sexta-feira, 27 de março de 2015
ENTRE O PÁSSARO E O AZUL
Verde, vermelho, azul e novamente
verde. A cor é um murmúrio da paisagem.
Na forma mais sutil de cada imagem
a terra é sempre a mesma e diferente.
Entre o pássaro e o azul a circunstância
é o rumor de asas. Entre folha e vento
a nuance é o voo. Entre o céu e o mar intenso
o mar é apenas líquida distância.
Em som e cor o mundo nos penetra
e sendo humano é um só. Para que habite
em tudo a voz profunda que interpreta
surge a palavra em densas sutilezas
composta a desdobrada sem limites
como se inventa em si a natureza.
Lupe Cotrim
in Encontro
é o rumor de asas. Entre folha e vento
a nuance é o voo. Entre o céu e o mar intenso
o mar é apenas líquida distância.
Em som e cor o mundo nos penetra
e sendo humano é um só. Para que habite
em tudo a voz profunda que interpreta
surge a palavra em densas sutilezas
composta a desdobrada sem limites
como se inventa em si a natureza.
Lupe Cotrim
in Encontro
TEMPO DE AMOR
A chuva de outono molha
o peso de minha altura
e tal rosa que desfolha
tenho pétalas na figura.
Por entre árvore e deserto
eu danço minha existência
de tudo longe e tão perto,
numa presença de ausência.
Irei por tudo que for;
Nessa posse do universo
carrego um tempo de amor
pelas tardes do meu verso.
Lupe Cotrim
in Encontro
eu danço minha existência
de tudo longe e tão perto,
numa presença de ausência.
Irei por tudo que for;
Nessa posse do universo
carrego um tempo de amor
pelas tardes do meu verso.
Lupe Cotrim
in Encontro
Qualificação
Não venham com razões
e palavras estreitas.
O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.
E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.
O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.
Carlos Nejar
“Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.”
Clarice Lispector
[Clarice escreveu o seu último bilhete no leito no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, no dia 7 de Dezembro de 1977.]
A SOLIDÃO E SUA PORTA
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).
Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.
Carlos Pena Filho
In 'Livro Geral'
abstração*
minhas léguas de sonho são medidas
sem precisar do espaço do universo.
são imensas distâncias percorridas
no curto itinerário do meu verso.
minhas horas por milhas estendidas
são séculos sem data em que ando imerso
pois não as conta o tempo atroz e adverso
que faz a sucessão das outras vidas.
espaço e tempo, deles já liberto,
ageométricas órbitas percorro
do meu destino estando longe e perto.
livre de mim, de nada me socorro,
o povoado do mundo é meu deserto
e isso não me faz crer se vivo ou morro.
Paulo Fénder
In: Bengala Branca
deus*
deus: grandeza infinita ! paz fecunda
que frutifica o bem no amor que enflora !
deus-milênio ! deus-século ! deus-hora !
deus: tempo e espaço. luz que nos circunda.
é em vão que a inteligência se aprofunda
em desvendá-lo pelos céus afora.
sente-se deus num êxtase que inunda
a alma na própria fé que a revigora.
não procuremos deus no raciocínio.
o segredo talvez do seu fascínio
é que ele paira acima da razão.
prossiga o homem na faina das jornadas !
-deus é um desdobramento de alvoradas
pela estrada sem fim da perfeição !
Paulo Fénder
In: Bengala Branca
em desvendá-lo pelos céus afora.
sente-se deus num êxtase que inunda
a alma na própria fé que a revigora.
não procuremos deus no raciocínio.
o segredo talvez do seu fascínio
é que ele paira acima da razão.
prossiga o homem na faina das jornadas !
-deus é um desdobramento de alvoradas
pela estrada sem fim da perfeição !
Paulo Fénder
In: Bengala Branca
O vôo
Goza a euforia do voo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas tempo e vento
desabam no abismo.
Que sabes tu do fim ?
Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas.
Conserva a ilusão de que teu voo te leva sempre para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão
se pressentires amanhã estarás mudo
esgota, como um pássaro, as canções que tem na garganta.
Canta. Canta para conversar uma ilusão de festa e de vitória.
Talvez as canções adormeçam as feras
que esperam devorar o pássaro.
Desde que nasceste não és mais que num voo no tempo.
Rumo do céu ?
Que importa a rota.
Voa e canta enquanto resistirem as asas.
Menotti Del Picchia
INQUIETUDE
Ouço-te silêncio.
Diz-me o que sinto
O que anseio
O que me sufoca!
Esta inquietude permanente
Sem razão aparente de ser
O vazio profundo
Do querer e não querer.
Estou aqui
Vou, não sei onde
De onde venho, não recordo!
Nas horas aladas do desencontro
Fecho as pálpebras da vida
Perfumo de tomilho a alma
E parto, nas pétalas dos lírios brancos.
