A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

sábado, 31 de julho de 2010

'Os cisnes'


A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós constantemente
Um lago azul sem ondas, sem espumas,

Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vagamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.

Um dia um cisne morrerá, por certo:
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,

Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne!

Júlio Salusse
(Júlio Mário Salusse- RJ- 1872-1948)

Canção de inverno


Cai a neve, de mansinho..
Cai a neve em meus cabelos,
Que eram de ouro e são de luar.


Altas torres de castelos...
Cai a neve, de mansinho,
Para os sonhos sepultar.


Cai a neve... tão de leve!


No meu rosto, brando e brando.
Será neve resvalando
Ou é pranto a deslizar?



Helena Kolody
In: Poemas do Amor Impossível

sexta-feira, 30 de julho de 2010

***

(Foto by Fernando Campanella)

Ao longo do inverno
a branca pluma da paina
pinta a grama verde.

Delores Pires

quinta-feira, 29 de julho de 2010

"Viagem"


Olhar perdido pelo jardim.

Divagações

Nascente dos pensamentos
me conduzem além de outros portais.

Nas margens, acenos breves
sinalizando minha presença.
Nada digo,
inexorável trajeto
das leves emoções.

O epílogo me atrai
para meu coração,
marcado pelo intenso
sentido vital do passeio.

Volto então com meu olhar
do qual quase fugi de mim
sem nexo.

Quem vai entender um vôo livre?
Ou um amor intenso não vivido?

Aharon

Nelson Aharon
Joinville, Santa Catarina, Brazil

quarta-feira, 28 de julho de 2010

'D'Oiro'

(Reflexos de folhas no rio Sapucaí)
(Foto por Fernando Campanella)

La realidad y la miseria me oprimen y, sin embargo, sueño todavia.
( Emile Zola)

Antes que o amor entristeça
e a sombra nos colha em seus laços
caminhemos, as mãos dadas, Lídia,
pela fímbria d'oiro destes jardins.

Fernando Campanella

terça-feira, 27 de julho de 2010

Tal é a nostalgia...


Tal é a nostalgia: habitar sobre as ondas
e jamais ter abrigo no tempo.
E tais são os desejos: diálogo em surdina
da hora cotidiana com a eternidade.

Tal é a vida. Até o dia em que de ontem
se eleva a mais solitária dentre todas essas horas,
e, sorrindo diferentemente das irmãs,
em silêncio se oferece ao eterno.
Cala-se, como uma oferta ao eterno.


Rainer Maria Rilke,
in Antologia Poética
Tradução Geir Campos

'Recordação'


E tu esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.

Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.

E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou.


Rainer Maria Rilke,
in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

sábado, 24 de julho de 2010

Uma armadilha no peito

(Paint by Usha N - Auburn, AL - United States)

Em madrugadas, vagamente obscuras,
descrevo sombras longínquas,
que perseguem a minha sombra.
Os mais premonitórios sulcos nocturnos
brilham-me nos pés.
Uma armadilha no peito relembra
a exacta adolescência das pálpebras,
quando exibia, no sorriso,
a luz da primavera.
Era menina e havia nos meus olhos tanta fé
que, nem o céu nem o mar excediam,
em grandeza, o meu olhar.


Graça Pires
De 'Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos', 2007

Esta impaciência que me divide

(Paint by Leah West)


Esta impaciência que me divide
esta melancolia que me entontece
este desejo pungente de estar um pouco em toda parte
esta incapacidade de aquietar-me
este sonho de ser depressa, antes da morte
de ser o que?
de concluir que destino longamente esperado,
entrevisto na bruma de dias não vividos,
no sonho de noites calmamente extintas?
- de ser estritamente o servidor adequado,
o mensageiro que entrega a mensagem no exato instante
o servidor que dá conta de seu trabalho no prazo certo
o que ouve o chamado e vai,
recebe as ordens e cumpre,
e dá todos os dias de seu tempo humano
para esse fim obscuro,
e está continuamente correndo por dentro de si,
em varandas, passadiços, subterrâneos,
apenas entrevendo em adeuses a estrela que ama,
o pássaro que o comove,
a extensão da terra iluminada, do mar imenso
por onde, entre suas tarefas,
suspiro, saudade, esperança, obediência, renuncia,
em pensamentos foge,
em pensamentos volta,
subitamente enfermo da culpa
de assim fugir,
de assim voltar.

1961



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

sexta-feira, 23 de julho de 2010

'CONFISSÃO'

(Paint by Willem Haenraets)

Feliz de mim quando tu vens
ao confessionário do meu coração
falar do amor que ainda me tens
onde perdestes tua própria alma
num labirinto de solidão...

Louvores ao amor que te absolve
e te devolve a paz e a luz e a calma
sempre que lhe dás a oportunidade
de reencontrar a tua alma...

