A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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domingo, 29 de agosto de 2010

Um Minuto na Noite

A cidade dorme
o sono da madrugada.
Nenhum ser vivo
àquela hora silente.
O mundo noturno
cala-se...
Bares cerrados.
Apenas luminárias
com propagandas
de refrigerantes
permanecem despertas,
exibindo letras vermelhas
e grandes.
A cidade está
só,
com os sentimentos
da noite.


Delores Pires
in A Estrela e a Busca

SIMPLICIDADE


Singela e formosa
Num torvelinho de espinho
Desabrocha a rosa.

Delores Pires
"O Livro dos Haicais"

Haicai


Um raio de sol
pendurado no horizonte
ao cair da tarde.

Delores Pires
Pétalas de Ipê (2002)

Haicai


Iludindo o tempo
só ao relógio se engana
mas não a si mesmo.


Delores Pires
Passeio ao Luar (2002)

Haicai


Paisagem fugaz.
Pela janela do trem
mundo viajante.

Delores Pires
Flor de Café

Haicai do mestre Delores


Entre vagens secas
os cachos de chuvas-de-ouro.
Voa a mamangaba.

Delores Pires
Pétalas de Ipê (2002)

Delores Pires nasceu na cidade de Criciúma, Estado de Santa Catarina, radicando-se desde menino no interior do Paraná.
O contato com a natureza no ambiente rural, na adolescência, propiciou-lhe os subsídios e a influência na adoção da forma haicai que viria a praticar mais tarde.
Adotou Curitiba como sua cidade, onde se formou em Letras pela Universidade Católica do Paraná. Como tal, é professor de língua portuguesa e de literaturas afins.
Realizou o curso de Mestrado em Letras, com área de concentração em Teoria da Literatura, também pela Universidade Católica do Paraná, apresentando a dissertação O Universo do Haicai.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

"Crânios humanos somem..."

Crânios humanos somem pilha a pilha,
onde, invisível, mínguo na distância,
mas num bom livro e em jogos de criança,
direi, ressuscitando, que o sol brilha.

Vorôniej, maio de 1935

Ossip Mandelstam,
In:Cadernos de Vorôniej

"Roubar-me os mares..."


Roubar-me os mares, ares, vôo, tolhendo
meus pés na terra atroz – foi o bastante?
Mas, malgrado o teu cálculo estupendo,
não me arrancaste os lábios murmurantes.

Vorôniej, maio de 1935


Ossip Mandelstam
in:Cadernos de Vorôniej

Não é a lua


Não é a lua, não, é um mostrador.
Que culpa tenho se as estrelas baças
Me parecem leitosas, sem fulgor?

Batiúshkov não merece piedade.
"Que horas são?", perguntaram-lhe uma vez,
E ele só respondeu: "Eternidade."


Ossip Mandelstam
in "Não é a lua"
Trad. de Augusto de Campos.
CAMPOS, Augusto. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.

*Óssip Mandelstam nasceu em Varsóvia, Polónia, em 1891, descendente de uma família judia. Cresceu na cidade imperial de S. Petersburgo, onde frequentou a prestigiada escola Tenishev, seguindo mais tarde para Paris (1907-08) e para Heidelberg (1909-10) com intenção de estudar Literatura Francesa. A partir de 1911 estudou Filosofia na Universidade de S. Petersburgo, curso que abandonou para se dedicar à escrita. Publicou o seu primeiro livro, Kamen (Pedra) em 1913. Embora tivesse inicialmente apoiado a Revolução, a censura sobre os artistas e a execução de Gumilev, em 1921, afastaram Mandelstam do regime. Este afastamento obrigou-o a viajar para províncias distantes como jornalista. Em 1933 Mandelstam escreveu um poema satírico sobre Estaline. A «insolência» só não lhe trouxe a pena de morte devido à protecção de Bukárine. Mas no ano seguinte, Mandelstam foi preso e viveu alguns anos exilado, em companhia de sua mulher Nadyeshda. Regressaram a Moscovo no início de 1938. A 2 de Agosto Mandelstam foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados. O último perído da sua vida é mal conhecido. Sabe-se que esteve na prisão de Butyrskaya em Moscovo à espera de seguir para Kolyma, na Sibéria. Terá morrido a 20 de Dezembro, na barraca n.º 11 do campo de trânsito 3/10 de Usvitlag, entre os presos acusados de «actividades contra-revolucionárias.»
(Excerto da nota biográfica contida em Fogo Errante – antologia poética, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio D’Água, Julho de 2001.)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Do meio dia à eternidade


Eu percorro por estas ruas tão vazias,
olhando-me através desses transeuntes,
predizendo-me entre essa paisagem,
com meu olhar do meio dia à eternidade.

Vazio nestes instantes que divago,
percebo-me como ave necessária,
seja por entre as árvores plumárias,
dilúvio cotidiano pela estrada.

O mar apoderava o desespero,
floresta dos rebanhos brios difíceis,
então as águas eram superfície!

As corridas das ondas entre ventos,
estuário dessa alma tão longínqua,
do jovem rio estava ali nas fontes.


Eric Ponty

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

'INSÔNIA'


É silencio na calçada.
A noite avança
e os meus olhos
cansados,
amigos das madrugadas,
buscam memórias
veladas.
Tristonha
debato-me no leito
qual ave ferida no peito.
Não vejo o que sinto
mas
sinto tudo o que vejo.


Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivências

(Poetisa, professora e artista plástica de Porto-Alegre RS,
nascida em 1.929)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

ADEUS'


Adeus, fugitiva, enfuna
livre asa prá fuga e voo -
impenetrável a runa
que o teu nome encerrou.

Tenho de ir andando,
volto a meus jardins soturnos,
ouço já cisnes cantando
do canavial dos mares noturnos.

Adeus, dono da tristeza,
da tortura e do chorar,
perdido - a profundeza,
mais longe, a pôr e tirar.

Gottfried Benn
Trad.:Vasco Graça Moura

domingo, 15 de agosto de 2010

Para aprender a voar


Para aprender a voar nos bastava
o começo e o fim
de uma linguagem pessoal,
em que as mãos, impacientes,
despissem a paisagem
e, apenas por um instante,
se tornassem asas.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

O coração não tem margens


Como se todas as coisas fossem possíveis,
mesmo o milagre de vozes solidárias e cúmplices
na teimosia de quem acredita na magia
de qualquer lonjura, sei, de súbito,
que o coração não tem margens:
é um mar frágil que submerge
os olhos desprevenidos do homem.

Graça Pires
De Outono:lugar frágil, 1993

sábado, 14 de agosto de 2010

Rouxinol dos cantos esquecidos


...somente o coração de um Rouxinol
pode avermelhar o coração de rosa.
Oscar Wilde.


Entre os campos embevecidos,
E ao longe, dias não vividos:
Onde a paz entre os humanos
Não ecoa ao passar dos anos.

Nestes tempos incompreensíveis
Nos vales dos sonhos impossíveis,
Entre falésias entorpecidas:
Esperanças desaparecidas.

Preenchendo este vasto vazio
Como se fosse nosso martírio
De desejar aquilo ao longe:
Como sendo solitário monge.

Vem o mistério do infinito:
Renascer no nosso espírito,
De emoções do indefinível
- Momento nosso indissolvível.

Luís Antônio Rossetto de Oliveira
(Marília- São Paulo)

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

MOVIMENTOS


Desdobrar-se,
descobrir-se.
Levantar o tapete do Tempo:
espiar e expiar-se!


Jairo de Britto,
em "Dunas de Marfim"

"Anzol"


A que mapas,
a que humana biologia,
pertence esta escama molhada,
a memória fendida,
lampejos entre azul
e esmeralda,
fisgada de um deus
no mar da boca
sem palavras..."

(Fernando Campanella)

F .Campanella


Mergulhar no silêncio bruto da noite
Onde as palavras não ferem,
não medem, e onde o certo
é distante – ali onde as estrelas,
só as estrelas, são diamantes
que me sabem ,
ah, são almas de um gigante.

(Fernando Campanella)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

“Nestling”


I saw a little sparrow
Build up its nest
Out of scattered weeds.
O gardener of the instinct,
O master of the winds,
I sing your tunes,
I play your deeds,
I am your nestling,
Tend gently to my poetry.


(Fernando Campanella)

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Variação


As palavras que não foram ditas
o gesto imobilizado antes de nascer
o sorriso desfeito ao menor obstáculo...

Ah, é preciso ter coragem para ser feliz!

1960

Álvaro Pacheco
In "Seleção de Poemas"(1984)

domingo, 8 de agosto de 2010

SOLIDÃO

Que ninguém me conspurque este momento
de estar comigo
e me deixe intata a solidão.

que ninguém venha
na hora de não vir — e vindo
me deixe desolar.

que ninguém me conspurque a solidão
e me deixe crestar
ao reflexo e na massa intata
da lava dessa hora de mim mesmo
a consumir-se inteiro.

Vitória, agosto de 1968


Álvaro Pacheco
(28 de novembro de 1933-Piauí)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

'VAZIO'


Seguirei as trilhas
que apartam minha alma
levando para longe
tua voz sem melodia

Alternei a saudade
e o desapego, pela música
dos teus passos caminhantes

Ficou o perfume da ausência,
o silêncio do olhar,
o querer do ficar,
a necessidade de ir,
um vazio no ar,
a lágrima no sorrir

Conceição Bentes

'Sinos que dobram'


Os sinos dobram
pela falta de um olhar,
ancorado nas incertezas
da efêmera existência

Tocam chamando à fé,
pela partida da missão cumprida,
na calmaria anunciada,
do tempo que solta suas ventanias

São sons que falam do vazio
presente em cada alma,
como o acordar da vida,
uma saudade incontida
em cada um de nós


Conceição Bentes
Publicado no Recanto das Letras em 03/08/10
Código do Texto: T2416248

Mar de solidão


Aceito a solidão
da partida dos meus encantos,
na cadência monótona dos meus passos
anunciando auroras salpicadas
de orvalhos amargos das manhãs

Ventos errôneos das tardes,
regressam com roupagem cinza outonal,
sem semear fantasias,
convertendo a alma em ocasos
debruçados em seus tons de melodia

Ando sem pressa, sem lembranças
apenas o coração espera
entre o resto e o nada
de viagens profundas
nos desertos por onde passo.


Conceição Bentes
Publicado no Recanto das Letras em 04/08/10
Código do Texto: T2417359

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

VIII

Agosto não é bem rima
Nem bem desgosto.
É quase um quê de mim
em ipês amarelos e roxos.

(São olhos que se alegram na terra
São dores que reviram os ossos.)


F.Campanella
Poema da série 'Efemérides"

(Publicada originalmente em 27 de outubro de 2.008)