sexta-feira, 10 de outubro de 2008
'Sugestões do Ocaso'
Não sei por que será que os aspectos de agosto
me convidam à cisma à hora do sol posto!
Ontem fazia frio, era roxo o arrebol,
e céus e terra e tudo, as árvores e as águas,
pareciam estar carpindo as suas mágoas...
Choravam de saudade, ao ver partir o sol.
E eu também fiquei triste, até eu, que sabia
que a treva era um instante e o sol ressurgiria!
A natureza tem desses fundos mistérios...
Sei que uma sepultura é o nada, a eterna paz,
e entretanto, meu Deus! não me sinto capaz
de penetrar sozinho, à noite, em cemitérios!
Segredos que a razão não nos explica: o caso
é que eu participei da amargura do ocaso.
Erguendo os braços nus, despidos pelo outono,
o arvoredo guardava atitudes de prece.
O silêncio rezava. Era como se houvesse
romarias no espaço. A tarde tinha sono.
Da paisagem subia, espiralando, o incenso
que me fazia ter o coração suspenso.
E estávamos nós dois: eu e minh'alma, ali;
eu sentado, ela em frente; e puz-me a interrogá-la...
Pois embora ela fosse um doente sem fala,
não conto, por pudor, certas coisas que ouvi.
Por Deus Nosso Senhor, que perdi toda a calma!
E haver inda quem negue a existência da alma!
Ai! como foram más, amargas, aziagas,
as horas que passou est'alma combalida!
Mas o instante de horror maior em minha vida
foi quando eu a despi e examinei-lhe as chagas!
Depois, risquei no chão, uns sinais cabalísticos...
Lembrei-me de morrer, e puz-me a escrever dísticos...
Epitáfios assim: "Foi mau, mas morreu cedo".
E havia logo abaixo, um nome de mulher...
(A gente muita vez escreve o que não quer...)
Sepultura e noivado... Estremeci de medo.
Que se a idéia de morte às vezes nos conforta,
apavora-nos ver uma pessoa morta.
E fiquei-me a cismar. Além, a lua triste
tinha molhada em pranto a palidez da face...
(Que bom seria ouvir, se a lua nos contasse,
os romances de amor a que dos céus assiste!)
Não sei por que será que os aspectos de agosto
me convidam à cisma, à hora do sol posto!...
Marcelo Gama
in 'Via Sacra' (1902).
Curiosidades sobre o autor:
Pseudônimo de Possidônio Cezimbra Machado, que nasceu em Mostardas (RS) a 3 de Março de 1878 e morreu no Rio de Janeiro a 7 de Março de 1915.
Poeta Simbolista, membro fundador da Academia Riograndense de Letras.
Teve uma morte insólita: morreu ao cair do bonde em que viajava,dormindo, nos trilhos do Engenho Novo, no Rio de Janeiro.
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