segunda-feira, 30 de setembro de 2013
''Prece''
dá-me a lucidez das
correntezas para que eu descubra
entre as tristezas que se
avolumam algum
sorriso mesmo
que não seja para mim
dá-me a serenidade de uma
estrela para que eu imagine
entre as lágrimas que não
me deixam qualquer
paz ainda
que breve
dá-me a claridade das
luas cheias para que eu invente
entre as angústias que se esparramam um
horizonte mesmo
que se transmutem em ilusão
dá-me a esperança das
árvores para que eu teça
entre as ausências que se
intensificam uma sanidade ainda
que estofada de
delírios
[Adair Carvalhais Junior]
''PELAS MULHERES ANÔNIMAS''
Rogo hoje a Deus pelas mulheres esquecidas
que sempre foram ‘caso’ e nunca foram tema:
mulheres sem o amor das musas pertencidas
sem o nome lembrado ao menos num poema.
E penso nas mulheres nunca compreendidas
as que sofrem sozinhas porque sentem pena
das mulheres que choram porque suas vidas
são extremos entre o prazer e a dor suprema.
E Deus se apraza das mulheres sem história
que desistem do sonho sem deixar memória
ou vivem de ilusões dos sonhos já passados.
Rogo de Deus o amor de dias complacentes
eis porque todas as mulheres são nascentes
dos milagres de amor que foram realizados!
Afonso Estebanez
sexta-feira, 27 de setembro de 2013
''RETROVIAGEM''
Adiada a chegada
o mar é só vertigem
o porto está distante.
A noite nos oceanos
é uma tragédia de negrumes
onde se perdem
os homens ávidos de idílios
entre cetáceos ressabiados
e atlânticas saudades.
A estrela que me acompanha
(ou a persigo, em solitária romaria?)
restabelece o ancoradouro
que precocemente fugiu
das garras tênues
de um viandante inconcluso.
Mais inquieta é a esperança
se nela não navego
ou galopam outros sonhos.
A geografia dessas águas
fabrica desafios, enquanto no rosto
mareja o sacrifício da espera.
Ronaldo Cagiano
De Canção dentro da noite
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
"As estrelas do lago'
Havia, ontem à noite, tanta estrela
A tremer, a luzir n’água do lago,
Que eu pensei que era o céu
Que, por artes de algum mago,
Tinha descido à terra, de repente! ...
Parei-me junto ao lago, contemplando ...
E as estrelas, uma a uma,
Como espuma,
À flor d’água tremiam, refulgiam ...
Mas pouco a pouco foram reduzindo
O seu brilho,
E desapareceram ...
Olhei o céu: Lá estavam todas elas
A tremer, a brilhar! ...
Por certo riam
Da minha ingênua confusão ...
Que importa! ...
As estrelas do céu também se apagam.
Terra e céu cabem juntos
Dentro do mesmo sonho e da mesma ilusão ...
Emilio Kemp
in ‘Cantos de Amor ao Céu e à Terra’
(1873-1955)
''A lua canta ao rio''
Sou única no firmamento
e múltipla dentro do abismo.
Do fundo rio me contempla
a minha imagem refletida.
Sou a verdade no firmamento,
sou o imaginário no abismo,
Do fundo do rio me contempla
a minha imagem, no seu enganoso destino.
Lá no alto estou rodeada de silencio;
no abismo sussurro e canto.
No firmamento sou um deus,
no rio sou uma oração.
Lea Goldberg
in Poesia de Israel
[Tradução: Cecília Meireles]
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
''Embalo''
Ao balanço das águas,
Ao trépido pulsar
Da máquina, embalar
As persistentes mágoas
Das peremptas feridas...
Beber o céu nos ventos
Sabendo a sonolentos
Sais e iodados relentos.
Anseios de insofridas
Esperas e esperanças
Diluem-se na bruma
Como na vaga a espuma
— Flores de espumas mansas —
Que a um lado e outro abotoa
Da cortadora proa.
Azuis de águas e céus...
Sou nada, e entanto agora
Eis-me centro finito
Do círculo infinito
De mar e céus afora.
— Estou onde está Deus.
- Manuel Bandeira,
em "Estrela da tarde", 1960.
