A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

Seja bem-vindo. Hoje é
Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

'Metamorfose'



No combate entre o gelo e o fogo
A vida universal desdobra-se em ciclos
No espaço de mil séculos.
Tomamos consciência do cósmico,
Tentamos ligações com o espírito há muito abatido
E a alma afunda em dimensões pulverizadas.
Dá-se a recuperação das espécies rejeitadas,
O achado do perdido não procurado.
Do implacável e do flamejante
O universo não está terminado.
Há mutações silenciosas em cada instante que soçobra
E que só percebemos da metamorfose de mil em mil séculos.

Somos casulos pendurados nas folhas de árvores sem nome,
Casulos à espera da metamorfose cíclica do tempo.


Adalgisa Nery
In 'Erosão'
1974

Como é por dentro outra pessoa ...


(René Magritte)

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.


Fernando Pessoa
in "Poesias Inéditas"
1934

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

'PASSANDO...'


(Photo by Fernando Campanella)

Por entre a louca multidão ruidosa,
que a seus pés se agitava doidamente,
erguia a calma fronte majestosa
a altiva estátua do guerreiro ingente.
Um dia veio a guerra... Ímpia, sacrílega,
mão estrangeira num furor infando
fê-la rolar partida, enquanto as turbas
riam, passando...

O ipê robusto sacudia os galhos,
onde cantava a música dos ninhos;
dos céus bebia os matinais orvalhos
ensombrando as alfombras dos caminhos.
Um lenhador chegou. Os ramos da árvore
caíram todos a seu forte mando...
Hoje, no chão deserto, as feras rudes
Seguem, passando...

Tudo passa no Mundo, no Universo...
Tudo segue seu rumo inevitável...
No mar, na terra, na amplidão, disperso,
nada perdura eternamente estável.
Prantos de dor, invocações ou súplicas,
quem pode desviar a Sorte, quando,
quando a roda fatal nos toma e leva,
leve, passando!

Não! Ninguém nos detém... Lábios de virgem,
sonhos nobres de louros e de glória,
nada detém na intérmina vertigem
o turbilhão da vida transitória.
Ó crianças que amais! Ó almas cândidas,
que acreditais no afeto amigo e brando,
não busqueis ilusões... O amor mais forte
morre, passando...


Medeiros de Alburqueque
In: Canções da Decadência e Outros Poemas

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Paisagem Noturna



A sombra imensa, a noite infinita enche o vale . . .
E lá do fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
— Em noss'alma criminosa,
O pavor se insinua . . .
Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua . . .
E cadentes, metálicos, pontuais,
Os tanoeiros do brejo,
— Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.
Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva
A sombria massa
Das serranias.

O plenilúnio via romper . . . Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes.
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliqüescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
Fazendo levantar a fronte
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas consciências medrosas
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
— A Lua
Assoma à crista da montanha.
Em sua luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam . . .

Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longe das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros
Quando,
Fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranqüilos ruminando . . .
Assim a névoa azul paira sonhando . . .
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos.

E o luar úmido . . . fino . . .
Amávico . . . tutelar . . .
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . .


Manuel Bandeira


"Os meus pensamentos foram-se afastando de mim, mas, chegado a um caminho acolhedor, rejeito os tumultuosos pesares e detenho-me, de olhos fechados, enervado num aroma de afastamento que eu próprio fui conservando, na minha pequena luta contra a vida. Só vivi ontem.
(...)

Ontem é uma árvore de longas ramagens, e estou estendido à sua sombra, recordando.

De súbito, contemplo, surpreendido, longas caravanas de caminhantes... Com os olhos adormecidos na recordação, entoam canções e recordam. E algo me diz que mudaram para se deter, que falaram para se calar, que abriram os olhos atônitos ante a festa das estrelas para os fechar e recordar...

Estendido neste novo caminho, com os olhos ávidos florescidos de afastamento, procuro em vão interceptar o rio do tempo que tremula sobre as minhas atitudes. Mas a água que consigo recolher fica aprisionada nos tanques ocultos do meu coração em que amanhã terão de se submergir as minhas velhas mãos solitárias..."


(Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer")

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

'OH TIERRA, ESPÉRAME '



Vuélveme oh sol
a mi destino agreste,
lluvia del viejo bosque,
devuélveme el aroma y las espadas
que caían del cielo,
la solitaria paz de pasto y piedra,
la humedad de las márgenes del río,
el olor del alerce,
el viento vivo como un corazón
latiendo entre la huraña muchedumbre
de la gran araucaria.
Tierra, devuélveme tus dones puros,
las torres del silencio que subieron
de la solemnidad de sus raíces:
quiero volver a ser lo que no he sido,
aprender a volver desde tan hondo
que entre todas las cosas naturales
pueda vivir o no vivir: no importa
ser una piedra más, la piedra oscura,
la piedra pura que se lleva el río.


