domingo, 30 de novembro de 2014
''A VIDA É SONHO''
É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
em mundo tão singular
que o viver é só sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com esse engano mandando,
resolvendo e governando.
E os aplausos que recebe,
Vazios, no vento escreve;
e em cinzas a sua sorte
a morte talha de um corte.
E há quem queira reinar
vendo que há de despertar
no negro sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza
que trabalhos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que o triunfo preza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
no entanto ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.
Pedro Calderón de La Barca
De 'Solilóquio de Segismundo'
- Tradução de Renata Pallotini
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Renata Pallottini
terça-feira, 25 de novembro de 2014
Soneto
Eu preciso de música que flua
nas pontas finas, frágeis dos meus dedos,
nos meus lábios amargos de segredos,
com melodia líquida e nua.
Ah, a antiga ginga sã e crua
de uma canção que aos mortos dê guarida,
água que me cai sobre a testa erguida,
o corpo febril, um brilho de Lua!
A melodia pode enfeitiçar:
magia calma, respiração pura,
um coração que afunda no abandono
da mansa, escura imensidão do mar
e flutua pra sempre na verdura,
amparado no ritmo e no sono.
Elizabeth Bishop.
tradução, Jorge Pontual
A VERDADE
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com o mesmo perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade.
(do livro "O corpo", editora Record)
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
HÁBITO ADQUIRIDO
Meus dias têm o hábito
de caminhar pela alameda sem dar conta de mim.
Um hábito que as tardes me ensinaram generosamente.
Os bolsos cheios de nada e as mãos vazias de tudo...
De volta, o portão de casa entreabre os braços secos
e me convida para entrar...
E vem aquela sensação de que esqueci
de me lembrar do que o dia indiferente não contou...
Retorno em busca da lembrança do sorriso de amizade,
do cântico de um pássaro, de um beijo que me deu a brisa...
E só então percebo que minhas mãos vadias
– não sabendo uma o que a outra anda fazendo –
já me haviam tocado o coração secretamente
com o encanto que as idas e vindas pela vida
acabavam de me dar...
Entro afinal, e num cantinho da memória
um sorriso de criança acende a luz
da minha alma...
Como se alguma flor esquecida
estivesse me estendendo a mão...
... a mão do aroma de rosas
que ainda me acompanha...
Afonso Estebanez
quarta-feira, 12 de novembro de 2014
'AVE DE EMIGRAÇÃO'
Minha vida é o impulso da certeza
de um pássaro que emigra do deserto
e traça o voo noturno de uma estrela
pelos mares de luzes do universo...
Pensarão que minha alma é suscetível
de um breve pouso n’algum porto adverso
onde ancoram os restos impossíveis
da loucura intangível que professo...
Mas os meus rios rolarão sem trégua
até que a paz consuma os seus vestígios
e os ventos se apascentem sobre as águas
e o mar se acalme sobre meus sentidos...
Nenhum rumor se elevará da noite
nem mesmo um sopro escapará da brisa
por onde o corpo durma e a alma escute
uma canção que nunca foi ouvida...
Serei a luz da sombra fugidia
alma emigrada de minh’alma afim...
E todos pensarão que é agonia
a exaltação do amor dentro de mim!
Afonso Estebanez Stael
de um breve pouso n’algum porto adverso
onde ancoram os restos impossíveis
da loucura intangível que professo...
Mas os meus rios rolarão sem trégua
até que a paz consuma os seus vestígios
e os ventos se apascentem sobre as águas
e o mar se acalme sobre meus sentidos...
Nenhum rumor se elevará da noite
nem mesmo um sopro escapará da brisa
por onde o corpo durma e a alma escute
uma canção que nunca foi ouvida...
Serei a luz da sombra fugidia
alma emigrada de minh’alma afim...
E todos pensarão que é agonia
a exaltação do amor dentro de mim!
Afonso Estebanez Stael
'AVISO'
Não demoro, favor aguardar...
Necessidade extrema de saber
onde minha alma está.
Não haverá tempo de sentir
saudade, pois devo voltar pouco
tempo depois que terminar
a eternidade...
Então, eu não estou aflito.
Estou só de coração sentado
na pedra bruta de minha vida
onde jaz calada – no meu grito
cúbico de súbito abafado – a alma
sem liberdade de ficar perdida.
Rogo não interromper a pressa
nem irritar a paz do meu conflito.
Quem me encontrar primeiro,
devolva-me com toda a urgência:
minha alma vai necessitar do amor
que dê conforto ao meu espírito...
Não demoro, favor aguardar...
Necessidade extrema de saber
onde todos um dia vão perder
a irrecuperável oportunidade
de se reencontrar!
Julis Calderon d'Estéfan
(Heterônimo de Afonso Estebanez)
domingo, 9 de novembro de 2014
ROSAS DO SUL
Repousei minhas rosas andarilhas
numa ilha de agaves sem encanto
um deserto enfeitado de gravilhas
em vias de morrer de desencanto.
Com amor infinito a flor-do-campo
abraçou minhas rosas como filhas
do pólen que gerou o terno canto
do pranto ritmado em redondilhas.
Enquanto havia pausa obrigatória,
julgava que estivesse na memória
esse destino de seguir em frente.
Não só! Eu sou o espírito da rosa
que exalta essa paixão misteriosa
que por amor revive para sempre!
Afonso Estebanez – 03.11.2014
(Dedicado a Maria Madalena Cigarán – a Dama das Rosas
tintas de vinho e sangue da extrema liberdade concebida!).
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