 Sim, Outras são as manhãs Após as chuvas Em doces gotas de amêndoas E emblemáticos suores de uvas.... Manhãs em hortas regadas, Frescor de sumos, feiras livres -‘Salsa, sálvia, rosmaninho, tomilho’ - Respingos de amor em refrões medievais... Sedosas manhãs molhadas, especiarias mais raras, Cravos da Índia, orquídeas do Nepal... Poção mágica, ervas medicinais.... Cromáticas manhãs lavadas: Verde- ingás, vermelho-pintangas E tantas mais cores que bailam No pomar de líquidas miçangas... Límpidas crisálidas, abelhas em trânsito, Lavandas.... Pássaros cantantes... E ainda turíbulos, aromas de incenso, Antigas lágrimas de santas semanas Nos missais.... Bendito, o fruto de vosso ventre, Manhãs transfiguradas, A germinar, a se abrir No úmido jardim das palavras. (Fernando Campanella, 17.09.2008)
 Se cai a noite plácida, serena, Tão branca de luar — doce magia... A carícia da brisa torna a cena, Num requinte envolvente de poesia. O azul do céu de uma beleza extrema Povoado de estrelas irradia, E qual o encantamento de um poema Faz palpitar sutil melancolia. No Coração da mata um mocho pia Rompendo a solidão num tom dolente, Como um canto de amarga soledade. E o coração da gente silencia Porque mais alto que sua voz ardente Fala a voz merencória da saudade. Bernardina Vilar
 Esperança ... Depois, um peito que suspira, Um grito, o desengano e o silêncio polar ... Subir, para abater de mentira em mentira, De terror em terror, de pesar em pesar! Lá foge a última nau sobre o mar de saphira ... Vasqueja, na expressão de um desvairado olhar, Uma visão de amor: mas o tempo lhe atira A derradeira pá de cal que a vai cegar. Hesita o coração, na extrema escaramuça; Vem, não se sabe de onde, uma surdina de ais; Sobre a orla do passado a alma, então, se debruça. E, no estranho pavor dos destroços finais, Somem-se as ilusões, a saudade soluça E a voz da Eternidade exclama: - nunca mais ! ... Heitor Lima in 'Primeiros Poemas'
O silêncio das coisa me comove; Sinto-o, principalmente quando chove, Que sonolência enerva as almas... Que apatia... Que saudade da vida e da alegria! Que saudade de tudo que ama e existe! Como me encanta a natureza triste! Olho através dos vidros da janela: A paisagem desfaz-se em folhas amarelas... Ver árvores é um grande lenitivo Para a estesia de um contemplativo. Ver árvores é ouvir sentidas trovas, Vossas cantigas, raparigas novas! Que lindo o verde, em nuances meio incertas, Margeando, lado a lado, as estradas desertas! As árvores dos parques e das praças Bebem silêncio pelas folhas que são taças... Só parece que a sombra em redor se avoluma E cresce e desenrola o amplo manto de bruma. É tudo calma. Em torno à minha casa Não se escuta sequer um ruflo de asas. Semente a água que vem da montanha, sonora, Canta tão triste que não canta, chora. E some-se, rezando a estranha reza Da livre religião da natureza, Ave, sombra! Eu venero a tua imagem E amo o silêncio verde da paisagem!...