Pablo Neruda
De Memorial de Isla Negra [1964], Buenos Aires,
Losada, 1964; cuatrena edizión, 1978, p. 207.

'LA NOCHE EN ISLA NEGRA'



Antigua noche y sal desordenada
golpean las paredes de mi casa:
sola es la sombra, el cielo
es ahora el latido del océano,
y cielo y sombra estallan
con fragor de combate desmedido:
toda la noche luchan,
nadie conoce el peso
de la cruel claridad que se irá abriendo
como una torpe fruta:
así nasce en loa costa,
de la furiosa sombra, el alba dura,
mordida por la sal en movimiento,
barrida por el peso de la noche,
ensangrentada en su cráter marino.

Pablo Neruda,
in: "Memorial de Isla Negra"


A tinta preta que baila no papel
garante a eternidade do que empunha
o objecto dançarino e frio
(julgava eu uma dia, ou simplesmente
fingia acreditar). A tinta
de qualquer cor e o papel
ou ferro onde se inscreva
passam voláteis como os dedos
cheios de intenções e como
o som do cuco três vezes repetido.

Ao silêncio seguinte ninguém sequer
responde, pois não sabe
ter havido um som, uma verdade, um antes.

Pedro Tamen
In ‘Memória Indescritível’ (2000)

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

'ESPERANÇA'



Eis a aliada do amor, que volta, verde e mansa,
Mal a um sonho que morre ouve o extremo queixume:
E não tarda que da alma em cinzas, e esta aliança,
Nova Phenix, um novo Ideal surja e se emplume.

Desejo! Que te baste apenas o perfume
Das flores da ilusão que o braço não alcança.
Esperar! Quantos bens a esperança presume!
Esperança ... Derrota ... Ironia ... Esperança ...

E em vão, para imergi-la, o mar brame e retumba:
Nuvem sempre distante, ela acompanha a vida,
Do sorriso do berço à lagrima da tumba.

E quando a alma, afinal, triste e desiludida,
Treme, no horror do mundo ao qual o corpo a chumba,
A suprema esperança arma o braço ao suicida.


Heitor Lima
in 'Primeiros Poemas'

'Saudade'



A saudade é uma andorinha,
mas uma andorinha estranha:
quando, num peito se aninha,
as outras não acompanha…

Saudade – coisa que a gente
não explica nem traduz;
faz do passado, presente,
e traz sombras, sendo luz…

Saudade – febre que a gente
sem querer, pode apanhar,
nunca mata de repente,
vai matando, devagar…

Saudade – a princípio é pena
que nos deixa uma partida;
depois é dor que condena
a morrer dentro da vida…

se é triste sentir saudade,
muita saudade de alguém,
maior infelicidade
é não tê-la de ninguém.

Yde Schloenbach Blumenschein
(Colombina)

'Quando eu partir...'




Quando eu partir, quando eu partir de novo,
A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
Quando eu partir...
Como se um outro ser nascesse
De uma crisálida prestes a morrer sobre um muro estéril,
E sem que o milagre lhe abrisse
As janelas da vida...
Então pertencer-me-ei.
Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão-de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
E eu serei o senhor da minha própria liberdade.
Nada ficará no lugar que eu ocupei.
O último adeus virá daquelas mãos abertas
Que hão-de abençoar um mundo renegado
No silêncio de uma noite em que um navio
Me levar para sempre.
Mas ali
Hei-de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei-de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente...
Para sempre

Ruy Cinatti
In ‘Nós Não Somos deste Mundo’ (1941)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

'Bird'



My soul is a scared bird, the highest heaven is nest
Fretting within its body-bars, if finds on earth its nest

When rising from its dusty heap this bird of mine would soar
'Twin find upon the lofty gate the nest it had before

Sidrah would receive my bird, when it has winged its way
And on Empyrean's top, my falcon's foot would stay

Over the ample field of earth is fortune's shadow cast
Where upon wings and pennons borne this bird of mine has passed

No spot in the two worlds it owns, above the sphere its goal
Its body from the quarry is, from "No Place" is its soul

This only in glorious world my bird its splendor shows
Rosy bowers of Paradise its daily food bestows


Khajeh Shamseddin Mohammad Hafiz-s Shirazi
(Chiraz 1325-Id. 1390)

domingo, 7 de dezembro de 2008

É UM NÃO QUERER MAIS QUE BEM QUERER *



I

Gosto de ti apaixonadamente,
De ti que és a vitória, a salvação,
De ti que me trouxeste pela mão
Até ao brilho desta chama quente.

A tua linda voz de água corrente
Ensinou-me a cantar... e essa canção
Foi ritmo nos meus versos de paixão,
Foi graça no meu peito de descrente.

