Das torres de sombra do crepúsculo
partem os pássaros.
São como setas céleres
que vão ferir a nua espádua
do dia em fuga, além.
Das torres de pedra da urbe oceânica
tombam as horas túmidas.
São como longas, lentas lágrimas
que vão morrer na poeira humílima
de um chão de além.
Das torres de mágoa da alma trêmula
não partem asas fúlgidas
nem tombam prantos recônditos.
Mas sobe o silêncio trágico
para um Além do além.
Tasso da Silveira
Poemas de Antes – l.966 -
BALADA DE HEMINGWAY
O mar era pleno e puro.
ao fundo, a grande presença.
Em torno ao barco oscilante,
a infinita solitude
das águas, do céu, do vento.
O mar era pleno e puro,
em torno a pura beleza
no barco o desejo e o sonho
do lidador extenuado
sentindo a presença enorme
ao fim da linha retêsa.
O mar era pleno e puro.
Hemingway, que a dor me deixe
cantar a balada triste
teu velho, teu mar, teu peixe:
sim, que me deixe cantar.
O mar era puro e pleno:
era todo o imenso mar...
Tasso da Silveira
Poemas de Antes – l.966 –
Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Cecília Meireles
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Cecília Meireles
sábado, 25 de abril de 2009
Sonhei. Desperto. Um tédio doloroso
Sonhei. Desperto. Um tédio doloroso
De ter sonhado, ou então de despertar,
Me ocupa o espírito indeciso e ocioso.
Sou como o movimento do alto mar,
Que parece existir sem avançar.
Não me lembro qual foi o sonho ido,
Nem se portanto a sua ausência dói.
Grandes e vagas coisas hei dormido.
Sou como o alto mar quando o Sol foi:
Uma novela imensa sem herói.
Nem mesmo sei se o sonho deixa mágoas.
Que sei eu do que sou ou quero ter?
Sou como o alto mar da noite: as águas
No mesmo movimento a ter que ser,
Um som, um brilho escuro, arrefecer...
13-3-1931
Fernando Pessoa.
inNovas Poesias Inéditas.
Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).
- 57.
Tudo quanto sonhei tenho perdido
Tudo quanto sonhei tenho perdido
Antes de o ter.
Um verso ao menos fique do inobtido,
Música de perder.
Pobre criança a quem não deram nada,
Choras? E em vão.
Como tu choro à beira da erma estrada.
Perdi o coração.
A ti talvez, que não te tens dado,
Daria enfim...
A mim... Sei eu que duro e inato fado
Me espera a mim?
Fernando Pessoa
Poesias Inéditas (1919-1930)
Vaga, no azul amplo solta
Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.
O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma,
E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.
Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.
Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.
20-3-1931
Fernando Pessoa
Poesias-Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995)
quinta-feira, 23 de abril de 2009
À noite sonhamos
(Fotografia de Antônio Carlos Januário -MG- Brasil)
À noite, seguimos descuidados,
a vida é solta, árvores nítidas de aromas,
flores tão lágrimas de orvalho.
À noite sonhamos em um céu de metáforas
onde a mínima lua
é unha que arrepia segredos
estrelas são hangares pequeninos -
a sombra, um dócil lobo que nos chama.
À noite, rompemos degredos,
volvemos aos ninhos,
somos meninos -
infância distraída de seus medos.
Fernando Campanella
'Isento'
Mira-te pelo calendário das flores
Que são só viço e esquecimento.
Desprende-te dos ofícios do dia,
Apaga os números, os anos e anos,
Releva a data de teu nascimento.
E assim, por tão leve sendo,
Por tão de ti isento,
De uma quase resistência de pluma,
Abraça o momento,
Toma por bagagem os sonhos
E apanha carona no vento.
Fernando Campanella
(Poema em homenagem pelo aniversário
de minha amiga Maria Madalena-18-04-2008)
quarta-feira, 22 de abril de 2009
¿TE ACUERDAS DE LA TARDE . . .?
¿Te acuerdas de la tarde en que vieron mis ojos
de la vida profunda el alma de cristal? . . .
Yo amaba solamente los crepúsculos rojos,
las nubes y los campos, la ribera y el mar. . .