Olegário Marianno
Toda uma vida de poesia
(1912)
 A última brasa ardeu na cinza adusta: Tudo passou, tudo se fez em poeira... E na minha alma, que o abandono assusta, Morre a luz da esperança derradeira. O amor mais casto, a aspiração mais justa Têm a desilusão para fronteira... Um momento de sonho às vezes custa O sacrifício da existência inteira! Chama efêmera, o amor! Baldado surto, A glória! Ah! coração mesquinho e raso... Ah! pensamento presumido e curto... E o amor, que arrasta, e a glória, que fascina, — Tudo se perderá no mesmo ocaso E se confundirá na mesma ruína. Heitor Lima in "Primeiros Poemas", s/ editora, 1915, RJ
 A noite vem descendo ... É a sombra de um mistério que estende as asas no infinito do ar. Na fímbria do horizonte, qual branco lírio do jardim sidéreo aparece o Luar. Silêncio. A voz do sino perdeu-se na amplidão. A sensitiva reza, reza baixinho para não despertar a patativa que, entre as folhas do arbusto pequenino, em doce embriaguez dorme e sonha, talvez, na volúpia do ninho. O luar solitário segue, tranqüilo, o curvo itinerário, nas célicas regiões. E eu sinto uma tristeza lancinante ouvindo, a cada instante, o adeus de nunca mais, das ilusões. Passam auras em lânguidos queixumes, doidejam pelo campo – os vaga-lumes, o bosque emudeceu. Só o rumor longínquo da cascata repercute na mata e a lua brilha no cetíneo céu. Noite! Poema de estrelas! quem me dera pelo azulado espaço, entre as visões radiosas adejar e, volvendo à remota primavera, cingi-la, num supremo e longo abraço, ao clarão do luar! Emiliana Delminda in 'Folhas Caídas'
XXIFrühling ist wiedergekommen. Die Erde ist wie ein Kind, daß Gedichte weiß, viele, o viele... Für die Beschwerde langen Lernens bekommt sie den Preis. Streng war ihr Lehrer. Wir mochten das Weiße an dem Barte des alten Manns. Nun, wie das Grüne, das Blaue heiße, dürfen wir fragen: sie kanns, sie kanns! Erde, die Frei hat, du glückliche, spiele nun mit den Kindern. Wir wollen dich fangen, fröhliche Erde. Dem Frohsten gelingts. O, was der Lehrer sie lehrte, das Viele, und was gedruckt steht in Wurzeln und langen schwierigen Stämmen: sie singts, singts! Rainer Maria Rilke SpringSpring is again returned. The Earth is like a child, that knows poems, many, o many . . . . For the rigor of such long learning she receives the prize. Strict was her teacher. We appreciate the white in the old man's beard. Now, what to name green, or blue, we may not ask: she knows, she knows! Earth, now free, you happy one, play now with the children. We want to catch you, joyful Earth. Only the joyful are able. O, what the teacher taught her, such plenteousness, and that which is pressed in roots and long heavy trunks: she sings, she sings! by Rainer Maria Rilke no title, from Die Sonette an Orpheus 1, no. 21 XXIEis outra vez a Primavera. A Terra é um menino que sabe dizer versos; tantos, oh tantos... Por aquele esforço de longo estudo vai receber um prémio. Severo foi o mestre. Nós gostávamos da brancura da barba daquele velho. Agora podemos perguntar o nome do verde, o azul: ela sabe, ela sabe! Terra feliz, em férias, brinca agora co'as crianças. Queremos agarrar-te, Terra alegre. A mais jovial consegue-o. Oh, o muito em que o mestre as instruiu e o impresso nas raízes e nos longos troncos difíceis: ela o canta, canta! Rainer Maria Rilke de 'Sonetos a Orfeu' - tradução de Paulo Quintela)
 Saudade é a imagem das recordações... De luz acesa, crepitante chama Que aquece a alma e gera evocações E sem querer o desengano engana. Saudade é um verso feito de emoções... Acre perfume que a doçura emana Torpor que entrando em nossos corações Quanto mais embriaga, mais inflama... Doce abandono... Ausência merencória... De um passado distante a viva história Que em nós conserva uma lembrança pura. Saudade é o silvo agudo de um lamento Que escutamos no perpassar do tempo Como sendo delícia e amargura. Bernardina Vilar (1928-1997) Os poemas de Bernardina Vilar de Alencar Costa São uma colaboração de sua sobrinha Regina Helena Paiva. Deixamos aqui nossos sinceros agradecimentos.
