
Shadows hold their breath;
When it goes, 't is like the distance
On the look of death.
Emily Dickinson
"L'Eternité"
Elle est retrouvée.
Quoi ? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.
Ame sentinelle,
Murmurons l'aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.
Des humains suffrages,
Des communs élans
Là tu te dégages
Et voles selon.
Puisque de vous seules,
Braises de satin,
Le Devoir s'exhale
Sans qu'on dise : enfin.
Là pas d'espérance,
Nul orietur.
Science avec patience,
Le supplice est sûr.
Elle est retrouvée.
Quoi ? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.
Artur Rimbaud
"Poema para habitar"
A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.
Que lhe limpem
os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.
Até
que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.
Albano Martins
Foto:
Parque Henrique Lages RJ-BR-
"Viagem"
"Ao cair da tarde"
Agora nada mais. Tudo silêncio. Tudo.
Esses claros jardins com flores de giesta,
Esse parque real, esse palácio em festa,
Dormindo à sombra de um silêncio surdo e mudo...
Nem rosas, nem luar, nem damas... Não me iludo
A mocidade aí vem, que ruge e que protesta,
Invasora brutal. E a nós que mais nos resta,
Senão ceder-lhe a espada e o manto de veludo?
Sim, que nos resta mais? Já não fulge e não arde
O sol! E no covil negro desse abandono,
Eu sinto o coração tremer como um covarde!
Para que mais viver, folhas tristes de outono?
Cerra-me os olhos, pois, Senhor. É muito tarde.
São horas de dormir o derradeiro sono.
Emiliano Perneta
II
En su llama mortal la luz te envuelve.
Absorta, pálida doliente, así situada
contra las viejas hélices del crepúsculo
que en torno a ti da vueltas.
Muda, mi amiga,
sola en lo solitario de esta hora de muertes
y llena de las vidas del fuego,
pura heredera del día destruido.
Del sol cae un racimo en tu vestido oscuro.
De la noche las grandes raíces
crecen de súbito desde tu alma,
y a lo exterior regresan las cosas en ti ocultas.
De modo que un pueblo pálido y azul
de ti recién nacido se alimenta.
Oh grandiosa y fecunda y magnética esclava
del círculo que en negro y dorado sucede:
erguida, trata y logra una creación tan viva
que sucumben sus flores, y llena es de tristeza.
Pablo Neruda
"Veinte poemas de amor y una canción deseperada"
"A lecture upon the shadow"
Stand still, and I will read to thee
A lecture, Love, in Love's philosophy.
These three hours that we have spent,
Walking here, two shadows went
Along with us, which we ourselves produced.
But, now the sun is just above our head,
We do those shadows tread,
And to brave clearness all things are reduced.
So whilst our infant loves did grow,
Disguises did, and shadows, flow
From us and our cares ; but now 'tis not so.
That love hath not attain'd the highest degree,
Which is still diligent lest others see.
Except our loves at this noon stay,
We shall new shadows make the other way.
As the first were made to blind
Others, these which come behind
Will work upon ourselves, and blind our eyes.
If our loves faint, and westerwardly decline,
To me thou, falsely, thine
And I to thee mine actions shall disguise.
The morning shadows wear away,
But these grow longer all the day ;
But O ! love's day is short, if love decay.
Love is a growing, or full constant light,
And his short minute, after noon, is night.
John Donne
"Dreams"
Oh! that my young life were a lasting dream!
My spirit not awakening, till the beam
Of an Eternity should bring the morrow.
Yes! tho' that long dream were of hopeless sorrow,
'Twere better than the cold reality
Of waking life, to him whose heart must be,
And hath been still, upon the lovely earth,
A chaos of deep passion, from his birth.
But should it be- that dream eternally
Continuing- as dreams have been to me
In my young boyhood- should it thus be given,
'Twere folly still to hope for higher Heaven.
For I have revell'd, when the sun was bright
I' the summer sky, in dreams of living light
And loveliness,- have left my very heart
In climes of my imagining, apart
From mine own home, with beings that have been
Of mine own thought- what more could I have seen?
'Twas once- and only once- and the wild hour
From my remembrance shall not pass- some power
Or spell had bound me- 'twas the chilly wind
Came o'er me in the night, and left behind
Its image on my spirit- or the moon
Shone on my slumbers in her lofty noon
Too coldly- or the stars- howe'er it was
That dream was as that night-wind- let it pass.
