A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

OUTONO PRECOCE


Odor picante já de folhas murchas,
trigais a abrir-se vagos e sem vista:
sabe-se que das tempestades próximas
uma desnucará nosso exausto verão.

As vagens da giesta rangem. De repente
avultam ante nós o distante e o lendário:
o que hoje imaginamos ter na mão
perde-se, e cada flor, misteriosamente.

Na alma assustada cresce um tímido desejo:
de não prender-se à vida em demasia,
de aceitar como as árvores o emurchecer,
de não deixar que o seu outono faltem cores e alegria.

Hermann Hesse

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Fazer um Céu


Fazer um céu, com pouco a gente faz
basta uma estrela
uma estrela e nada mais.
Pra ter nas mãos o mundo
basta uma ilusão
um grão de areia
é o mundo em nossa mão.
Sonhar é dar à vida nova cor
dar gosto bom às lágrimas de dor
o sol pode apagar, o mar perder a voz
mas nunca morre um sonho bom dentro de nós.

Mário Lago

Céus Nossos


Céus nossos, terra nossa,
nossa é a graça,
a graça de existir por um momento.

Chamas, ensinai-nos a lição
de iluminar morrendo.


Péricles Eugênio da Silva Ramos
in 'A noite da memória'
(Lorena- SP 1919 , São Paulo- SP 1992)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Trumpet’s Blues

Tela by Ted Hornes, Blues Silhouette

O dia se foi.
A lua é um nada,
O vento é frio.
Passado, presente


Futuro – é isso:
Um cigarro aceso,
Uma tosse no meio da praça,
Um estalar de dedos na outra esquina.


Então, lá no fundo,
No meio da cidade,
Alguém começa a gritar
Pelo bocal de um piston.



Sérgio Jockyman
De ‘Poemas em negro’, pag 47
Imprensa Oficial do Estado – 1958-


Sérgio Jockyman
(Palmeira das Missões, 29 de abril de 1930- RS — Campinas, 16 de fevereiro de 2011- SP)
foi um jornalista, romancista, poeta e dramaturgo brasileiro.)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Se recordo quem fui, outrem me vejo,


Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é um presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.

26-5-1930



Fernando Pessoa
Em Poesia dos Outros Eus
- Obra essencial de Fernando Pessoa
Editora Assírio & Alvim – 2007 –

De Fernando Pessoa...



Sê lanterna, sê luz com vidro em torno,
Porém o calor guarda.
Não poderão os ventos opressivos
Apagar tua luz;
Nem teu calor, disperso, irá ser frio
No inútil infinito.

3-1-1929



Fernando Pessoa
Em Poesia dos Outros Eus
- Obra essencial de Fernando Pessoa
Editora Assírio & Alvim – 2007 –

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Regresso


Sem mais nem menos
surgiu o passado,
corpo intranquilo
feito de sons semelhantes
aos rostos que amei,
universo donde me excluí,
mar desprovido de cais
na obliquidade dos contrastes.

Esta noite voltei à minha infância:
menina rosada de sonhos nos bolsos,
bailarina de corda na caixinha de som.

À infância regressa-se solitariamente,
subindo um rio sem margens,
até ao lugar em que a nascente
se confunde com o tempo
e o tempo se transforma em espanto.

Procuro, teimosamente,
o rasto da brisa
que me invade o corpo
e apenas sei que o sonho
é um risco inquietante,
quando a solidão tem rosto
e se conhece a posição das estrelas
no âmago das palavras.

Reinicio a infância
no esboço do poema
e circunscrevo o litoral
fragmentado do que sou.

Quem foi que descodificou
o céu no meu olhar
e me deixou na alma
um deus imaginado?

Quando o espaço do sonho é circular
como o tempo das cerejas,
ou da migração dos pássaros
que fendem o infinito,
inadiado é o rito da poesia.

Se eu fosse uma gaivota, dançaria
na proa dos veleiros
até à hipnose
de abraçar a maresia.

Graça Pires

Fundo do Mar

Fundo do mar
Quero ver
o fundo do mar
esse lugar
de onde se desprendem as ondas
e se arrancam
os olhos aos corais
e onde a morte beija
o lívido rosto dos afogados

Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço

Mia Couto

Dizes-me...


Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm ideias sobre o mundo?

Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.

Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.

Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.

Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.

Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,

Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra",
Digo da planta, "é uma planta",
Digo de mim, "sou eu".
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?

Alberto Caeiro,
in "Poemas Inconjuntos"

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

PARAÍSO


Se houver além da Vida um Paraíso,
Outro modo de ser e de viver,
Onde p’ra ser feliz seja preciso
Apenas ser;


Onde uma Nova Terra áurea receba
Lagrimas, já diversas, de alegria,
E em Outro Sol nosso olhar outro beba
Um Novo e Eterno Dia;


Onde o Áspide e o Pomba de nossa alma
Se casem, e com a Alma Exterior
Numa unidade dupla – sua e calma –
Nossa alma viva, e à flor


De nós nosso intimo sentir decorra
Em outra Cousa que não Duração,
E nada canse porque viva ou morra –
Acalmaremos então?


Não: uma outra ânsia, a de infelicidade,
Tocar-nos-á como uma brisa que erra,
E subirá em nós a saudade
Da imperfeição da Terra.

6-11-1912



Fernando Pessoa
Em Poesia do Eu
- Obra essencial de Fernando Pessoa
Editora Assírio & Alvim – 2006 –

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

À NOITE, EM TRIESTE


Na Argélia, sentiu-se o amargo “estrangeiro”:
sol a pino queimando a sua vereda morena.

Em Berlim, como em Turim, o frio augusto:
tantos graus abaixo de tristes zeros.

Tudo tão distante estava daquilo
que um dia chamara de sua "pátria"...

Na cara nevasca da sua atroz solidão,
só três perguntas ele se permitia fazer,
olhar pousado sobre a Pietà em Milão:

1. Será que a mulher provara, ou desconfiara,
d'algo além das suas palavras mais cruas;
ditas quando envoltos em lençóis de luas?

2. Será que a mulher sabia que ser o rei
tessálico era só ventura de pura fantasia?

3. Será que a mulher percebia, ou vislumbrara,
que repousava nele o ser inverso; outro e mesmo
- capaz de dizer-lhe tudo... Que suado soava,
de um jeito diverso – maroto, sublime e suave?

Nisso pensava o homem desperto, alerta
e sem rumo, dentro daquela noite em Trieste.

Nisso pensava o homem sedento, exilado,
ao mergulhar à noite, incauto, no Mar Adriático.

Tudo sentia, na boca e na alma, ao nadar
em águas itálicas: a dúvida e o estranho
gosto da sorte lançada na ardósia da plaza.

Tudo pretendia, da cabeça ao ventre, estender.

Não queria que ela, por entre outras pegadas,
confundisse seus passos-palavras com algo
menos sublime que sua mais íntima forma de ser.


*Jairo De Britto,
em “Dunas de Marfim”