Mis ojos eran hechos para formas sensibles;
me embriagaba la línea, adoraba el color;
apartaba mi espíritu de sueños imposibles,
desdeñaba las sombras enemigas del sol.
Del jardín me atraían el jazmín y la rosa
(la sangre de la rosa, la nieve del jazmín)
sin saber que a mi lado pasaba temblorosa,
hablándome en secreto, el alma del jardín.
Halagaban mi oído las voces de las aves,
la balada del viento, el canto del pastor,
y yo formaba coro con las notas suaves,
y enmudecían ellas y enmudecía yo. . .
Jamás seguir lograba el fugitivo rastro
de lo que ya no existe, de lo que ya se fue. . .
Al fenecer la nota, al apagarse el astro,
¡oh sombras, oh silencio, dormitabais también!
¿Te acuerdas de la tarde en que vieron mis ojos
de la vida profunda el alma de cristal?
Yo amaba solamente los crepúsculos rojos,
las nubes y los campos, la ribera y el mar. . .
Enrique Gonzales Martinez
Mexico-1971-1952
QUANDO SEPAS HALLAR UNA SONRISA
"Work hard and always smile in 80 years old - Aagah Permadi "
Cuando sepas hallar una sonrisa
en la gota sutil que se rezuma
de las porosas piedras, en la bruma,
en el sol, en el ave y en la brisa;
cuando nada a tus ojos quede inerte,
ni informe, ni incoloro, ni lejano,
y penetres la vida y el arcano
del silencio, las sombras y la muerte;
cuando tiendas la vista a los diversos
rumbos del cosmos, y tu esfuerzo propio
sea como potente microscopio
que va hallando invisibles universos,
entonces en las flamas de la hoguera
de un amor infinito y sobrehumano,
como el santo de Asís, dirás hermano
al árbol, al celaje y a la fiera.
Sentirás en la inmensa muchedumbre
de seres y de cosas tu ser mismo;
serás todo pavor con el abismo
y serás todo orgullo con la cumbre.
Sacudirá tu amor el polvo infecto
que macula el blancor de la azucena,
bendecirás las márgenes de arena
y adorarás el vuelo del insecto;
y besarás el garfio del espino
y el sedeño ropaje de las dalias. . .
y quitarás piadoso tus sandalias
por no herir a las piedras del camino.
Enrique Gonzales Martinez
QUASE
Obscuridade quase expressa
Que nunca foi ainda mas sempre
Era para ser a próxima e a próxima
Quando o lapso do ontem no amanhã
Devia ser arrumado pelo menos até já,
Pelo menos até já, até ontem ─
Caos quase reconquistado
No qual a verdade, como se uma vez mais,
Ainda não tivesse caído ou se erguido ─
O que há de novo? Qual é?
Você que nunca foi ainda
Ou eu que nunca sou até?
Laura Riding
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes
in: 'Mindscapes' - Poemas
(1901-1991)EUA
BUSCA EN TODAS LAS COSAS. . .
Busca en todas las cosas un alma y un sentido
oculto; no te ciñas a la apariencia vana;
husmea, sigue el rastro de la verdad arcana,
escudriñante el ojo y aguzado el oído.
No seas como el necio, que al mirar la virgínea
imperfección del mármol que la arcilla aprisiona,
queda sordo a la entraña de la piedra, que entona
en recóndito ritmo la canción de la línea.
Ama todo lo grácil de la vida, la calma
de la flor que se mece, el color, el paisaje.
Ya sabrás poco a poco descifrar su lenguaje. . .
¡Oh divino coloquio de las cosas y el alma!
Hay en todos los seres una blanda sonrisa,
un dolor inefable o un misterio sombrío.
¿Sabes tú si son lágrimas las gotas de rocío?
¿Sabes tú qué secreto va contando la brisa?
Atan hebras sutiles a las cosas distantes;
al acento lejano corresponde otro acento.
¿Sabes tú donde lleva los suspiros el viento?
¿Sabes tú si son almas las estrellas errantes?
No desdeñes al pájaro de argentina garganta
que se queja en la tarde, que salmodia a la aurora.