''Beira mar''
Tardinha. Á débil luz do sol que já declina
e se esconde por traz das montanhas distantes,
toda a linda avenida esplende e se ilumina
de estranhos, orientais, imprevistos cambiantes.
E é desde Botafogo, a indolente e divina,
e o Russel e o Flamengo em luzes cintilantes,
até onde a Avenida esplêndida termina,
todo um grande fulgor de apoteoses flamantes.
Pelos lindos jardins abrem-se as azáleas.
Começa a despontar a luz do luar medrosa....
E, ao crepúsculo triste, um som de piano evoca
tênues, meigas, subtis, inefáveis ideias,
como que, a me prender, feminina e amorosa,
a sedução sem fim desta terra carioca....
José de Mesquita,
“Paisagens Cariocas”, Da Natureza - em "Poesias".
Cuiabá, 1919.
''Beira de rio''
Nunca me ha de esquecer a beleza, a poesia
dessa beira de rio, azul, ao sol radiante,
em que dias passei repletos de alegria,
na minha adolescência em flor, linda e distante!
A risonha sazão florigera corria.
Longe ia a cheia atroz ... Era pela vazante.
E a safra de um olor misterioso embebia
o ar todo a trescalar a mel puro e fragrante.
O “Morrinho” no azul seu vulto delineia,
e a praia é fulva, ao sol, e o canavial ondeia,
da várzea para além, num suave pendor...
E eis-me a ver, a alma inerte e lânguidos os músculos,
incendiarem o poente os rubidos crepúsculos
e baixar o luar do céu todo esplendor ...
José de Mesquita,
‘Impressões e Paisagens, Mato--Grosso pinturesco’ -
em "Terra do Berço".
Cuiabá: Escolas Profissionais Salesianas, 1927.
''Deslumbramento''
Há, na vida, por mais áspera, rude e escura,
horas que valem tudo e compensam as dores
que afligem, dia e noite, a pobre criatura,
neste vale em que há mais espinhos do que flores.
Quem não sentiu jamais essa hora de ventura,
Vaga entre-luz do céu, do averno entre os horrores,
sutil emanação do Amor, que, eterno, dura,
do qual são simples sombra, os mais belos amores ?
Essa Visão de Deus, Graça, Paz, Euforia,
ou nos vem, pela fé ao cérebro cansado,
ou, pelo Amor, nos desce à alma tediosa e fria.
E ficamos, assim, de olhar turvo e tremente,
sentindo esse fulgor do Ser iluminado,
tal como quem fitou o sol de frente a frente !
José de Mesquita
(Março 1938), em "Escada de Jacó".
Cuiabá: Escola Industrial Salesiana, 1945.
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
'CANÇÃO DE DE INVERNO'
Cai a neve de mansinho.
Cai a neve em meus cabelos,
Que eram de ouro e são de luar,
Altas torres de castelos...
Cai a neve de mansinho,
Para os sonhos sepultar.
Cai a neve...tão de leve!
No meu rosto, brando e brando.
Será neve resvalando
Ou é pranto a deslizar?
Helena Kolody.
de Viagem no Espelho.
'Á lágrima'
Oh!Lágrima cristalina,
tão salgada e pequenina,
quanta dor tu não redimes!
Mesmo feita de amargura,
és tão sublime, tão pura.
Que só virtudes exprimes.
Ao coração torturado,
pela saudade magoado.
Pelo destino cruel,
Tú és a pérola linda,
do rosário que não finda,
feita de tortura e fel.
Helena Kolody
[Poema publicado na revista Garoto de 1928]
[Tela de Robert Ball, 'Tears"]
sexta-feira, 13 de setembro de 2013
''A DISTRIBUIÇÃO DO TEMPO''
Um minuto, um minuto de esperança
e depois tudo acaba. E toda crença
em ossos já se esvai. Só resta a mansa
decisão entre morte e indiferença.
Um minuto, não mais, que o tempo cansa
e sofisma de amor não há que vença
este espinho, esta agulha, fina lança
a nos escavacar na praia imensa.
Mais um minuto só, e chega tarde.
Mais um pouco de ti, que não te dobras,
e que eu me empurre a mim, que sou covarde.
Um minuto e acabou. Relógio solto,
indistinta visão em céu revolto,
um minuto me baste e a minhas obras.
Carlos Drummond de Andrade
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