A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

Seja bem-vindo. Hoje é
Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Poema De Natal



Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorarPara enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


 Vinicius de Moraes

domingo, 15 de novembro de 2015



Nossas condolências a França pelo dia de sexta-feira 13 de novembro de 2015.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

MUTAÇÃO



Onde a fonte habitual do sonho?
Onde a esperança?
Onde aquela segura confiança
No dia de amanhã?

E o suave rosto amanhecente,
Com seu olhar e seu sorriso?
E as tempestades emotivas,
A desabar em pranto e sorriso?

Como chegou, tão de repente,
Este sabor de tédio e morte?

Despreocupada, a gente adormece
Em mocidade.
Eis que desperta, subitamente,
Na outra margem.

Quando se faz a travessia?


- Helena Kolody,
em "Viagem no espelho".
5ª ed., Curitiba: Editora da UFPR, 1999,.

MUSICA ETERNA



Rumor obscuro da chuva,
Idêntico e antigo,
Acalentando a noite.

Dança de folhas, despercebida:
Mata em sussurro.

Claro ritmo das chamas
Alegrando lareiras.


- Helena Kolody, 
do livro "A sombra no rio"/em:'Sempre poesia - antologia poética'.
Curitiba: Editora Ímã Publicidade, 1994.

CANÇÃO DO INVERNO


Cai a neve, de mansinho...
Cai a neve em meus cabelos,
Que eram de ouro e são de luar.

Altas torres de castelo...
Cai a neve, de mansinho,
Para os sonhos sepultar.

Cai a neve... tão de leve!

No meu rosto, brando e brando,
Será a neve resvalando.
Ou é o pranto a deslizar?

Helena Kolody
Do livro Viagem no Espelho,
Editora UFPR, 1999, Curitiba/PR

segunda-feira, 13 de julho de 2015

MENSAGEM A UM DESCONHECIDO

 
Teu bom pensamento longínquo me emociona.
Tu, que apenas me leste,
acreditaste em mim, e me entendeste profundamente.


Isso me consola dos que me viram,
a quem mostrei toda a minha alma,
e continuaram ignorantes de tudo que sou,
como se nunca me tivessem encontrado.



Fevereiro, 1956



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)
[Tela: San Carlos]

domingo, 21 de junho de 2015

4


Venha a canção de cada vez mais vaga e etérea.
Fez-se bruma lunar a amargura que sou.
Diluíram-se na sombra antiga as formas feéricas.
O mundo enorme se esvaziou.


Noutros longínquos céus talvez estrelas tremulas
esplendam. Mesmo assim: também se apagarão.
Venha a canção de cada vez mais leve e efêmera,
para morrer na solidão. . .

Tasso da Silveira
In: Puro Canto

OS CAVALOS DO TEMPO


Os cavalos do Tempo são de vento.
Têm músculos de vento,
nervos de vento, patas de vento, crinas de vento.

Perenemente em surda galopada,
passam brancos e puros
por estradas de sonho e esquecimento.

Os cavalos do Tempo vão correndo,
vêm correndo de origens insondáveis,
e a um abismo absoluto vão rumando.

Passam puros e brancos, livres, límpidos,
No indescontínuo, imemorial esforço.
Ah! São o eterno atravessando o efêmero:
levam sombras divinas sobre o dorso...


Tasso da Silveira
In: 'Regresso à Origem'

segunda-feira, 15 de junho de 2015

MINUETE



O minuete das flores vai começar.
Ha uma rosa vermelha que balouça, balouça,
em reverência a um lírio.

Tocam os grilos escondidinhos para a quadrilha.
Há um crisântemo crespo muito orgulhoso,
e sua corola parece que gira.
Ele dança imóvel — consigo mesmo...

As folhas secas também valsam,
— realejo ao vento —
valsam remoinhos silenciosos,
— folhas ingênuas — baile de pobres...
Dançam as flores, dançam perfumes na minha alma.
0 minuete das mágoas vai começar.
Minha alma não dança com as outras almas:
— dança imóvel — consigo mesma...