Es un alma que canta y es un alma que llora. . .
¡Y sabrá por qué llora, y sabrá por qué canta!
Busca en todas las cosas el oculto sentido;
lo hallarás cuando logres comprender su lenguaje;
cuando sientas el alma colosal del paisaje
y los ayes lanzados por el árbol herido. . .
Enrique Gonzales Martinez
domingo, 19 de abril de 2009
MAGNÓLIAS
1
Tome-as nas mãos
e saberás por que magnólias
são fatais.
2
Se rasgares a pétala,
notarás fissuras no tecido.
Lâmina carnosa, cristal dissolvido em nuvem.
Nas nervuras há poros do mais puro branco.
Alvíssimo alvo.
Verás contudo que é Siena a cor de fundo.
Dessas calcinadas terras se colorem
as flores mortas.
3
À noite secretam perfumes.
Polinizam o ar.
Elas, ventres fecundos.
4
Perdidas as pétalas, resta íntimo caroço.
Sementes vermelhas brotam súbito,
lisas, alongadas.
Fava incendiada, rubra é a cor que requeres
para o mistério de seu viço alvar.
5
Depois da chuva alguma água restará no tenro cálice.
Mas não muita.
se contemplando te detiveres,
sucumbirás à excessiva luz.
Evita navegar na clausura desse mar.
Antonio Fernando De Franceschi
In: Tarde Revelada Poemas
*
(In memory of my esteemed mother-in-law.mm)
POETÁRIO
Alma: a que se tem, aristotélica ou platônica,
inescapavelmente, como queira Coleridge.
Buril: (des)razão instrumental, hiato entre intenção e ato.
Corpo: incondicionalidade, invólucro ad extremum.
Diktat: ter uma única, estrita, regra: jamais furtarse ao mistério.
Eu: por que não?
Falso: se se enreda no real é para sua e dele maior verossimilhança.
Gosma: imantação líquida, seiva, intervalo entre estados.
Homem: radicação, ser em mundanidade, enigma.
Istmo: contínuo interrupto
Jamais: se repetido já não é.
Lira: a que troquei pela experiência e a vida, a que ainda me embota.
Maré: eco lumar.
Nuvem: água furtada, mulher.
Oblíquo: vertigem do plano.
Poesia: o dom.
Que: a pedra no caminho, glória e miséria da prosa, praga da poesia.
Retorno: se curvo o movimento, é eterno.
Sol: luz, solus.
Tudo: o ominosamente e radical.
Uva: morder a polpa tenra como Baco fazia.
Verde: cápsula de líquen, paixão de Flora.
Xis: o que não se mostra, quase sempre, nas questões.
Zebra: tresmalhado eqüus.
Antonio Fernando De Franceschi
In: Tarde Revelada Poemas
SONETO DA ESPERA INÚTIL
No outro lado de mim mora a criança,
neste lado onde estou é noite fria:
- lancei mão dos pincéis da fantasia
para tornar real minha esperança,
pintar meu ser com as cores da alegria;
então achei a minha semelhança
no menino que fui, não na lembrança
do mundo que perdi e onde vivia.
Se o sonho andei, cruzei meu labirinto
na modelagem abstrata do poema,
virgens manhãs bebi no extinto lago;
e a dor que não senti agora sinto
na amarga solidão, no amargo tema
em que ontem naveguei e hoje naufrago.
Colombo de Souza
im: O Anúncio do Acontecido
sábado, 18 de abril de 2009
ABRIL
Juega el viento de Abril gracioso y leve
Con la cortina azul de mi ventana:
Da todo el sol de Abril sobre la ufana
Niña que pide al Sol que se la lleve.
En vano el Sol contemplará tendidos
Hacia su luz sus brazos seductores,
Estos brazos donde cuelgan las flores
Como en las ramas cuelgan los nidos.
También el Sol, también el Sol ha amado
Y como todos los que amamos, miente:
Puede llevar la luz sobre la frente,
Pero lleva la muerte en el costado.
José Martí
Cuba
sexta-feira, 17 de abril de 2009
POUSAS A CABEÇA...
Pousas a cabeça num travesseiro que ficou na infância.