Bordão a amparar minha cegueira,
Da noite negra o mágico farol,
Cravos rubros a arder numa fogueira!

Eu eu, que era neste mundo uma vencida,
Ergo a cabeça ao alto, encaro o Sol!
- Águia real, apontas-me a subida!


Florbela Espanca

*Aos dez sonetos seguintes, numerados de I a X, serve de título este verso de Camões.
Sonetos publicados no livro "Charneca em Flor" 2ª edição,publicação póstuma, Lisboa 1931.

II



Meu amor, meu Amado, vê... repara:
Poisa os teu lindos olhos de oiro em mim,
- Dos meus beijos de amor Deus fez-me avara
Para nunca os contares até ao fim.

Meus olhos têm tons de pedra rara
- É só para teu bem que os tenho assim -
E as minhas mãos são fontes de água clara
A cantar sobre a sede dum jardim.

Sou triste como a folha ao abandono
Num parque solitário, pelo Outono,
Sobre um lago onde vogam nenufares...

Deus fez-me atravessar o teu caminho...
- Que contas dás a Deus indo sózinho,
Passando junto a mim, sem me encontrares?

Florbela Espanca

III



Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que me não amas...

E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...

Florbela Espanca

IV



És tu! És tu! Sempre vieste, enfim!
Oiço de novo o riso dos teus passos!
És tu que eu vejo a estender-me os braços
Que Deus criou pra me abraçar a mim!

Tudo é divino e santo visto assim...
Foram-se os desalentos, os cansaços...
O mundo não é mundo: é um jardim!
Um céu aberto: longes, os espaços!

Prende-me toda, Amor, prende-me bem!
Que vês tu em redor? Não há ninguém!
A Terra? - Um astro morto que flutua...

Tudo o que é chama a arder, tudo o que sente,
Tudo o que é vida e vibra eternamente
É tu seres meu, Amor, e eu ser tua!

Florbela Espanca

V



Dize-me, Amor, como te sou querida,
Conta-me a glória do teu sonho eleito,
Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,
Arranca-me dos pântanos da vida.

Embriagada numa estranha lida,
Trago nas mãos o coração desfeito.
Mostra-me a luz, ensina-me o preceito
Que me salve e levante redimida!

Nesta negra cisterna em que me afundo,
Sem quimeras, sem crenças, sem ternura,
Agonia sem fé dum moribundo,

Grito o teu nome numa sede estranha,
Como se fosse, Amor, toda a frescura
Das cristalinas águas da montanha!

Florbela Espanca

VI



Falo de ti às pedras das estradas,
E ao sol que é loiro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de Princesas e de Fadas;

Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;

Digo os anseios, os sonhos, os desejos
De onde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória,
São astros que me tombam do regaço!

Florbela Espanca

VII



São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é somente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se poisaram.

São mortos os que nunca alevantaram
De entre escombros a Torre de Menagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram, e os que não choraram.

Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma de um entardecer,

Tombando, em doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heróico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha!

Florbela Espanca

VIII




Abrir os olhos, procurar a luz,
De coração erguido ao alto, em chama,
Que tudo neste mundo se reduz
A ver os astros cintilar na lama!

Amar o sol da glória e a voz da fama
Que em clamorosos gritos se traduz!
Com misericórdia, amar quem nos não ama,
E deixar que nos preguem numa cruz!

Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto e, se esse morrer,
Mais outro, e outro ainda, toda a vida!

Que importa que nos vençam desenganos,
Se pudermos contar os nossos anos
Assim como degraus duma subida?

Florbela Espanca

IX



Perdi os meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? -
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de oiro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...

Florbela Espanca

X




Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida
- Quanto mais funda e lúgubre a descida,
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!

Florbela Espanca


*Homenagem à poetisa portuguesa, nascida há 114 anos no dia 08/12,
batizada Flor Bela Lobo,
viveu como Florbela d’Alma da Conceição Espanca,
imortalizada como FLORBELA ESPANCA.


*Arte final das fotografias, Regina Helena Siqueira

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

'Chove ? Nenhuma chuva cai..'.



Chove ? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?

Onde é que chove, que eu o ouço ?
Onde é que é triste, ó claro céu ?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...

Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia

Põe dias de ilhas vistas do convés
No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...

Fernando Pessoa
In: Cancioneiro

'Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva...'



Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa
In: Cancioneiro

'O SONHO'



O peso da vida
Não sofre o afago da alma.
E assim persigo delfins desconhecidos
Em mares desconhecidos.

Ilhas que eu não queria
- Surgem.

Ruy Cinatti

‘Quando o amor morrer’



Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o noturno calor que se debruça
Sobra as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonho que gelaram.

Ruy Cinatti