A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

''NUM DIA EM QUE EU FICAR SOZINHA''



terei saudade
da manhã em discordância
da flor delirante
e da nudez da nuvem.

terei saudade
da claridade do outono
em esplendor que se despede.

terei saudade
da surpresa da flor singela
com passo choroso
a bater em minha alma
como pingo d’água.

terei saudade
da maciez da noite quieta e morna
com sede de lua falante.

terei saudade
de meu pensamento sonâmbulo
saudade do irreal.

Alvina Nunes Tzovenos
Palavras ao Tempo
 
Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei.

Sophia de Mello Breyner Andresen


[Fotomontagem de Regina Helena Siqueira ]

''Alegoria do crepúsculo''



Quem andará, dentro da tarde triste e fria,
perlustrando, em silêncio, as aleias de sombra,
e deixando, ao cair de um vago fim de dia,
o apressado rumor de leves pés na alfombra?...

Quem andará, dentro da tarde, triste e erma,
dentro da tarde, de olhos raros e distantes,
enchendo o parque de volúpia morna e enferma
de dedos longos e de lábios balbuciantes?...

Quem andará, dentro da tarde triste e fria,
quase roçando o espelho azul do lago raso?...
Quem andará dentro da tarde triste e fria?...

Quem andará perto do céu, nesta hora sombria,
desfolhando do azul, sobre as cinzas do ocaso,
grinaldas cor de luar, dentro da tarde fria?...

Athos Damasceno Pereira
(1902-1975)


[...]Chegou a primavera. Nas ruas úmidas da cidade rumorejavam regatos velozes entre o gelo sujo de esterco; as cores dos trajes e o som das vozes dos transeuntes distinguiam-se nitidamente. Nos jardins, atrás das sebes, as árvores inchavam de botões e mal se notava o balançar dos ramos ao sopro da brisa fresca. Por todo lado gotinhas transparentes pingavam... Pardais desajeitados piavam e adejavam com suas asinhas. Nos lados ensolarados, nas sebes, nas casas e nas árvores, tudo se movia e brilhava. Reinava a alegria e o viço tanto no céu e na terra como no coração dos homens.[...]

Liev Tolstoi

Texto extraído do livro "O Diabo e Outras Histórias", Cosac & Naify Edições — São Paulo, 2.000, pág. 29, tradução de Beatriz Morabito e Beatriz P. Ricci

''Os Justos''



 
Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra exista música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que em um café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que afaga um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra exista Stevenson.
O que prefere que os outros estejam certos.
Essas pessoas, que se desconhecem , estão salvando o mundo.

Jorge Luis Borges
(Trad. Josely Vianna Baptista)

[Photography by Eldoras on Deviantart]


(Recebido da querida amiga Vera, Facebook)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

''Fulgor de sonho''



De tudo o que já me deu
agradeço à vida o sonho
da rosa que não ganhei.

Minha mão não alcançou
a estrela que desejei
Seu fulgor o sonho inventa

invisível no meu peito.
O navio embandeirado
que espero desde criança

está custando a chegar.
Não faz mal, canta o meu sonho,
as águas que ele navega

sabem a sal de esperança.
Nada perdi...Como posso
perder o que nunca tive?

Vivo a vida do meu sonho,
meu sonho de sonho vive.

Thiago de Mello

SUBSTANTIVO INTRANSFERÍVEL*


O abandono não tem tempo
nem dono; não tem face:
não há ventania que o disfarce.

O abandono não tem o Tempo
como senhor; ignora a dor:
não diferencia alma ou cor.

O abandono não tem tempo
a perder; parece saber tudo:
o corpo que fere, o quê torna
o próximo espírito mudo!

O abandono não tem o Tempo
da Infância; cedo aprendeu dela
a exata e definitiva distância.

O abandono não tem o tempo
manifesto de forma clara: engana
sem mais saber; de ninguém tem rol
ou dó: falta-lhe um simples farol.

O abandono é substantivo, solitário,
vítima do assédio infante e vário:
só toma consciência do outro,
quando sob a terra já o tem morto!

*Jairo De Britto,
em “Dunas de Marfim”

''ÚLTIMA CARTA''


Te ofereço Abril -

Abril subindo as escadas noturnas
onde o silêncio acumulou as heras do longínquo
Abril fitando um céu fluorescente
debruçado em sacadas e colunas.