Pedes a alguém que acenda a noite.
O ofegar de um paraíso onde caem uma por uma as lendas...
Houve ontem? haverá amanhã? - eis renascem de teus pés
rotos sapatos, desencantada música, um ou outro arrepio
de mão insensata colhendo flores que não desabrocham nunca.
Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo, 1976
CANÇÃO
Deslumbra-te, agora,
com essa luz. é tua!
Tua ausente embora
numa ausente rua.
Nunca te atormente
sabê-la perdida.
Renasce fremente
como a própria vida.
Como a vida feita
de noite e de espera,
canção imperfeita
de anjo e de fera.
Deslumbra-te, eia!
com esta luz que mais se alteia
quando tudo rui.
Alphonsus de Guimaraens Filho
Discurso no Deserto (1975-1981)
MOMENTO
Nostalgia do céu e solidão dos anjos.
Ah! tudo se desfez ...Buscai-me nas estrelas.
Buscai-me, sim buscai-me em melodias louras.
Quem virá de outros céus, quem cantará nas luzes?
Tudo é branco demais e transparente... O riso
Vem de longe demais. As mãos afagam a morte.
As mãos se envolvem em frio e em asas e em neblinas.
O coração não volta ao mundo abandonado.
Tudo é longe demais e fluido. Eu ouço os anjos...
Sou a sombra perdida em músicas e chamas.
Sou alguém que perdeu o reino e está de bruços
Sofrendo a solidão e o exílio, está de bruços,
Desterrado da paz e do país dos anjos...
Alphonsus de Guimaraens Filho
In Nostalgia dos Anjos (1939-1944)
COMO UM EMBALO
Fosse uma chama, crepitaria
sob meus dedos, na solidão.
Nada mais quero, nada queria.
As noites chegam, os dias vão.
Fosse uma chama, breve arderia,
brasa de sonho, na escuridão.
Já nada quero da luz do dia...
Queima uma estrela na minha mão.
Mas nada quero da luz da estrela...
(Chegam as noites, os dias vão.)
Por que sonhá-la, se vais perdê-la,
alma perdida na solidão?
Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo, 1976
quarta-feira, 15 de abril de 2009
Os Anos são Degraus
Os anos são degraus, a Vida a escada.
Longa ou curta, só Deus pode medi-la.
E a Porta, a grande Porta desejada,
só Deus pode fechá-la,
pode abri-la.
São vários os degraus; alguns sombrios,
outros ao sol, na plena luz dos astros,
com asas de anjos, harpas celestiais.
Alguns, quilhas e mastros
nas mãos dos vendavais.
Mas tudo são degraus; tudo é fugir
à humana condição.
Degrau após degrau,
tudo é lenta ascensão.
Senhor, como é possível a descrença,
imaginar, sequer, que ao fim da Estrada,
se encontre após esta ansiedade imensa
uma porta fechada
e mais nada?
Fernanda de Castro,
in "Asa do Espaço"
Portugal 1900-1994
terça-feira, 14 de abril de 2009
'M A R'
Há o Mar de Deus, e o Mar dos homens.
O Mar de Deus é o Mar das grandes águas
madrugais em perpétuo instante de gênese.
É o ar de frescor enorme, perenemente renascente e inesperado.
É o plasma fluído em que Deus mergulha ainda
as mãos potentes para modelar as formas virginais.
E é também o Mar milenário, abismal, antigo,
coetâneo das estrelas, batendo em praias espectrais
e enchendo de um grito fundo o côncavo das idades.
O Mar, símbolo do infinito e absoluto mistério.
O Mar dos homens é o Mar das proas inumeráveis.
Dos ancestrais barcos fenícios, das côncavas
naus helênicas, das galeras romanas, das caravelas
descobridoras, dos veleiros alígeros, das jangadas
audazes, dos transatlânticos de negro e potente
vulto rompendo serenos a convulsa massa líquida.
É o Mar que se humaniza em angras suaves, e
em largos e claros golfos, a cuja beira nasceram as
cidades insignes.
Ou a cuja carícia longa se entregam as aldeias
humílimas de pescadores.
É o Mar épico de Ulisses e do Gama, dos
vikings e dos piratas, dos caçadores de baleias e focas.