 Augusto Mayer
em Poemas de Bilú


terça-feira, 26 de maio de 2015

''CANÇÃO DA INDIFERENÇA''




A vida passa,
leve
como a fumaça,
sem que possa
ao menos compreendê-la.

É um perfume sutil de magnólia,
cintilância indecisa de uma estrela,
um zumbido de vespa que esvoaça
em torno de uma flor
ou junto a um fruto.

É como um nome escrito sobre a areia
para viver o espaço de um minuto.
Aceitemo-la com indiferença,
como se olha a fumaça que se evola
ou se aspira o perfume de uma flor;
tal se escreve na areia um nome amado
porque se sente o amor.

Vivamo-la, pois, serenamente,
trazendo sempre a alma contente
e alegre o coração,
na certeza de que ela é transitória
e que sua glória
é como a glória
de uma bolha de sabão.

Não vale sentir tanta amargura
tanta tristeza
 e quanta desventura
a vida possa nos causar.

O que vale na vida indiferente
é o pouco que o acaso nos concede
nesse inclemente
desfiar das horas,
nessa fuga do tempo
que nos mata

lentamente...
imperceptivelmente...
imperceptivelmente...


Alfredo de Cumplido de Sant'Anna
In Poemas e Legendas

Devaneio de fim de tarde...



Entre choro e riso
Chegada, despedida
Partida, retorno
Cicatriz após ferida
Seguimos tentando
temperar nossa vida...


 Jefferson Dieckmann



[...]vestiu-se de memórias. ou talvez de sonhos.
confundida com as personagens do romance que nunca terminou,
vestiu-se de palavras luminosas, com frases tão belas quanto os afectos e entrou lá, no lugar onde as palavras jamais cessam de nascer.

[Excerto]
Julia Moura Lopes

VASTOS CAMPOS DE SOLIDÃO


Eu tenho o silêncio
entranhado em minha alma,
vastos campos de solidão,
onde a alma perambula
em busca de um abrigo,
de um sorriso amigo,
de um gesto de paixão.

Eu tenho o silêncio
engasgado em minha garganta,
coisas que eu tinha de dizer,
palavras que eu não pude pronunciar,
e a alma gesticula nervosa,
aflita por sua incapacidade de falar.

Eu tenho o silêncio
enraizado em meus poemas.
Vontade de calar palavras,
de dormir o sono dos inocentes,
de sepultar sonhos de outrora,
de descobrir novos sonhos agora.

Eu tenho o silêncio
entranhado em minha alma.
Vastos campos de solidão.


Naldo Velho

quinta-feira, 30 de abril de 2015

SUBSTANTIVOS QUASE ABSTRATOS



I

Carinho
é um pássaro lazo e azul:
sublime, arisco e raro,
precisa de paz, luz e ninho. 


II

Ternura
é uma nuvem de verde cura:
precisa de abrigo
no coração da aventura.

III

Afeto
é tudo que ofertamos às almas
de mãos postas e peito aberto:
precisa de amores (di)versos.

IV

Gratidão
é um sentimento cúmplice:
precisa de coragem e culto diário
para voraz atropelar a escuridão!


Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"

Aniversariar



Aniversariar
é como abrir a janela pela manhã e ver,
sentir os outros bem diferentes,
mais ou menos amáveis, na nossa medida.


Aniversariar
é re-colocar parentes e amigos,
todos -- vivos ou mortos -- ao redor da mesa
da casa longe de casa.

Aniversariar
é tentar dissimular que hoje não é o dia
e não conseguir esse disfarce
simplesmente porque hoje é de fato
o dia do aniversário.

Aniversariar
é um limite e uma esperança
de que esse limite não se limite tanto
a um determinado momento em que se recebe abraços,
beijos e presentes.