I have been happy, tho' in a dream.
I have been happy- and I love the theme:
Dreams! in their vivid coloring of life,
As in that fleeting, shadowy, misty strife
Of semblance with reality, which brings
To the delirious eye, more lovely things
Of Paradise and Love- and all our own!
Than young Hope in his sunniest hour hath known.
Edgar Allan Poe
terça-feira, 1 de abril de 2008
"POESIS"
A poesia é algo assim
Como uma dúbia certeza,
Aposta de um tudo
No oco intraduzível do nada,
Algo como a luz-menina dos olhos
Entreabrindo a opacidade,
Sumo delicado
Espremido de alegrias
E enfermidade,
Efemérides
E ainda um certo milagre,
Pérola pescada -
Insípida borboleta dos dias
Pela magia do verbo eterno
Encantada.
(F. Campanella)
Photo by Fernando Campanella
"NINFÉIAS"
Eu vou aonde as nuvens
de impossíveis tons se embriagam,
eu nado onde aquáticos leques
se irisam em sonhos
e por arte do encanto se dissolvem.
Eu furto cores,
clico roxos que se miram
em espelhos que me expandem.
Bebo a luz, traço a alma,
eu sou o impressionista ambulante.
Então nem me perguntes
por quais cambiantes geografias me espalho:
meus olhos são câmeras mimadas
meus pincéis são artífices do instante.
(F. Campanella)
Photo by Fernando Campanella
"AO VENTO"
Fica comigo, mas não posso pedir ao vento
que sopre ao alcance de meu ouvido,
ou à terra que abençoe meus segredos contigo –
nem mesmo da luz querer ouso
que se detenha em meu abrigo.
Quando os dados lançados, e até meu silêncio,
contra toda certeza parece que conspiram
- e caso os dedos do mundo
em suas recurvas unhas nos firam -
releva, e fica comigo: os anjos sabem mais alto
daquilo em que insisto, do que preciso.
(F.Campanella)
(Picture;Joshua Reynolds -Angels' Heads)
"Nightbound"
"I sip the nights,
I'm the restless longings
of past sheperds & ancient bards
(an elated sleepless zombie
eternally wandering , am I? )
the spell of sleeping waves,
the tranquility seas, the mystery capes,
the arboreal secretive design,
I'm Orion's hunter and magi,
the nocturnal, inebriating wine,
I'm the one who drinks and weeps
amber beads at night,
some Gods' wink -
Hush! - but a dream ? -
I'm the moons’ transfigured light ...."
(F. Campanella)
Eu sorvo as noites
Eu sou inquietas saudades
De esquecidos pastores
E bardos primordiais
(um extático zumbi
Eternamente vagando, seria eu?)
a magia de ondas adormecidas,
os mares de tranqüilidade
os cabos misteriosos
o desenho incógnito das árvores
eu sou de Orion o caçador
E os magos , o vinho noturno
Inebriado
o que bebe e lacrimeja
gotas de âmbar à noite,
algum piscar dos deuses
- Silêncio! – apenas um sonho? –
eu sou da lua a luz transfigurada.
F. Campanella
"MEDITATION XVII"
No man is an island. entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main; if a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if a promontory were, as well as if a manor of thy friend's or of thine own were; any man's death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.
(...)
Neither can we call this a begging of misery, or a borrowing of misery, as though we were not miserable enough of ourselves, but must fetch in more from the next house, in taking upon us the misery of our neighbors. Truly it were an excusable covetousness if we did; for affliction is a treasure, and scarce any man hath enough of it. No man hath afflicion enough, that is not matured and ripened by it, and made fit for God by that affliction. If a man carry treasure in bullion or in a wedge of gold, and have none coined into current moneys, his treasure will not defray him as he travels. Tribulation is treasure in the nature of it, but it is not current money in the use of it, except we get nearer and nearer our home, heaven, by it. Another may be sick too, and sick to death, and this affliction may lie in his bowels, as gold in a mine, and be of no use to him; but this bell that tells me of his affliction, digs out, and applies that gold to me: if by this consideration of another's danger, I take mine own into contemplation, and so secure myself, by making my recourse to my God, who is our only security.
John Donne
Donne, John. The Works of John Donne. vol III.
Henry Alford, ed.
London: John W. Parker, 1839. 574-5.
Painting:
"A portrait of Donne as a young man"
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