Cecília Vilas Boas
de 'O eco do Silencio"
CESTA DE PÁSSAROS
A manhã é uma cesta trançada
com fios de luz.
Nota por nota,
o canto dos pássaros
constrói a cidade sonhada.
Caminharemos todos,
como se pisássemos
em uma sonata azul,
e nossas mãos inventarão
novos gestos, novos mapas
onde o amor será sempre possível.
Nenhum homem matará outro homem.
Então a terra sairá
de sua órbita bem comportada
e, livres da força da gravidade,
seremos ao mesmo tempo
gente e pássaro.
Roseana Murray
segunda-feira, 2 de março de 2015
Poema de Domingo
Aos domingos as ruas estão desertas
e parecem mais largas.
Ausentaram-se os homens à procura
de outros novos cansaços que os descansem.
Seu livre arbítrio alegremente os força
a fazerem o mesmo que fizeram
os outros que foram fazer o que eles fazem.
E assim as ruas ficaram mais largas,
o ar mais limpo, o sol mais descoberto.
Ficaram os bêbados com mais espaço para trocarem as pernas
e espetarem o ventre e alargarem os braços
no amplexo de amor que só eles conhecem.
O olhar aberto às largas perspectivas
difunde-se e trespassa
os sucessivos, transparentes planos.
Um cão vadio sem pressas e sem medos
fareja o contentor tombado no passeio.
É domingo.
E aos domingos as árvores crescem na cidade,
e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se a cantar empoleirados nelas.
Tudo volta ao princípio.
E ao princípio o lixo do contentor cheira ao estrume das vacas
e o asfalto da rua corre sem sobressaltos por entre as pedras
levando consigo a imagem das flores amarelas do tojo,
enquanto o transeunte,
no deslumbramento do encontro inesperado,
eleva a mão e acena
para o passeio fronteiro onde não vai ninguém.
Antônio Gedeão,
de "Novos poemas póstumos", (Sá da Costa Ed., 1990),
O Lago
Um pouco d’água só, e, ao fundo, areia ou lama.
Um pouco d’água em que, no entanto, se retrata
O pássaro que o voo aos ares arrebata,
E o rubro e infindo céu do crepúsculo em chama.
Água que se transmuta em reluzente prata,
Quando, do bosque em flor, que as brisas embalsama,
A lua, como uma áurea e finíssima trama,
Pelos ombros da Noite a sua luz desata.
Poeta, como esse lago adormecido e mudo,
Onde não há, sequer, um frêmito de vida,
Onde tudo é ilusório e passageiro é tudo,
Existem, sobre um fundo, ou de lama ou de areia,
Almas em que tu vês apenas refletida
A tua alma, onde o sonho astros de oiro semeia.
Júlia Cortines
de Vibrações- 1905
O Coração
Que importa? Dês que em mim, ao golpe inopinado,
Como um leito de rio às súbitas cavado,
O sulco largo e fundo a desventura abriu,
Onde o rio do pranto, em torrentes, fluiu,
Uma treva mais densa ainda do que a treva
Que, em paredes de bronze, a escura noite eleva,
Sobre mim se fechou como um sepulcro, e a não
Iluminou sequer instantâneo clarão.
Júlia Cortines
de Versos - 1894 -
de Versos - 1894 -
Terra Ideal
Como um pássaro, abrir na amplidão do horizonte
As asas eu quisera, e a uma terra voar
Que existe para além do píncaro do monte
E para além da toalha infinita do mar.
Terra onde o pálio azul das auroras se estende,
Sem nuvens, tinto de oiro o límpido fulgor,
Por sobre um solo verde e viçoso em que esplende
A água viva, a cantar entre margens em flor;
Onde os nimbos jamais, fustigados do açoite
Dos ventos, pelos céus rolam em turbilhões,
E onde o amplo manto arrasta a tenebrosa noite
De planetas broslado e de constelações;
E que do liminar de minha adolescência,
Entre sombras, a furto e a distância, entrevi,
E que em pleno verão e em plena florescência
Da raia do horizonte ainda me sorri...
E para onde eu estendo avidamente os braços,
E para onde se lança, atraído, o meu ser,
Vendo-a sempre, através de infinitos espaços,
De meus braços fugir, de minha alma correr...
Júlia Cortines
de Vibrações - 1905-
DURAÇÃO
Toda vida é breve
por mais que ela dure
entre a areia e o vento.
Todo amor é leve
mais leve que a neve
que cai sobre a relva.
Toda vida é treva
por mais que a ilumine
a luz de cem velas.
Todo fruto é amargo:
morde-o a morte com
seu único dente.
Toda eternidade
não dura um minuto
na manhã serena.
Lêdo Ivo
De Curral de Peixe (1991-1995)
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