 Saudade. Lua cheia se elevando Pelos azuis dos céus em noite mansa Prateando os espaços e espalhando Sobre a terra a luz branca da bonança. Saudade. Estrada longa procurando Achar na mata o verde da esperança. E o seresteiro ao violão cantando De um mistério insondável, uma lembrança. Saudade. O grito agudo de um lamento Que se mistura ao sibilar do vento E bate em cheio em nosso coração... ... A sublime visão de quem amamos Que fugindo de nós nunca alcançamos Mesmo retida na recordação. Bernardina Vilar
 Saudade é o cantar apaixonado De um sabiá em tarde branda e linda; É o espelho indelével do passado Com a imagem de alguém que se ama ainda. Saudade é um riso triste, amargurado, Disfarçando uma dor cruel, infinda... Bater de um coração descompassado Na avidez de esperar provável vinda. É a noite mal dormida, o olhar sofrido; Dentro de nós o peito dolorido Prestes a explodir de ansiedade... É a lágrima discreta, comovente, Rolando pela face, lentamente Acolhendo terrível realidade. Bernardina Vilar (Ceará-1928-1997)
 Hora crepuscular. Soluça a voz dolente das ondas, no sereno e doce marulhar: Um fluído de tristeza infiltra-se no ambiente, sombrio véu confunde a transparência do ar. Longe do mundo vão e ao mundo, indiferente, fito os olhos no abismo insondável do mar e, enquanto o vento agita a espuma alvinitente, minh’alma ascende à esfera estranha e singular ... Desce a noite. Através das sombras, surge a lua. Lá longe, no alto mar, um barquinho flutua e o barqueiro, saudoso, entoa uma canção. Emiliana Delminda in 'Folhas Caídas'
 É lindo ver as açucenas. Sorriem... Embora solitárias em seus bulbos. (Sirlei L. Passolongo)
 Gosto da chuva no telhado... As goteiras me fazem pensar nos pontos finais que deixei de colocar na minha história. Gosto da chuva no molhado... Os canteiros me dão lembrar dos jardineiros que ficaram com sementes na memória. Gosto de causas sem efeito... De maus sonhos sem motivo de morrer sem ser preciso por ter fama sem proveito. Gosto das coisas como são... Da vida como um desterro da sombra indo ao enterro da sombra morta no chão... Afonso Estebanez
 O céu desperta triste, em tom cinzento, qual lhe fora penoso um novo dia; aos poucos, verte, em gotas, seu lamento... Um pranto ensimesmado, de agonia. Um rouco trovejar, pesado, lento, parece suplicar por alforria, num rogo já exangue, sem alento... A chuva... O cinza... A dor... A nostalgia... O céu despertou triste... O céu sou eu, perdida num sonhar que feneceu, sou prisioneira à espera de mercê. Sonhando conquistar a liberdade desta prisão, que existe na saudade... Saudade, tanta, tanta... De você! Patrícia Neme .
 Há os que buscam continentes, eu fico, é bem menos sólida a terra de que me sustento. (Ah, a densidade dos anjos, os imprecisos firmamentos.) Há os que apostam em veleiros e desafiam os ventos, eu passo. Eu do mar vou abrindo os búzios que a fúria cega às vezes consente. Meu lance é a configuração do silêncio. Fernando Campanella
 Bom dia, minha jaqueta surrada, Reincorporo-te como a uma identidade, a um eu imune aos ecos do mundo,a uma canção de amor tão gasta, e ainda sempre,sempre, ressuscitada. Bom dia meu ninho onde ao largo do dia me deito, resvalo dos elos concêntricos e disparo meus sonhos, em mais íntima revoada. Retomo-te, minha outra natureza, e contigo escrevo, entranho o reino dos meus velhos poetas - meus alquimistas dos sonhos – da realidade mais sutil, imaginária. Bom dia, meus sóis com chuvas, meu arco, meu ouro, meu pote de luz - claras núpcias de minhas raposas e viúvas. F.Campanella
 Por causa de uma rosa me debruço no muro do crepúsculo e entardeço como a aurora afogada num soluço da saudade sem pena onde padeço. Minha rosa é o começo do percurso ilhado na memória do que esqueço: partícula de amor onde me embuço como o pólen da luz onde anoiteço. Ò, flor mediterrânea! minha calma! escrava da esperança que suponho livre ou cativa me serena e acalma e não é pena se ao amor imponho. É cativeiro que me prende a alma, mas é destino que liberta o sonho. Afonso Estebanez (Set.16.2008)