E é o mar lírico das enseadas adormecidas ao
luar pelas grandes noites de silêncio e sonho.
O Mar de Deus é o limbo em fusão plena,
pronto a escorrer na fôrma das realidades surpreendentes.
É a virgindade e a vertigem, é o Mar eternamente
Primevo, é o Mar sempre solidão e abismo,
o Mar espelhando Deus.
O Mar dos homens é o Mar das proas inumeráveis.
O Mar coalhado de transatlânticos e veleiros,
que levam ouro e trigo, e levam de um cais para
outro cais longínquo os homens palpitantes de desejo
e de ambição, ou de amargor e desalento.
É o Mar que aprendeu a cantar humanamente
com os homens, e a sonhar, e a sofrer, e a lutar, e a
amar humanamente . . .
Há o Mar de Deus, e o Mar dos homens. E
há o o Mar dos Poetas, que é, a um só tempo, o Mar
dos homens e o de Deus . . .
Tasso Da Silveira
In: Poemas De Antes
domingo, 12 de abril de 2009
Eu não sei quem Tu és. Mas sei que Tu existes,
e sei que és Tu que acendes as estrelas lá no Alto,
e o lume, às vezes, da alegria na pobreza dos meus olhos tristes.
Eu não Te vejo, eu não Te falo, senão no silêncio secular
das noites insones e profundas, em que meu corpo se apaga,
e minha alma é uma chama inquieta a crepitar ...
Eu Te quero e Te temo, pávido, esquivo e ansioso ... E pela vida inteira,
se Te fujo - olhos sem luz para não ver-Te, ouvidos surdos para não Te ouvir sinto o
Teu esplendor doer na minha tórpida cegueira,
e ouço o rumor augural dos remos do Teu barco, lento e lento
a ferir, com seu ritmo de Absoluto,
a água noturna do meu pensamento ...
Abgar Renault
in: Poesias Completas
sábado, 11 de abril de 2009
Sossega, coração! Não desesperes!
Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, silente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
Fernando Pessoa - 2-8-1933
sexta-feira, 10 de abril de 2009
CANCIÓN
No es lo que está roto, no,
el agua que el vaso tiene:
lo que está roto es el vaso
y, el agua, al suelo se vierte.
No es lo que está roto, no
la luz que sujeta al día:
lo que está roto es el tiempo
y en la sombra se desliza.
No es lo que está roto, no
la sangre que te levanta:
lo que está roto es tu cuerpo
y en el sueño te derramas.
No es lo que está roto, no,
la caja del pensamiento:
lo que está roto es la idea
que la lleva a lo soberbio.
No es lo que está roto Dios,
ni el campo que Él ha creado:
lo que está roto es el hombre
que no ve a Dios en su campo.
Emilio Prados
Espanha-(1899-1962)
SUEÑO
Imagen alta y tierna del consuelo,
aurora de mis mares de tristeza,
lis de paz con olores de pureza,
¡premio divino de mi largo duelo!
Igual que el tallo de la flor del cielo,
tu alteza se perdía en tu belleza...
Cuando hacia mí volviste la cabeza,
creí que me elevaban desde el cuelo.
Ahora en el alba casta de tus brazos,
acogido a tu pecho transparente,
¡cuán claras a mí tornan mis prisiones!
¡Cómo mi corazón hecho pedazos
agradece el dolor, al beso ardiente
con que tú, sonriendo, lo compones!
Juan Ramón Jiménez
España, 1881-1958
A LOS PRESAGIOS DEL DÍA DEL JUICIO
(El Juicio Final- Peter Paul Ruben)
Cenizas que aguardáis aquella trompa
para unir las especies desatadas
con que al Juicio Final, serán llamadas
las almas puras con gloriosa pompa,
cuando la voz de Dios, abriendo, rompa
los mármoles y losas más pesadas,
porque salgáis unidas y apuradas
en forma a quien el tiempo no corrompa.
No puede estar ya lejos, pues es cierta
aquella confusión, cuya agonía
los dormidos espíritus despierta.
Antes en este caso juzgaría
que ver cosa inmortal, sin tiempo, muerta,
es ya de los prodigios de aquel día.