Aniversariar
é qualquer coisa assim
como um motivo de fugaz felicidade
para o poeta fazer um poema de amor e amizade que dure
até quando se puder guardar esse poema.


Ricardo dos Anjos

[Fotografia que ganhei da amiga Dulce Mendes- Cassino - Rio grande do Sul.28/04/215]

domingo, 19 de abril de 2015

ABSTRATO


Nem veste
Nem pele
Só alma

Jefferson Dieckmann,

CANÇÕES DAS FLORES



I


Como os lírios na noite
junto às águas sombrias do regato,
brilhas diante de mim, amiga, em meus dias sombrios.
Nos meus longos outonos
é um belo consolo pensar
que onde quer que eu vá, vou à luz dos lírios.

As sombrias águas da torrente
escoam-se rápidas na noite
e não visitam mais a ribeira dos lírios.
Quanto mais me afasto
mais me recordo de tua beleza;
sigo, ébrio do odor de lírios, e espero e confio.

Erik Axel Karlfeldt**
in Poesias


**Erik Axel Karlfeldt (Karlbo, 20 de Julho de 1864 — Estocolmo, 8 de Abril de 1931) foi um poeta sueco simbolista, cujas poesias aparecem como regionalistas da era popular. Recebeu o Nobel de Literatura de 1931. Karlfeldt recusou o prêmio em 1919, considerando tal atribuição injusta por ser ele o secretário permanente da Academia Sueca.
Karlfeldt nasceu em uma família de agricultores em Karlbo, na província de Dalarna. Inicialmente, seu nome era Erik Axel Eriksson, mas ele assumiu seu novo nome em 1889, querendo se distanciar de seu pai, que havia sofrido a desgraça de uma condenação penal. Ele estudou na Universidade de Uppsala,1 ao mesmo tempo apoiando-se através do ensino escolar em vários lugares, incluindo Djursholms samskola em Djursholm, subúrbio de Estocolmo, e em uma escola para adultos. Após completar seus estudos, ele ocupou uma posição na Biblioteca Real da Suécia, em Estocolmo, por cinco anos.
Em 1917, Karlfeldt recebeu seu alma mater da Universidade de Uppsala, concedendo-lhe o título de Ph.D. em Honoris causa.

POEMA

 
E então, pergunto, por que esta vida
de pão e horas moídas?

Por que não somente um pássaro
na insciência da tarde clara,

uma árvore verde embutida
no musgo da manhã... Por que esta vida?

Por que não uma pedra severa
que não procura, não erra, não espera,

ou então outra vida, outra vida
que não esta, de sal e lâminas finas,

que não esta, de sal sobre as feridas?


Renata Pallottini
De Obra Poética (1995)

"Campos de Algodão"




Passeava em meus pensamentos..
A Poesia e a inspiração..
A lembrança era sempre a mesma..
Com momentos de ilusão..
Entre a viagem nas nuvens..
Sobre os campos de algodão..
Com aquele aperto no peito..
E o calor da sensação..
Quando surgiu no horizonte..
Aquela vibração..
Um raio de luz na penumbra..
Trazendo consigo na alma desnuda..
Magia.. encantamento..
Sempre esta doce emoção..
Poesia..
Dona desta inspiração..


Marta Eloiza

BUCÓLICA



A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;


De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Um pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.


Miguel Torga
[Escrito em S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937
Publicado em “Diário I”, Coimbra, 1941
E em “Poesia Completa”, 2000
Editora: Dom Quixote -Portugal]

LONGE



Às vezes,
tudo é tão longe em mim...
Meu viver parece um história
que alguém sonhou
há muito tempo,
num país distante.


(Sempre Palavra)

Helena Kolody
In: Luz Infinita

CANTAR


Quem vai cantando
não vai sozinho.
Dançam em seu caminho
o sonho e a canção.


(Poesia Mínima)


Helena Kolody
In: Luz Infinita

O VOO




Dói o domingo
no ninho dos tédios.