 Ninguém se engane se soar a hora, se todos os relógios, de repente, gaguejarem nem sei que dor fremente que nunca veio e não se foi embora. Ninguém se engane se souber quem chora, que um grande choro convulsivo e quente virá das coisas como espada ardente atravessando a carne ontem, agora. Ninguém se engane se dos seus papéis, dos seus livros inertes, um lamento terrível se levante como um vento de maldição e de intenções cruéis. Tudo, a este instante, é como um grande grito quase a romper as cercas do infinito. Alphonsus de Guimaraens Filho De 'Discurso no Deserto' (1918-2008)
 Quando partimos no verdor dos anos, Da vida pela estrada florescente, As esperanças vão conosco à frente, E vão ficando atrás os desenganos. Rindo e cantando, célebres, ufanos, Vamos marchando descuidosamente; Eis que chega a velhice, de repente, Desfazendo ilusões, matando enganos. Então, nós enxergamos claramente Como a existência é rápida e falaz, E vemos que sucede, exatamente, O contrário dos tempos de rapaz: – Os desenganos vão conosco à frente, E as esperanças vão ficando atrás. Pe Antônio Thomaz
 Ouço-as gemer em convulsões estranhas As árvores senis; choram os ventos, Corre o pranto dos rios alvacentos Pelas rugosas faces das montanhas. O mar, fervendo em mal contidas sanhas, Povoa o ar de queixas e lamentos; Pelos vulcões, em vômitos sangrentos, Expele a terra as cálidas entranhas. No ocaso expira o sol todos os dias, E se veste de luto pelo morto O lago, o bosque, o vale, as serranias. E à noite vem, com toda a mágoa sua, Sobre as mágoas da terra sem conforto, Velar, chorando, a compassiva lua. Pe Antônio Thomaz in 'Sonetos' (1868-1941)
 Branco luar de Abril, falena aurifulgente que espalmas no infinito as asas ideais, teu lívido fulgor revive-me na mente, o tempo que passou e que não volta mais ... Cismando à tua luz, calma e serenamente, um dia longe ouvi sonoros madrigais ... Então, eram minh’alma um lago transparente refletindo o esplendor das plagas siderais. Crisântemo do azul, inspiração do poeta, contemplando-te assim, dentro da noite quieta, o mago rouxinol do Sonho ouvi cantar: De um momento feliz a gente não se esquece, branco luar de Abril, a alma não envelhece e dentro de minh’alma esplende outro luar. Emiliana Delminda in ‘Folhas Caídas’ (1865-1963)
 O que torna mais triste o céu sangrento ao pôr-do-sol, são as partidas, são os adeuses dos pássaros ao vento, numa incerta e fugaz palpitação. Ah! Quantas vezes, no apressado ou lento voejar de aves que vêm e aves que vão, tocam-se duas asas um momento e afastam-se em contrária direção . . . Também os nossos corações, um dia, se encontraram: no ocaso rubro ardia o incêndio dos amores imortais. E - asas, na tela acesa do sol poente - um no outro eles roçaram levemente, para não se encontrarem nunca mais! Heitor Lima, São Paulo de Muriaé,Estado de Minas. (1887-1945 )
 É preciso, pelo menos uma vez na vida, ser o último a deixar a festa... Dispensar os convidados antes de chegar a aurora. Exorcizar os aposentos com galhinhos de arruda. Desligar o som, fechar janelas e cortinas, desenlaçar os reposteiros, varrer da memória a algazarra das crianças na calçada... Dissipar o perfume das adolescentes. Dispensar as frivolidades dos últimos abraços. Recolocar no jarro aquela rosa que esqueceram sobre a mesa. E, finalmente, quando a noite trouxer de volta o silêncio numeroso, apagar definitivamente a luz... Depois dormir... Sonhar... Despertar... Viver... Viver... Depois dormir... E morrer... Como quem morre definitivamente... Para não incomodar ninguém... A. Estebanez
 Meus dias têm o hábito de caminhar pela alameda sem dar conta de mim. Um hábito que as tardes me ensinaram generosamente. Os bolsos cheios de nada e as mãos vazias de tudo... De volta, o portão de casa entreabre os braços secos e me convida para entrar... E vem aquela sensação de que esqueci de me lembrar do que o dia indiferente não contou... Retorno em busca da lembrança do sorriso de amizade, do cântico de um pássaro, de um beijo que me deu a brisa... E só então percebo que minhas mãos vadias – não sabendo uma o que a outra anda fazendo – já me haviam tocado o coração secretamente com o encanto que as idas e vindas pela vida acabavam de me dar... Entro afinal, e num cantinho da memória um sorriso de criança acende a luz da minha alma... Como se alguma flor esquecida estivesse me estendendo a mão... ... a mão do aroma de rosas que ainda me acompanha... A. Estebanez