Juan de Tassis
(Conde de Villamediana)
Lisboa, 1582-1622
A LA NOCHE
Esos rasgos de luz, esas centellas
que cobran con amagos superiores
alimentos del sol en resplandores
aquello viven que se duele de ellas.
Flores nocturnas son: aunque tan bellas,
efímeras padecen sus ardores,
pues si un día es el siglo de las flores,
una noche es la edad de las estrellas.
De esa, pues, primavera fugitiva,
ya nuestro mal, ya nuestro bien se infiere;
registro es nuestro, o muera el sol o viva.
¿Qué duración habrá que el hombre espere,
o que mudanza habrá que no reciba
de astro que cada noche nace y muere?
Pedro Calderón de la Barca
España, 1600-1681
LO FATAL
Dichoso el árbol que es apenas sensitivo,
y más la piedra dura, porque ésta ya no siente,
pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo,
ni mayor pesadumbre que la vida consciente.
Ser, y no ser nada, y ser sin rumbo cierto,
y el temor de haber sido y un futuro terror...
Y el espanto seguro de estar mañana muerto,
y sufrir por la vida y por la sombra y por
lo que no conocemos y apenas sospechamos,
y la carne que tienta con sus frescos racimos
y la tumba que aguarda con sus fúnebres ramos,
!y no saber adónde vamos, ni de dónde venimos...!
Rubén Darío
Nicaragua, 1867-1916
RENUNCIACIÓN
¡Oh, Siddharta Gautama!, tú tenías razón:
las angustias nos vienen del deseo; el edén
consiste en no anhelar, en la renunciación
completa, irrevocable, de toda posesión;
quien no desea nada, dondequiera está bien.
El deseo es un vaso de infinita amargura,
un pulpo de tentáculos insaciables, que al par
que se cortan, renacen para nuestra tortura.
El deseo es el padre del esplín, de la hartura,
¡y hay en él más perfidias que en las olas del mar!
Quien bebe como el Cínico el agua con la mano,
quien de volver la espalda al dinero es capaz,
quien ama sobre todas las cosas al Arcano,
¡ése es el victorioso, el fuerte, el soberano...
y no hay paz comparable con su perenne paz!
Amado Nervo
Mexico-1870-1919
quarta-feira, 8 de abril de 2009
Existência
Viver,
é saber
que a única certeza
que se pode ter
é a incerteza.
É
ser
parte na natureza
e,
para alguns – apenas – sobreviver.
Quantas vezes sem beleza.
É,
muitas vezes,
diante da evidência
estremecer,
a esperança quase perder
e
a existência
procurar esquecer.
É agradecer
as alegrias
de certos dias
e
sofrer
com as tristezas
das nossas próprias impurezas.
É
jazer,
ao comungar a condição humana
de sujeição,
como toda a criação.
Mas também é não esmorecer.
E a situação,
combater.
Vicente Ferreira da Silva
in Letras, Palavras e Linhas:Gestos pela diferença
Portugal
Solidão
“Somente ao homem é dada a solidão”
Vicente Ferreira da Silva,
filósofo brasileiro (1916-1963)
Meio de franquear o real,
átrio para a liberdade.
Recolha necessária à progressão,
a solidão,
é possibilidade de reavaliação
do todo social
e evolução
individual.
Mas,
não há simplicidade
no rompimento humano.
E para ser genuíno,
tem que advir duma atitude positiva.
Na solidão,
a consciência reconhece-se.
A solidão admite o encontro!
*Vicente Ferreira da Silva
in Metafísica
*Poeta português, homônimo do filósofo brasileiro.
SONETO DO NUNCA MAIS
Quem chegou e quem partiu
viu que o farol se reparte:
-navio que chega vazio,
navio que lotado parte.
À que se foi pressagio
venturas com que se farte.
-Não minta mais quem mentiu
e ache o amor em qualquer parte.
Brilha o farol que ilumina
o continente pintado
na paisagem submarina...
Não veio o amor esperado
no navio – que não vejo
da amurada do desejo.