Dói o verão:
esta pele seca
estirada
sobre os ministérios vazios.

Dói o clube
dos domingos.

Dói o rito
dos domingos:
o amargo esporte
de viver.

O amargo esporte
de esquecer.

Dói a divisão da vida:
o pão subtraído,
o peixe poluído,
a paz envenenada.

Dói o voo cortante desta tarde.


H. Dobal,
Poeta piauiense, nasceu em Teresina.
In Antologia - I Concurso Nacional de Poesias
"Vinicius de Moraes" para Servidor Público.


[Arte;Michael&Inessa Garmash]

SILÊNCIO





Nada.
Nem o riso.
Nem a palavra.
Nem o humano grito.
Nada é mais duradouro que o silêncio.
 
Vicente Cechelero

JOGO


Ímpar –
Solidão que se acredita
Feliz se chegar a par.

Par –
Dois ímpares que se juntam
Em solidões separadas...
Par ou ímpar?

Tanto faz –
O resultado da escolha
É a mesma falta da paz.


Homero Frei
In: Lado Alado

[Arte; Denis Nolet]

domingo, 12 de abril de 2015

Milagre


De tempos em tempos, necessita-se um milagre
Algo a ser visto, mostrado, não por sobrenatural,
mas por algo que toque e desvele a natureza mesma,
por onde ela se esconde na miséria de sua invenção


De tempos em tempos, um milagre:
um gesto, humano e natural que seja,
que resgate, por um instante,
( que embale a eternidade)
um corpo que cai em irreal realidade

De tempos em tempos, um milagre que nos veja
e acaricie os olhos vedados
de nossa cega mortalidade

Em tempo, um milagre,
para que enfim se veja
que milagre é todo tempo
que esculpe uma verdade

Milagre que revele
nossa transcendente humanidade.

Adrilles Jorge.

-Paint by  -Vladimir Kush-

Falta


Quem sentirá tua falta quando faltares?
Importa a ti a tua falta
quando aqui não mais te achares?
Que falta faz a falta a si
quando a falta a ela mesma se torna presente?



Tu, que de ti nunca te ausentas
que de ti sempre te escondes
sabes bem
que tudo sobra
porque sempre falta algo que se ausenta,
desde antes que te abandonaram à vida,
quando nasceste
E até sempre
quando tu também
te encontrares na memória do que falta.


Adrilles Jorge.

-Paint by  Christian Schloe-

Na treva


Na treva, desenhamos o esboço da luz
para que nossa criação nos ilumine

Na treva, tateamos a voz mais próxima
que ecoa o calor de um corpo
que aquecerá
a multidão de nossas solidões entrelaçadas

Abrimos os olhos
e enxergamos com nitidez
a escura salvação que nos cega

Fechamos os olhos novamente
a fim de nos libertar
da cegueira que nos conduz
e tocamos nossa nudez desamparada
invisível a olhos sempre vestidos
por uma sempre clara ilusão.


Adrilles Jorge.
[Poeta belo-horizontino]

sexta-feira, 27 de março de 2015


...Lutar em segredo, fechado no quarto, sem que ninguém saiba. Para os outros, mostrar só o melhor de si, a face mais luminosa...

Caio Fernando Abreu
O desejo mergulha na luz,
de: Pequenas epifanias
 
...Gosto de pessoas doces, gosto de situações claras — e por tudo isso, ando cada vez mais só. É como me sinto melhor. ..


Caio Fernando Abreu
(Carta a Guilherme de Almeida Prado)

ENTRE O PÁSSARO E O AZUL


Verde, vermelho, azul e novamente
verde. A cor é um murmúrio da paisagem.
Na forma mais sutil de cada imagem
a terra é sempre a mesma e diferente.


Entre o pássaro e o azul a circunstância
é o rumor de asas. Entre folha e vento
a nuance é o voo. Entre o céu e o mar intenso
o mar é apenas líquida distância.