 Faz de conta que é setembro que setembro sempre espera pelo amor de que me lembro se em setembro é primavera. Faz de conta que é alvorada com auroras sempre abertas e que a minha alma fechada transponha a aurora deserta. Se meu deserto é sem água sou meu setembro sem flor. Flor que rego com a lágrima dos meus espinhos de amor. Só faz de conta que lembro que teu coração me espera regressar como o setembro para a tua primavera... Afonso Estebanez
 O SOFT embalmer of the still midnight, Shutting, with careful fingers and benign, Our gloom-pleas'd eyes, embower'd from the light, Enshaded in forgetfulness divine: O soothest Sleep! if so it please thee, close In midst of this thine hymn my willing eyes, Or wait the "Amen," ere thy poppy throws Around my bed its lulling charities. Then save me, or the passed day will shine Upon my pillow, breeding many woes,-- Save me from curious Conscience, that still lords Its strength for darkness, burrowing like a mole; Turn the key deftly in the oiled wards, And seal the hushed Casket of my Soul. John Keats
É na anunciação de galos-anjos da madrugada Que a terra acolhe teu nome E as flores te comunicam em perfume Despertando o sono dos séculos. É em intuições de estrelas mais raras Que os humanos te firmam E se afastam da prepotência dos cetros. Flor do sopro divino, natureza dos milagres, Amor, és arquétipo de luz A desfazer do lodo bruto o desencanto. Bendita a alquimia dos que lustram minérios cansados E à força de vida te fazem despontar e crescer. (F. Campanella)
 Julho é uma paineira que se esvai. Meu coração tem tempos assim ora em flor ora a se dissipar. Fluida é a paina que envolve meus sonhos - sementes aéreas que nem os ventos sabem aonde vão dar. F.Campanella
 Abril são céus azuis em ciprestes longos, agulhados E uma brisa, um quase olfato de jardins submersos, não decodificados. Aves breves bicam leve a eternidade. F.Campanela Poema da série 'Efemérides' Tela - Van Gogh 'Seara com ciprestes’ (1889)
 Aléia de bambus, verde ogiva recortada no azul da tarde mansa, o ouro do sol treme na areia da alameda farfalham folhas, borboletas florescem. Portão de sombra em plena luz. Gemem as lisas taquaras como frautas folhudas onde o vento imita o mar. Marcel, menino mimoso, estou contigo, Proust: vejo melhor a amêndoa negra dos teus olhos. Transparência de uma longa vigília, imagino as tuas mãos como dois pássaros pousados na penumbra. Escuta - a vida avança, avança e morre... Prender a onda que franjava a areia loura de Balbec? Cetim róseo das macieiras no azul. Flora carnal das raparigas passeando à beira-mar. Bruma esfuminho Paris pela vidraça Intermitências chuva e sol ‘Le temps perdu.’ Marcel Proust, diagrama vivo sepultado na alcova. O teu quarto era maior que o mundo: Cabia nele outro mundo... Fecho o teu livro doloroso nesta calma tropical como quem fecha leve, leve, a asa de um cortinado sobre o sono de um menino... Augusto Meyer (1902/1970)
 Antes que desça a noite, Imprimir na retina Os rostos amados, O sol, As cores O céu do outono E os jardins da primavera. Inundar de sons De vozes E de música eterna Os ouvidos, Antes que os atinja A maré do silêncio. Conquistar Os pontos culminantes Da vida, Antes que se esgote O prazo de permanência Em seu território sagrado. Helena Kolody
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 Fui visitar, pela manhã, um conservatório de música da cidade. Quando adentrei seus recintos, senti, como sempre, meu espírito vagar, divagar, em eras passadas, ao som de flautas, pianos, com a música eterna , a alma ritmada dos mestres pairando nos corredores, escoando pelos beirais... Escolas de música, assim como as bibliotecas, sempre exerceram um fascínio sobre mim, lembrando-me o trabalho dos copistas que preservaram o tesouro do pensamento clássico da total destruição pelos bárbaros. Nelas também se resguarda uma tradição , uma memória cultural que acolhe as almas sensíveis, sedentas do que o espírito da arte nos legou. Quando me pesam os ruídos da modernidade, do cotidiano, ali me refugio, por uns instantes, como hoje, forjando, sempre, alguma desculpa pra mim mesmo, como visitar algum amigo que lá trabalha, ver alguma exposição de arte... mas sei que o que realmente me motiva é uma suave e mais sadia alienação.Na visita de hoje, ouvi algum aluno tocando ‘Clair de Lune’ ao piano, outro penando em uma peça de Lully, adaptada para flauta, um grupo coral