Te ofereço a minha paz -

Este modo tranquilo de ser
como um pôr-do-sol na minha terra.

Te ofereço a gratuidade do crepúsculo,
a tradição dos relógios antigos
a doce alegoria dos cartões-postais.

Te ofereço esta árvore, tão provinciana,
que ainda sabe amadurar seus frutos
entre sombras e pássaros.

Tudo o que a tua infância não provou
e que a tarde como um canto rememora.

Mas não aceites nada -
que isso são coisas tristes do passado
e eu prefiro o teu sorriso
em que os dias eternos se renovam.

Ivo Barroso
de  'A Caça Virtual'

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

"Melódico"


Canto aos quatro cantos,
aos quatro ventos.
Desnudo as pautas do tempo
em claves, bemóis e sustenidos.
Hei de fazer chegar aos seus ouvidos
uma rima de amor em tom maior.
Quando o mundo cantá-la já de cor,
eu trago a flauta
que põe ternura nessa nota que ainda falta
pra perpetuar o nosso amor na partitura.

Flora Figueiredo
In Chão de Vento

[Tela de Angel Ortiz ]

''Explicação da Eternidade''


devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.


José Luiz Peixoto
"A Casa, A Escuridão"

'PENSAMOS EM NADA'


Pensamos tanto em nada. Despenteados,
caçamos fantasmas de elefantes
na casa desarrumada, de estores fechados,
milionários esbanjadores de instantes,
piratas de tesouros enterrados, ilhas distantes,
sorte parada. Pensamos demasiado em nada.

Cobertos por farrapos de tempo,
arame farpado de tempo, cheiro a terra
molhada, um momento, outro momento,
a memória inteira emparedada, e nós,
sem desculpas, astronautas, centauros,
entre o sexo e o medo, presos na piscina
vazia e abandonada, no centro de tudo,
pensamos apenas em nada.


José Luis Peixoto
Caminhamos à tarde na encosta de um monte,
em silêncio. Na sombra do lento crepúsculo
o meu primo é um gigante vestido de branco,
que se move tranquilo, queimado no rosto,
taciturno. Calar é a virtude da gente.
Algum velho ancestral se sentiu com certeza bem só
-ave rara entre tolos ou pobre maluco-
para ensinar aos seus tanto silêncio.

Cesare Pavese
eexcerto do livro 'Trabalhar cansa'

''Tarde''


 Esta é uma tarde completa:
mil cacos de solidão.
Eu conto
eu comparo
eu formo
eu junto.
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento fixar este instante,
este fragmento de tempo, dissecá-lo completamente.
Tenho os olhos bem abertos.
Sinto o áspero e louco toque
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco.

vasant abaji dahake
(índia, n. 1942)
tradução de pedro amaral
em quartzo, feldspato & mica

''BÁLSAMO SUPREMO''



Como a estrela, a correr no firmamento,
Cai da ilusão em treva convertida,
A esperança, a correr no pensamento,
Se envolve em treva e cai desiludida !...

Então o prazer, soprado pelo vento,
E a ventura em nevoeiro diluída,
Abandona o peito ao sofrimento,
Gravando na memória a dor sofrida.

E a alma anoitece. E quando passa o dia
Logo lhe esquece a luz de uma alegria;
Os anos passam... e não esquece a dor !...

_Mas sempre, a alma, à desventura unida,
A dor ingênita a sofrer na vida,
Por bálsamo supremo __ tem o Amor !

Maria Isabel da Câmara Quental
De ''Sonetos e outros poemas''

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

'A BELEZA'


Neste crisol do coração, Beleza
Que iluminas a nossa noite escura,
És a Bondade — que se fez Grandeza
E a Dor sofrida — que se fez Doçura.

És a muda expressão da Natureza;
Beijo no amor, sorriso na candura,
Prece na morte, pranto na tristeza
E, para os poetas, mística tortura.

Ninfeia azul no pântano estagnado,
Flores brotando na aridez das lousas,
Ou mistério no páramo estrelado,

Em tudo o que nos cerca, tu repousas,
Porque a Beleza é Deus manifestado,
A nos sorrir pela expressão das cousas.

[Afonso Schmidt]


(Paiting by OTTO SCHOLDERER)
 
Se sou alegre ou sou triste?…
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?
Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sou o que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sente o que Deus fadou.
Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim…
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim…
Mas a alegria é assim…

Fernando Pessoa

[Tela de Wladyslaw Theodor Benda}