Colombo de Sousa
In: Antologia Poética
TEORIA DA ROSA ANCORADA
De nada vale o êxtase da viagem
na alma sem viagem das flores;
pois as imóveis pétalas das flores
jamais vêem a brisa adormecida
ao lado das folhas secas, nem pressentem
sons de violinos emergidos da lua,
talvez porque suas reservas da alegria
estejam armazenadas nos sujos porões do sono.
Inútil será o êxtase da viagem
na alma sem viagem das flores,
-jamais reanimadas do seu sonambulismo.
Colombo de Sousa
In: Antologia Poética
sábado, 4 de abril de 2009
Lying In Grass
Is this everything now, the quick delusions of flowers,
And the down colors of the bright summer meadow,
The soft blue spread of heaven, the bees' song,
Is this everything only a god's
Groaning dream,
The cry of unconscious powers for deliverance?
The distant line of the mountain,
That beautifully and courageously rests in the blue,
Is this too only a convulsion,
Only the wild strain of fermenting nature,
Only grief, only agony, only meaningless fumbling,
Never resting, never a blessed movement?
No! Leave me alone, you impure dream
Of the world in suffering!
The dance of tiny insects cradles you in an evening radiance,
The bird's cry cradles you,
A breath of wind cools my forehead
With consolation.
Leave me alone, you unendurably old human grief!
Let it all be pain.
Let it all be suffering, let it be wretched-
But not this one sweet hour in the summer,
And not the fragrance of the red clover,
And not the deep tender pleasure
In my soul.
Hermann Hesse
Translated by James Wright
Degraus
Assim como as flores murcham
E a juventude cede à velhice,
Também os degraus da Vida,
A sabedoria e a virtude, a seu tempo,
Florescem e não duram eternamente.
A cada apelo da vida deve o coração
Estar pronto a despedir-se e a começar de novo,
Para, com coragem e sem lágrimas se
Dar a outras novas ligações. Em todo
O começo reside um encanto que nos
Protege e ajuda a viver
Serenos transponhamos o espaço após espaço,
Não nos prendendo a nenhum elo, a um lar;
Sermos corrente ou parada não quer o
espírito do mundo
Mas de degrau em degrau elevar-nos e aumentar-nos.
Apenas nos habituamos a um círculo de vida,
Íntimos, ameaça-nos o torpor;
Só aquele que está pronto a partir e parte
Se furtará à paralisia dos hábitos.
Talvez também a hora da morte
Nos lance, jovens, para novos espaços,
O apelo da Vida nunca tem fim ...
Vamos, Coração, despede-te e cura-te!
Hermann Hesse
in "O jogo das contas de vidro", trad. de Carlos Leite
'Stair'
As every blossom wilts and every youth yield to age
blooms every step of life, and every wisdom and every virtue
in its time and shall not last.
At every step in life must the heart
be prepared for loss and new beginnings,
with courage and without sorrow
in others, to offer new attachments/bonds.
And in every beginning there is a magic,
that protects us and helps us to live.
We should cheerfully stride from place to place
without attachment to any one or nation.
The world's spirit shall not make us captive,
but will lift us from step to step, onwards.
Scarcely as we are come into life
and are finally at home, then threatens loss of vigor.
Only those who are ready to depart and travel,
may be comfortable with this.
It will perhaps that the hour of our death
will show us yet new possibilities.
Life's call shall not end.
Therefore, my heart, grasp both the farewell and with it be well.
Hermann Hesse
Stufen (Níveis)
Wie jede Blüte welkt und jede Jugend
Dem Alter weicht, blüht jede Lebensstufe,
Blüht jede Weisheit auch und jede Tugend
Zu ihrer Zeit und darf nicht ewig dauern.
Es muß das Herz bei jedem Lebensrufe
Bereit zum Abschied sein und Neubeginne,
Um sich in Tapferkeit und ohne Trauern
In andre, neue Bindungen zu geben.
Und jedem Anfang wohnt ein Zauber inne,
Der uns beschützt und der uns hilft, zu leben.
Wir sollen heiter Raum um Raum durchschreiten,
An keinem wie an einer Heimat hängen,
Der Weltgeist will nicht fesseln uns und engen,
Er will uns Stuf’ um Stufe heben, weiten.
