A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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quarta-feira, 26 de março de 2014

''SORTILÉGIO''


Há um pensamento chorando dentro da noite erma.
Há um pensamento virgem, solitário,
apalpando a floresta,
roçando no rio largo,
por onde bóia, em cada estirão,
o sortilégio da mãe-d’água.

O jurutai canta para a lua cheia,
Os grilos arremedam o assobio do vento,
As nuvens sacodem chuva e tristeza
só porque eu quero luar nos meus pés.

E vem lá de dentro da mata,
lá de onde eu não sei como está,
a voz rouca do silêncio amazônico
consolando as umbaubeiras perdidas
que a trovoada vergou.

Há um pensamento chorando dentro da noite esquecida…
Descendo pela correnteza,

pedindo a mão das estrelas…
Há um pensamento com sono e sem poder dormir…
Marinheiro, vê se tu podes compreender
esse pensamento de mulher.

Adalcinda Camarão
Poesia do Grão-Pará, 2001(Seleção e notas Olga Savary)

[Arte: Pássaro, Jurutai ou Urutao, pássaro muito raro, ave noturna de canto melancólico.]

terça-feira, 25 de março de 2014

''Nudez Dos Dias''



São palavras leves
Sem peso que saem d´alma
Na nudez de meus dias
Esvaziando meu Eu.

Não sentes os apelos
Meus olhares de puro zelo
Brilhando iluminando
Teus olhos de melancolia.

Sentes apenas o cheiro
Da mata de cada dia
Ilusões perdidas sim
Horas de mergulho e de vias.

Vany Campos

''Outono''


O relógio destila as horas
O tempo célere vai embora
Escondemos nossos medos
Escondidos nos sigilos
Imaginando que ninguém os sabe

Depois como âncoras
Poderemos sentar no mirante
Sentir o amanhecer
As miríades de estrelas
Em noites-dias sem extremos.

No sorriso da paz e do amor
Vencemos as tribulações
As curvas das searas que se põem
Recolhidas nos domingos
De prados verdejantes do outono.

Vany Campos
23-5-2013

''Estado d'Alma''



São minhas ternuras meus encantos
Eu feliz entre elas nesta hora
De loucura que cristaliza
Enlaço-me em moções
Nesta sala de irradiações
No som dos relógios no ar
Desde o canto dos rouxinóis
No anúncio da hora do amor
Deixa-me um pouco sem jeito.

Se durmo não sonho
A alma voa à cata de magia
No desespero dos olhares o meu
No esplendor da luz
Busca o teu na sombra
Que refletem-se e desfolham
Este coração de meu ainda
Corpo que anda pelas ondas
Na procura do que não encontrei.

Iara Pacini
03/06/2011


[Arte: Dorina Costras]

O mundo lá fora...



Resguardei meus sonhos em trincheiras
Como se alí estivessem em segurança.
Não imaginei suas pretensões aventureiras
Desejo e liberdade em íntima aliança.

Pelas frestas agitam-se, pássaros frementes
Ante o mundo que proclama interação.
Encho o peito e num suspiro condescendente
Abro a guarda e solto-os sem direção.

Helena Frontini

[Arte:Andrew Ferez]
 
o percurso
põe-me
na permanência
de colher solidão:
inconformidades

é um espaço opaco
embalsamado pelas perspectivas
indecifradas

o ato de tecer as horas
não permanece
no meu jeito de fazer silêncios

enclausurado busco
o modo de retecer
o passado longínquo

sou evidências
e nada além de travessia.

Airton Souza
Marabá - Pará

Últimos dias de fevereiro

[Arte: Helena Nelson Reed]

''Seivas da alvorada''


Tenho uma rosa suspensa na memória
É uma flor de amor
Onde um rio escorrendo molha a sombra
O tempo deitou raízes na água
Meus olhos assistem comovidos
Meu canto se afoga em borboletas
De que plaga se alça uma flor liberta
Na larguesa de vôos incontidos
A que espumas transidas remonta
Que céus que sonhos sempre a espera
No recesso azul de uma rosa?
Pérola de foco de meus versos
Meu coração se esconde numa sombra
Vestido de palavras
No meu corpo sensível
Pingam gotas de orvalho
Molhando a madrugada
Alimento-me com as seivas da alvorada
Ébrias de estradas.