Bem-aventuradas são as almas
que confessam seu amor perdido
do qual nunca se perderam...

É preciso viver para perder-se
o quanto é necessário perder-se
para se encontrar na solidão...

Bem-aventuradas as nossas almas
separadas... Eis porque juntas,
jamais se perderão...

Afonso Estebanez

quarta-feira, 21 de julho de 2010

MITOLOGIA REAL DE INVERNO

Nesse céu oneroso
galáxia peregrina, semens de divindades,
em certo entardecer, intermitências-luzes:
deriva a bestialidade fria das coisas
materiais vagando no intemporal, sem fim.
Enquanto a ingenuidade infantil dos animais
Em seu natural pesadelo, sonha `a deriva...
sem inveja dos homens e dos seus deuses,
sem querer saber se somos gente ou não.
Nesse céu oneroso.

Amparo, 27.06.88


Vicente Cechelero
(Ascurra, SC, 13 de Janeiro de 1950 — Navegantes, SC, 16 de Abril de 2000)

domingo, 18 de julho de 2010

Insisto num rosto efémero

(William C. Bryant)

Do outro lado do disfarce,
insisto num rosto efémero.
A que punhal ou perigo me insinuo?
Sou o encontro adiado,
neste prenúncio de muros
ou de mãos indomáveis.
Quero, no reverso da névoa,
onde não dancei os sonhos,
um teatro de papel.
Diante da muralha da noite
ensaio as sombras sob as pálpebras
e altero o nome das cantigas
que me circulam no sangue, em sobressalto

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

O mecanismo do vento


Entender o mecanismo do vento, o seu carácter transitório,
o caminho das pétalas duma flor sobre um vidro transparente
que reflecte a imagem do próprio frio do vidro colado ao tempo

é um acto que pressupõe a elaboração cuidada dum inventário
das causas remotas, um roteiro para o exacto declive das águas
que vêm da montanha, coabitando na terra, unindo-se à terra.

Essa é a verdadeira ciência dos musgos e do pólen que alaga
os nossos olhos com círculos irisados de sol, que transfigura
o nome que se dá a uma maçã, mesmo se na forma duma pedra;

e dessa textura é a frágil química dos sonhos, da predestinação
das noites caindo devagar sobre as nossas mãos demoradas,
a sua eterna transfiguração, o ciclo da água, o círculo do planeta.

Vieira Calado
(Portugal)

***


Paz
Esse alçar vôo
no compasso da emoção,
como se os pés
e os braços
fossem asas
ao sabor do som,
a música que embala
e impulsiona,
enlevo e encanto...

Dançam meus olhos,
bailarinos trôpegos,
ávidos de movimento,
de beleza e luz,
de eternizar a arte
divina e imortal
na ponta desses pés...

Luiz Carlos Amorim

(Corupá- Stª Catarina-16 de fevereiro de 1953)

sábado, 17 de julho de 2010

VAZIO

Voam velozes, vazios,
vagos, volúveis, os ventos.
E vai a vida voando
na vaga verde do tempo.

Ávidas aves vadias
vagam, navegam no vento.
E vão vagindo, vingando
na vaga voraz do tempo.

Alma! ai ave que vacila
na voz uivante dos ventos!
ai nave a vogar vazia
na vaga escura do tempo!

Anderson Braga Horta
Cronoscópio (1983)

'DA INSPIRAÇÃO'

À margem do inefável, o marulho
pressentindo-lhe, e a praia, e a onda, e a brisa,
rondamos; mas detém-nos esta invisa
muralha que o defende do mergulho.

Em vão se trava o lúcido combate
do espírito com a treva desta morte.
Nas fronteiras, em vão, sem passaporte,
contra os vidros o espírito se bate.

Raro, entretanto, um luar se verifica:
e um fluxo repentino de águas puras,
na insólita preamar, subtrai alturas,
muralhas dobra. O mar se comunica.

Então esse infinito mar ignoto
cabe, fugaz, no escasso — enquanto dura
em ponte a vaga breve. Após, fulgura
em cada poça fria um sol remoto.

E a alma, em vão, do áureo mar que assim transborda
provado o céu, tenta, em sequiosa ronda,
dos altos muros escalar a borda
e restaurar o azul num rasto de onda.

Anderson Braga Horta
Cronoscópio (1983)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Foram-se os anos ...


Foram-se os anos como as nuvens vão
E nunca mais retornarão um dia;
Já não me encantam hoje, como então,
Lendas e doinas*, sons da fantasia

Que à mente de um menino foram graças
Mal compreendidas, cheias de um alarde –
Com tuas sombras hoje em vão me abraças,
Ó hora do mistério, ao fim da tarde.