ensaiando um madrigal do século XV. Diferentes estilos, um só espírito, uma só intenção: tocar, cantar, celebrar a vida, como o ofício das velhas, incorrigíveis cigarras. Visitar tais templos da música sempre me trazem essas já conhecidas surpresas, a harmonia sempre reencontrada, e isso já seria suficiente para reabastecer meu dia. Mas hoje, inesperadamente, um bem-te-vi pousou na janela do corredor da escola perto da sala de aulas de flauta doce. Permaneceu ali por alguns segundos, coçou as penas com o bico, e, de repente, fez gracioso movimento que, à minha romântica percepção, pareceu uma cena de bucólica dança. Talvez, como eu, atraído pelos ecos de longínquos pastores, viria o bichinho ali, ocasionalmente , bebericar daquelas fontes, daqueles doces sonoros festivais. Talvez, também como eu, a ave se encontrasse meio deslocada entre a profusão de fios, motores, informação. Talvez, mas não importa. As instalações do conservatório, a atmosfera do local, a convivência entre as eras musicais , a serenidade possível de minha alma, o som da flauta, e mais o bem-te-vi a ouvir, a dançar, tudo transformou-se em minha mente em uma roda holística, encantada. Síntese divina? Talvez. Natureza e arte: belos extremos que se tocam. (Fernando Campanella, 10 de setembro de 2008)
 Março abre os cômodos da casa. Chegam formigas, pulgões, macacos E nas embaúbas se instalam. Preguiças úmidas prateadas também em mim se hospedam em simbioses mais raras. (F. Campanella) Photo - Árvore Embaúba-(Cecropia sp., Cecropiaceae)
Três garças na árvore, quando passo, Três meninas... de que brincam? Que sonhos em penugens terão? Três senhorinhas no rio emplumadas Quando já volto... o que bicam? nas águas rasas O que pescarão? Quando me vou, deixo três viúvas penadas: Meus desejos, minhas três graças Que deuses agora concederão? (Fernando Campanella)
 A lua é um criptograma. Decifra-me, diz ela à minha metade analítica E trôpega. À minha outra porção, Mais precavida Ante o mistério das coisas, Ela sussurrra-me apenas: bebe de meu vinho e sonha. (F.CAMPANELLA)
 Quando as crianças brincam E eu as ouço brincar, Qualquer coisa em minha alma Começa a se alegrar. E toda aquela infância Que não tive me vem, Numa onda de alegria Que não foi de ninguém. Se quem fui é enigma, E quem serei visão, Quem sou ao menos sinta Isto no coração. Fernando Pessoa 5-9-1933 Tela de Emile Vernon (British, 1872-1919)
 Deixem minha alma florescer na lua meu remoto canteiro de esperanças ou me deixem viver num fim de rua entre rosas baldias sem lembranças. Saudade de horizontes me extenua. Procurem-me nos olhos de crianças onde o instinto dos deuses retribua o beijo dos extremos das distâncias. A calma dos jardins não faz sentido a flor calada assim não se consente e rosa num deserto é flor proscrita. Consinta o coração sonhar perdido e de perder-se meu amor aumente o tanto quanto seja a alma infinita. Afonso Estebanez (Set.09.2008)
 Faz de conta que é setembro que setembro sempre espera pelo amor de que me lembro se em setembro é primavera. Faz de conta que é alvorada com auroras sempre abertas e que a minha alma fechada transponha a aurora deserta. Se meu deserto é sem água sou meu setembro sem flor. Flor que rego com a lágrima dos meus espinhos de amor. Só faz de conta que lembro que teu coração me espera regressar como o setembro para a tua primavera... Afonso Estebanez
 Murmúrio de água na clepsidra gotejante, Lentas gotas de som no relógio da torre, Fio de areia na ampulheta vigilante, Leve sombra azulando a pedra do quadrante, Assim se escoa a hora, assim se vive e morre… Homem que fazes tu? Para quê tanta lida, Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça? Procuremos somente a Beleza, que a vida É um punhado infantil de areia ressequida, Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa… Eugénio de Castro in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim
 Not long ago, in a charming dream, I saw myself — a king with crown’s treasure; I was in love with you, it seemed, And heart was beating with a pleasure. I sang my passion’s song by your enchanting knees. Why, dreams, you didn’t prolong my happiness forever? But gods deprived me not of whole their favor: I only lost the kingdom of my dreams. Aleksandr Pushkin
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