Em som e cor o mundo nos penetra
e sendo humano é um só. Para que habite
em tudo a voz profunda que interpreta

surge a palavra em densas sutilezas
composta a desdobrada sem limites
como se inventa em si a natureza.


Lupe Cotrim
in Encontro

TEMPO DE AMOR


A chuva de outono molha
o peso de minha altura
e tal rosa que desfolha
tenho pétalas na figura.


Por entre árvore e deserto
eu danço minha existência
de tudo longe e tão perto,
numa presença de ausência.

Irei por tudo que for;
Nessa posse do universo
carrego um tempo de amor
pelas tardes do meu verso.


Lupe Cotrim
in Encontro

Qualificação



Não venham com razões
e palavras estreitas.

O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.

E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.

O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.


Carlos Nejar


“Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.”

Clarice Lispector

[Clarice escreveu o seu último bilhete no leito no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, no dia 7 de Dezembro de 1977.]

A SOLIDÃO E SUA PORTA

 
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.


Carlos Pena Filho
In 'Livro Geral'

abstração*




minhas léguas de sonho são medidas
sem precisar do espaço do universo.
são imensas distâncias percorridas
no curto itinerário do meu verso.

minhas horas por milhas estendidas
são séculos sem data em que ando imerso
pois não as conta o tempo atroz e adverso
que faz a sucessão das outras vidas.
espaço e tempo, deles já liberto,
ageométricas órbitas percorro
do meu destino estando longe e perto.
livre de mim, de nada me socorro,
o povoado do mundo é meu deserto
e isso não me faz crer se vivo ou morro.


Paulo Fénder
In: Bengala Branca

deus*




deus: grandeza infinita ! paz fecunda
que frutifica o bem no amor que enflora !
deus-milênio ! deus-século ! deus-hora !
deus: tempo e espaço. luz que nos circunda.

é em vão que a inteligência se aprofunda
em desvendá-lo pelos céus afora.
sente-se deus num êxtase que inunda
a alma na própria fé que a revigora.
não procuremos deus no raciocínio.
o segredo talvez do seu fascínio
é que ele paira acima da razão.
prossiga o homem na faina das jornadas !
-deus é um desdobramento de alvoradas
pela estrada sem fim da perfeição !


Paulo Fénder
In: Bengala Branca

O vôo



Goza a euforia do voo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas tempo e vento
desabam no abismo.

Que sabes tu do fim ?

Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas.
Conserva a ilusão de que teu voo te leva sempre para o mais alto.

No deslumbramento da ascensão
se pressentires amanhã estarás mudo
esgota, como um pássaro, as canções que tem na garganta.

Canta. Canta para conversar uma ilusão de festa e de vitória.

Talvez as canções adormeçam as feras
que esperam devorar o pássaro.

Desde que nasceste não és mais que num voo no tempo.
Rumo do céu ?

Que importa a rota.
Voa e canta enquanto resistirem as asas.



 Menotti Del Picchia

INQUIETUDE


Ouço-te silêncio.
Diz-me o que sinto
O que anseio
O que me sufoca!


Esta inquietude permanente
Sem razão aparente de ser
O vazio profundo
Do querer e não querer.
Estou aqui
Vou, não sei onde
De onde venho, não recordo!

Nas horas aladas do desencontro
Fecho as pálpebras da vida
Perfumo de tomilho a alma
E parto, nas pétalas dos lírios brancos.


Cecília Vilas Boas
de 'O eco do Silencio"

CESTA DE PÁSSAROS


A manhã é uma cesta trançada
com fios de luz.
Nota por nota,
o canto dos pássaros
constrói a cidade sonhada.


Caminharemos todos,
como se pisássemos
em uma sonata azul,
e nossas mãos inventarão
novos gestos, novos mapas
onde o amor será sempre possível.

Nenhum homem matará outro homem.
Então a terra sairá
de sua órbita bem comportada
e, livres da força da gravidade,
seremos ao mesmo tempo
gente e pássaro.