Vany Campos

'VARIANTES'




As palavras da noite
Fazem esta noite fria
Na tristeza do silêncio
Da minha alma vazia.
Abro as portas do passado
Para ouvir a voz do tempo
Na música do vento
Canções ainda acordadas.
No umbral de meu templo
Quase me perco de mim
Ou qualquer coisa assim
Que em silêncio contemplo.


Vany Campos

''Coroa de Rosas''


Coroem-me de rosas
Entre folhas breves
Que se desfolhem
E desapareçam
Antes que eu veja
Sua peleja pela vida
Ao anoitecer
Molhadas de estrelas
Que descem do céu
Para entretê-las
Não quero um lírio
Agonizando de frio
Prefiro rosas que perfumem
Meu jardim,
Rosas de folhas breves
Que se desfolhem diante de mim
E exalem seu perfume
Mesmo entre jasmins.

Vany Campos.
19/08/2008

[Arte: Pierre-Auguste Renoir]

domingo, 16 de março de 2014

'PASSO A PASSO'




Os passos são andaimes interiores
Com que construo a habitação da espera.
Chovem horas em volta até que um dia
Alguém descobre infiltrações no tempo.

Tudo está só. Tudo são passos sós;
Eles que vivem soterrando as asas.
Por isso os dias doem por entre as rosas
Que afasto em busca de uma dor sem flores.

Depois (pobre depois – nome de um nome;
Coisa que é coisa porque as coisas partem
Envelhecendo a infância do futuro)...

Os passos são fraturas no meu voo;
Oprimidos retalhos do infinito;
Portos viajando no porão de um barco.

Homero Frei
In “Sonetos Brancos” (1998)

[Arte: Leszek Sokól]


quinta-feira, 13 de março de 2014

''Canção''


Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
- e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo, de se acabar.

Não quero amor, não quero amar…
Não quero nenhuma promessa
nem mesmo para ser cumprida.
Não quero a esperança partida,
nem nada de quanto regressa.
Quero um dia para chorar.

Quero um dia para chorar.
Dia de desprender-me dessa
aventura mal entendida.
sobre os espelhos sem saída
em que jaz minha face impressa.
Chorar sem protesto. Chorar.

Cecília Meireles
de Retrato natural.

[Arte:Ann Marie Bone]

''LEVEZA''


Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.

E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.

E o desejo rápido
desse antigo instante,
mais leve.

E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

Cecília Meireles.
de Metal Rosicler

[Arte: Marie Gauthonnet ]

''VARAL DAS ILUSÕES''


Penduramos nossos sonhos
No varal das ilusões em vão
Quando nossos corações
Choram baixinho em canção.

Pensamos em não desistir
Tentar melhorar nos calarmos
Recolher com carinho os afetos
Para revivermos a maior emoção.

Queremos por vezes uma mágica
Uma nova alma e realização
Porque sabemos os sonhos serão
O caminho do não morrer.

E aí no varal colocaremos
Quem sabe um espírito novo
A resplandecência desaparecida
Apenas um amor renascido.

Vany Campos.

'Eu queria chorar pelos que não choram'



Eu queria chorar pelos que não choram. 
 Eu queria chorar pelos olhos secos,
Pelos olhos que são fontes
Onde as mágoas se purificam e se libertam.

Eu queria chorar pelos corações feridos
E que sangram obscura e silenciosamente.
Eu queria chorar pelas almas mártires
Que estão invisivelmente entre nós.

Eu queria chorar pelos indiferentes
E pelos que escondem num sorriso
As decepções de uma incompreendida bondade.

Eu queria chorar pelas almas fechadas,
Pelas almas que são como os desertos
E que não conhecem a libertação das lágrimas!