Para arrancar um som do meu passado,
Para fazer-te, ó alma, ainda vibrar,
A mão em vão a lira tem tocado.

Perdeu-se tudo na alba do lirismo,
Calou-se a voz do outrora sublimado,
O tempo cresce em mim... e eu me abismo!


Mihai Eminescu
Tradução: Luciano Maia

* Doina: canção popular entranhável e melancólica,
a mais viva expressão da alma romena, segundo o
poeta Vasile Alecsandri.


Mihail Eminescu (Botoşani, 15 de Janeiro de 1850 — Bucareste, 15 de Junho de 1889) foi o mais importante e conhecido poeta da literatura romena. É o poeta nacional da Romênia e da República da Moldávia.

sábado, 10 de julho de 2010

XCVI 'Dos hospedes'

(Hotel Majestic- Porto-Alegre (Casa Mário Quintana)

Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia...



Mario Quintana
In: Espelho Mágico

quinta-feira, 8 de julho de 2010

OS AMIGOS, AO ENTARDECER


O tempo é breve e as afeições são poucas.
Os cabelos já tomam a cor das despedidas.
Tantas, as viagens! Quantas, as partidas
para as paixões, as festas e navegações?
Fraternas mãos vieram e me cobriram
com cálidos lençóis.
E preparei anzóis
para pescar os salmões do amanhecer.
Um dia, com os amigos, acendi fogueiras.
Deitamo-nos na relva, de alma ainda inteira.
Ou fomos olhar os trens
que vinham dos verões.
Vezes houve em que rimos, quase alucinados.
Nem vimos os exílios, demorados.
E estivemos unidos em nossos corações.


Artur Eduardo Benevides
In: Elegia Setenta e Outros Poemas


quarta-feira, 7 de julho de 2010

A PASSAGEM


Que me deixem passar - eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por ser eu diferente ou indesejado
mesmo assim passarei.
Inventarei a porta e o caminho.
E passarei sozinho.


Lêdo Ivo
em "O Rumor da Noite"
Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro - 2000.

terça-feira, 6 de julho de 2010

campos entardecidos


O poente em pé como um Arcanjo
tiranizou o caminho.
A solidão povoada como um sonho
remanseou-se ao redor do vilarejo.
Os cincerros recolhem a tristeza
dispersa dessa tarde. A lua nova
é um fio de voz que vem do céu.
Conforme vai anoitecendo
volta a ser campo o vilarejo.

O poente que não cicatriza
ainda fere a tarde.
As cores trêmulas se acolhem
nas entranhas das coisas.
No aposento vazio
a noite fechará os espelhos.


Jorge Luís Borges

segunda-feira, 5 de julho de 2010

SEGMENTOS


E o homem seguiu entre guizos falsos.
Trazia no rosto uma sofreguidão de charcos.


Era noite
e os fantasmas enlouquecidos não o deixavam seguir.


Assim
andarilho de madrugadas
homem de silêncios fartos
ele se enfatizou.


Riscou de seu rosto a mascara da vida.


Continuava só
e só, continuava em sua busca viscosa.


Já não era mais ele quem fremia
na porta dos bares vazios.


Era a nostalgia de seu espectro
que buscava carnavais de sorrisos.



Alvina Nunes Tzovenos
In: Palavras ao Tempo

sábado, 3 de julho de 2010

Dunas


Crepúsculo vai desbotando
o mato azul suspenso em sombras.
Em teus olhos enevoados nascem
as estrelas em meio a tua dança
nas areias do deserto que morreu
de saudades da ausência das chuvas.
Horizonte fantasmagórico no
silêncio espinhoso dos cactos.
Visões mágicas em lábios abotoados.
Flutuas em teu vestido branco
transparente a luz pálida da lua,
estranho sentimento místico
de intuições que ateiam fogo
em nossos instintos.

Aharon
*Nelson Aharon
Joenviele -SC

sexta-feira, 2 de julho de 2010

VII


Julho é uma paineira que se esvai.
Meu coração tem tempos assim
ora em flor
ora a se dissipar.
Fluidas são as painas
que envolvem meus sonhos -
sementes aéreas que nem os ventos
sabem aonde vão dar.

Fernando Campanella
Poema da série 'Efemérides'

quinta-feira, 1 de julho de 2010

VOZES


Vozes ideais e amadas
daqueles que morreram, ou daqueles que estão
perdidos para nós como os mortos.

Às vezes, em nossos sonhos, elas falam;
às vezes, em nosso pensamento, o espírito as percebe.

E, com seu sussurro, por um momento voltam
ecos da primeira poesia de nossa vida —
como, na noite, música longínqua que se extingue.


Konstantinos Kaváfis
in‘Poema’
Tradução, estudo e notas
de Ísis Borges da Fonseca. São Paulo, Odysseus, 2006.