Roseana Murray

segunda-feira, 2 de março de 2015

Poema de Domingo

 

Aos domingos as ruas estão desertas
e parecem mais largas.
Ausentaram-se os homens à procura
de outros novos cansaços que os descansem.
Seu livre arbítrio alegremente os força
a fazerem o mesmo que fizeram
os outros que foram fazer o que eles fazem.
E assim as ruas ficaram mais largas,
o ar mais limpo, o sol mais descoberto.
Ficaram os bêbados com mais espaço para trocarem as pernas
e espetarem o ventre e alargarem os braços
no amplexo de amor que só eles conhecem.
O olhar aberto às largas perspectivas
difunde-se e trespassa
os sucessivos, transparentes planos.

Um cão vadio sem pressas e sem medos
fareja o contentor tombado no passeio.

É domingo.
E aos domingos as árvores crescem na cidade,
e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se a cantar empoleirados nelas.
Tudo volta ao princípio.
E ao princípio o lixo do contentor cheira ao estrume das vacas
e o asfalto da rua corre sem sobressaltos por entre as pedras
levando consigo a imagem das flores amarelas do tojo,
enquanto o transeunte,
no deslumbramento do encontro inesperado,
eleva a mão e acena
para o passeio fronteiro onde não vai ninguém.


Antônio Gedeão,
de "Novos poemas póstumos", (Sá da Costa Ed., 1990),

O Lago


Um pouco d’água só, e, ao fundo, areia ou lama.
Um pouco d’água em que, no entanto, se retrata
O pássaro que o voo aos ares arrebata,
E o rubro e infindo céu do crepúsculo em chama.


Água que se transmuta em reluzente prata,
Quando, do bosque em flor, que as brisas embalsama,
A lua, como uma áurea e finíssima trama,
Pelos ombros da Noite a sua luz desata.

Poeta, como esse lago adormecido e mudo,
Onde não há, sequer, um frêmito de vida,
Onde tudo é ilusório e passageiro é tudo,

Existem, sobre um fundo, ou de lama ou de areia,
Almas em que tu vês apenas refletida
A tua alma, onde o sonho astros de oiro semeia.


Júlia Cortines
de Vibrações- 1905

O Coração



Que importa? Dês que em mim, ao golpe inopinado,
Como um leito de rio às súbitas cavado,
O sulco largo e fundo a desventura abriu,
Onde o rio do pranto, em torrentes, fluiu,
Uma treva mais densa ainda do que a treva
Que, em paredes de bronze, a escura noite eleva,
Sobre mim se fechou como um sepulcro, e a não
Iluminou sequer instantâneo clarão.



Júlia Cortines
de Versos - 1894 -

Terra Ideal


Como um pássaro, abrir na amplidão do horizonte
As asas eu quisera, e a uma terra voar
Que existe para além do píncaro do monte
E para além da toalha infinita do mar.


Terra onde o pálio azul das auroras se estende,
Sem nuvens, tinto de oiro o límpido fulgor,
Por sobre um solo verde e viçoso em que esplende
A água viva, a cantar entre margens em flor;

Onde os nimbos jamais, fustigados do açoite
Dos ventos, pelos céus rolam em turbilhões,
E onde o amplo manto arrasta a tenebrosa noite
De planetas broslado e de constelações;

E que do liminar de minha adolescência,
Entre sombras, a furto e a distância, entrevi,
E que em pleno verão e em plena florescência
Da raia do horizonte ainda me sorri...

E para onde eu estendo avidamente os braços,
E para onde se lança, atraído, o meu ser,
Vendo-a sempre, através de infinitos espaços,
De meus braços fugir, de minha alma correr...


Júlia Cortines
de Vibrações - 1905-

DURAÇÃO


Toda vida é breve
por mais que ela dure
entre a areia e o vento.

Todo amor é leve
mais leve que a neve
que cai sobre a relva.