Kaum sind wir heimisch einem Lebenskreise
Und traulich eingewohnt, so droht Erschlaffen,
Nur wer bereit zu Aufbruch ist und Reise,
Mag lähmender Gewöhnung sich entraffen.
Es wird vielleicht auch noch die Todesstunde
Uns neuen Räumen jung entgegen senden,
Des Lebens Ruf an uns wird niemals enden…
Wohlan denn, Herz, nimm Abschied und gesunde!
Hermann Hesse
Edição do poema de Florbela Espanca,executado
pela super especial amiga, LaDerzi.
Cuidado!
"Solstice Moonrise at Cape Sounion, Greece"
Nós somos gestantes da alma...Cuidado!
É preciso muito, muito cuidado
Para que a alma possa nascer normal na outra vida.
Nesta, ela mal pode, ela quase não tem tempo de
ficar pronta!
Como é possível, com estes cuidados e mais cuidados
sem conta,
Ah, toda essa vergonha de sermos devorados
- meticulosamente - por milhões de ratos
durante sessenta, setenta, oitenta anos
Quando bem poderia surgir de súbito o nobre leão da morte
Na plenitude nossa
Como acontece com os heróis da Ilíada,
Mas os heróis só morrem - no País das Ilíada -
Belos e jovens...
Aqui, qualquer heroísmo se desmoraliza dia a dia
como a barba do Tempo arrancada, fio a fio, das folhinhas...
Como é possível, como é possível um alma triturada assim pelos relógios?
Como é possível nascer com um barulho destes?
Mário Quintana
In: Apontamentos de História Sobrenatural
CANÇÃO DE INVERNO
(London)
O vento assobia de frio
Nas ruas da minha cidade
Enquanto a rosa-dos-ventos
Eternamente despetala-se...
Invoco um tom quente e vivo
_ o lacre num envelope? -
e a névoa, então, de um outro século
no seu frio manto envolve-me
Sinto-me naquela antiga Londres
Onde eu queria ter andado
Nos tempos de Sherlock - o Lógico
E de Oscar - pobre Mágico...
Me lembro desse outro Mário
Entre as ruínas de Cartago,
Mas só me indago: - Aonde irão
Morar os nossos fantasmas?!
E o vento, que anda perdido
Nas ruas novas da Cidade,
Ainda procura, em vão,
Ler os antigos cartazes.
Mário Quintana
in Apontamento de História Sobrenatural
Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada
(Manoel de Barros)
I
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.
II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.
III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando -
no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.
IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!
V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.
VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.
VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.
VII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.
IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.
Manoel de Barros
de "O Guardador de Águas"
I
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.
II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.
III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando -
no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.
IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!
V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.
VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.
VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.
VII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.
IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.
Manoel de Barros
de "O Guardador de Águas"
Edição para o poema de Mário Quintana,
feita pela querida amiga LaDerzi.
quarta-feira, 1 de abril de 2009
"REGRESSO ETERNO"
Altos silêncios da noite e os olhos perdidos,
Submersos na escuridão das árvores
Como na alma o rumor de um regato,
Insistente e melódico,
Serpeando entre pedras o fulgor de uma idéia,
Quase emoção;
E folhas que caem e distraem
O sentido interior
Na natureza calma e definida
Pela vivência dum corpo em cuja essência
A terra inteira vibra
E a noite de estrelas premedita.
A noite! Se fosse noite. . .
Mas os meus passos soam e não param,
Mesmo parados pelo pensamento,
Pelo terror que não acaba e perverte os sentido
A esquina do acaso;
Outros mundos se somem,
Outros no ar luzes refletem sem origem.
É por eles que os meus passos não param.
E é por eles que o mistério se incendeia.
Tudo é tangível, luminoso e vago
Na orla que se afasta e a ilha dobra
Em balas de precário sonho...
Tudo é possível porque à vida dura
E a noite se desfaz
Em altos silêncios puros.
Mas nada impede o renascer da imagem,
A infância perdida, reavida,
Nuns olhos vagabundos debruçados,
Junto a um regato que sem cessar murmura.
Rui Cinatti
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