.
Augusto Frederico Schmidt

quarta-feira, 5 de março de 2014

'ROTAÇÃO'


Roda mundo, roda vida, roda vento.
Passa tudo, passa tanto, passa tempo.
Rodopiam as cores
na eterna reticência do momento.
Entre uma volta e outra do destino,
continuo apenas um menino
a soprar meu gira-sonho como um catavento.


Flora Figueiredo
In 'O Trem Que Traz a Noite', 2000

‘Poema’


Neste recanto, onde o sol parece brilhar,
com uma tamanha intensidade,
existem quimeras do passado,
que a cada vislumbrar de horas,
ficamos imaginando no amor
onde por instantes somos apenas amantes.

Pressinto que esse recanto está dentro de mim,
em um latejar desesperador,
se há solidão por onde caminho?
não sou capaz de discernir.
Sei que contemplo imagens que fazem de mim,
um mundo de imaginações.
Foi quem sabe o recanto que me transformou,
nesses versos desconexos,
deludido ao longo dessas horas.

Airton Souza
De Revoada Poética

’Colorida Poesia''


Nas rotas infinitas é o universo
Nas fantasias viaja o fogo sinuoso
De paixão a boemia quem sabe
Seja o secreto desejo
Nas estrelas que acendem
Tons vermelhos que habitam
Neste fascínio o clímax
O etéreo regresso neste
Coração que vive de brisas
Perfumadas e íntimas nuvens
Profunda é colorida a poesia.

Iara Pacini

‘’Caminhantes’’


Vivemos com em grandes reflexos
No movimento de ondas flutuantes
Seguindo em direção dos andamentos
Por vezes fios de grandes sentimentos.

Uma só gota de orvalho no embebeda
Um raio de sol coroa nossas frontes
Tudo o que vemos está atrás
Dos caminhantes à procura de horizontes.

Nossos olhares procuram imagens
Tem o orgulho das corolas vazias
Dos livros postos sobre a mesa
Alegria da vida que nos faz contentes.

Vany Campos

***



"A saudade não está na distância das coisas, mas numa súbita fratura de nós, num quebrar de alma em que todas as coisas se afundam."

Vergílio Ferreira.

[Arte by Catrin Welz Stein]

''XVIII''


O que bate assim
à minha janela?
Que ecos por dentro
me sopram?
É um nada,
é uma noite em símbolos
constelada.
Visto-me das carapuças
que me servem,

atento ouvidos
ao que se esquece.



Fernando Campanella
da série 'O Eu confesso'

''FANTASIAS''


Guardo em mim
uma colcha de esperas.
Um querer feito
de silêncios
alimentado de orvalhos.
Guardo nos bolsos
retalhos de manhãs
que recolho
na vã ilusão
de viver um dia.
Carrego na alma
palavras inaudíveis
que talvez
nunca sejam ditas.
Trago nas mãos
gestos tão ternos
impossíveis
de serem traduzidos.



Miriam Portela

'V'


No jardim do recolhimento
versos são também pássaros
que às vezes vêm bicar
minha solidão povoada.


Fernando Campanella
 Da série 'O Eu confesso'

***

 
"O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de quê!"

Florbela Espanca
de 'Correspondência' (1930)

[Arte by Christian Schloe]

AS TARDES SABEM


As tardes são
manhãs envelhecidas.
Como senhoras maduras
trocamos confidências.
De mãos dadas,
caminhamos.
Elas me ajudam
a carregar a solidão.
Eu as ajudo
a enfrentar o medo da morte.
As tardes sabem
da sua finitude.


Miriam Portela

domingo, 2 de março de 2014

''SONETO''


A uma réstia de sonho chamam vida.
A uma sombra maior chamam-lhe morte.
Vida e morte, não mais, pouso e suporte,
sopro de permanência e despedida.

Uma treva febril noite é chamada.
A uma luz mais febril chamam-lhe dia.
E entre elas se põe a estrela fria
que irrompe como flor da madrugada.

Paira em tudo um silêncio que anoitece,
que amanhece, e que vence todo ruído,
e como sol não visto num perdido
horizonte se esfaz e se retece.

Tudo é longe demais, por demais perto.
E a alma, que faz neste feroz deserto?

Alphonsus de Guimaraens Filho