Toda vida é treva
por mais que a ilumine
a luz de cem velas.

Todo fruto é amargo:
morde-o a morte com
seu único dente.

Toda eternidade
não dura um minuto
na manhã serena.

Lêdo Ivo
De Curral de Peixe (1991-1995)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Sombras sonoras




Numa tarde de abril, serena e lânguida,
eu me entretinha absorto a imaginar.
Como flores de calêndula no ar
a minha tarde se fazia cândida –
os amarelos eram parte grande da
cor que inundava a tarde no lagar.
Enquanto eu me inclinava a meditar,
o pôr-do-sol ia buscar o sangue da
aura pra tingir o céu aberto,
tremeluzindo o sol, quase encoberto,
a rendilhar o outono tropical.
E as borboletas, palpitando cores,
vão da calêndula beijando as flores
em um silencioso carnaval.

Ildásio Tavares 
Excerto do Livro -  Sombras Sonoras

domingo, 1 de fevereiro de 2015

""Children of the nigth""


(A los niños de Irak, Sudán, Kosovo, 
Colombia)

(Español & Português)


Bárbara es la hora
en que los niños se adormecen
con lágrimas ya secas.
Surcos sin memoria
en el infierno atravesado sus rostros.

Caminan como abandonando
callan como un siglo sin palabras
se muerden los labios
esperando que el verbo se convierta en pan
y les calme un hambre interminable
Cuando hablan si es que lo hacen
un puñal les sale de la boca
un odio agrio les parte la garganta en mil pedazos
y ya no les sale sangre
apenas preguntas que lanzan al aire como pelotas filosas
para seguir andando
para curtir abismo
para fluir de piedra
salen en las fotografías de los periodistas
y su mirada de huérfanos eternos nos resulta demasiado
Niños del desierto o del mar distante
un continente los escupe para que otro los rechace
Sin honor sin patria alguna vez madre
Niños sin nadie sin nada flotando
vida que terminará antes de lo probable
por su previo veneno
Apenas la cerca o la bandera rota
Recuerdos mutilados de noche perpetua
Por una maquinaria de horrores
Y su artillería infame
Para ellos no hay esperanza
Que nadie se engañe.



Consuelo Tomás Fitzgerald
(1957, Bocas del Toro, Panamá).



¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
"Children of the nigth"

(Ás ciranças do Iraque, do Sudão, Kosovo, Colombia) 



Bárbara é esta hora
em que os meninos adormecem
com lágrimas já secas.
Sulcos sem memória
no inferno atravessado seus rostos.

Caminham como-que abandonando
calam como um século sem palabras
esperando que o verbo se transforme em pão
e acalme a forme interminável

Quando falam se é que o fazem
um punhal sai da boca
um ódio ácido rompe a garganta em pedaçõs
e já não lhes escorre sangue
apenas perguntas que lançam no ar como bolas afiadas
para seguirem andando
para curtirem abismo
para fluirem da pedra

saem nas fotografías dos jornais
com a mirada de órfãos eternos parece excessivo
Meninos do deserto ou do mar distante
um continente cospe-os para que outros os rechacem
Sem honra sem pátria alguma vez mãe
Meninos sem ninguém sem nada flutuando
vida que terminará antes do provável
por seu veneno antecipado

Apenas a cerca ou a bandeira rota
Lembranças mutiladas de noite perpétua
Por uma engrenagem de horrores
E sua artilharia infame
Para eles não resta esperança
Que ninguém se engane. 



Consuelo Tomás
Tradução de Antônio Miranda

''Viver''



Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?

O projeto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?


Carlos Drummond de Andrade,
in 'As Impurezas do Branco'

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O SILENCIO


O silencio tem uma porta
que se abre
para um silencio maior:
antecâmara do ultimo,
que anuncia outro depois. 




Dora Ferreira da Silva
In: Poesia Reunida

(Tela de Maria Inês Carmona Ribeiro da Fonseca)