A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

''Fui eu''


(Tela de Emile Munier)
 
Fui eu essa menina que me espia
- melancólico olhar, sereno rosto,
postura fixa e o todo bem composto -
no retrato que o tempo desafia.
Fui eu na minha infância fugidia
de prazeres ingênuos, e o desgosto
de sentir tão efêmera a alegria
bem depressa trocada em seu oposto.
Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa
e tudo altera nem sequer deixou
um grão de infância feito esmola escassa.
Fui eu: e na figura só ficou
o olhar desenganado, na fumaça
em que a criança inteira se mudou.

Fernando Py
in '70 poemas escolhidos'
 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

'O MOMENTO DIVINO'



Quando o crepúsculo caiu,
foi que notaste como as coisas todas são infinitas...

Quando o silêncio te envolveu,
foi que sentiste as pulsações mais profundas do teu ser...
ser, aquilo que está dentro da casca, na interioridade.

E então sonhaste
que o sangue te batia nas artérias
ainda sob o impulso primordial
do Instante da criação...

E que o teu peito ofegava
ainda sob cansaço
das migrações dos povos ancestrais...

E te pareceu que chegavas do fundo dos tempos
como um esclarão das gerações inumeráveis,
que viesse explorando a estrada indefinida,
e ao fim da caminhada
trouxesse ainda nos olhos
a mesma interrogação ansiada
da partida...

E te pareceu que respiravas
ao ritmo das marés montantes e vasantes
ao ritmo das montanhas,
ao ritmo do arfar da Terra toda,
quando mais pesa sobre ela, pela noite,
a mudez do infinito ardendo de astros!...

Tasso da Silveira
(MURICY, 1936, p. 167)

''DIÁLOGO''


Debruçados sobre a vida,
indagamos seus mistérios
e raramente alcançamos
suas respostas cifradas.

Ao calor do interrogar-se
nuvens ocultas esgarçam-se,
a luz em nós amanhece.
Helena Kolody 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

'FLORES'




Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura.

Sophia de Mello Breyner

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

'LEMBRA?'




Lembra o tempo
em que você sentia

e sentir
era a forma
mais sábia de saber

E você nem sabia?


Alice Ruiz

'REQUIEM'



Não escreverei sobre ausências.
Ausência é bandeira de nada.
É ter partido
em direção de um país sem lodo nem lama.
Onde a identidade se faz de afeto.
E a dúvida é poço entreaberto
e o coração um fruto de semente madura.

Ausência é só lembrar, é só lembrar!

Ausência é só lume de esquecimento.
É só limo de eternidade.
É só flor de certeza e agonia.
Só o corpo impedido, só surdo desejo,
só pele mudada em terra,
só tempo feito areia.

Ausência é só lembrar, é só lembrar!

LINDOLF BELL
In Requiem, 1994

''Hora Grave''



Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.

Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.

Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.

Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.

Rainer Maria Rilke
(Tradução: Paulo Plínio Abreu)

'Solidão'


A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios...

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

''O Último Poema''


Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação

Manuel Bandeira

sábado, 15 de setembro de 2012

'A incidência da luz '


Monótonos se tornam os gestos com que refaço,
grão a grão, o celeiro dos dias, mil vezes ardilosos,
na arca onde se guarda o pão
sem a pressa da fome em ávidas bocas.
Pela janela iluminada vê-se a jarra das mimosas
e o lenço colorido preso à haste do candeeiro.
É o instante em que as sombras dançam
em redor da noite perseguindo as mínimas variações
da luz no amarelo excessivo dos malmequeres
e nas asas das borboletas presas nas traves do tecto.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

'PRESERVAÇÃO'


Chama-se liberdade o bem que sentes,
Águia que pairas sobre as serranias;
Chamam-se tiranias
Os acenos que o mundo
Cá de baixo te faz;
Não desças do teu céu de solidão,
Pomba da verdadeira paz,
Imagem de nenhuma servidão!

Miguel Torga
In: Antologia Poética

domingo, 9 de setembro de 2012

"Olhos"

Dois pássaros voam,
de um leve azul inebriados.
De onde os vejo
Só há o espelho quieto de um lago.
E já não sei o que é mais visível
se o que enxergo, as aves,
com meus olhos,
ou se aquelas flautas moventes
sincronizadas,
que sonho
com os olhos quietos do lago.

Fernando Campanella

' As Coisas Transitórias'


Irmão,nada é eterno, nada sobrevive.
Recorda isto, e alegra-te.

A nossa vida
não é só a carga dos anos.
A nossa vereda
não é só o caminho interminável.
Nenhum poeta tem o dever
de cantar a antiga canção.
A flor murcha e morre;
mas aquele que a leva
não deve chorá-la sempre...
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Chegará um silêncio absoluto,
e, então, a música será perfeita.
A vida inclinar-se-á ao poente
para afogar-se em sombras doiradas.
O amor há-de ser chamado do seu jogo
para beber o sofrimento
e subir ao céu das lágrimas ...
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Apanhemos, no ar, as nossas flores,
não no-las arrebate o vento que passa.
Arde-nos o sangue e brilham nossos olhos
roubando beijos que murchariam
se os esquecêssemos.

É ânsia a nossa vida
e força o nosso desejo,
porque o tempo toca a finados.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Não podemos, num momento, abraçar as coisas,
parti-las e atirá-las ao chão.
Passam rápidas as horas,
com os sonhos debaixo do manto.
A vida, infindável para o trabalho
e para o fastio,
dá-nos apenas um dia para o amor.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Sabe-nos bem a beleza
porque a sua dança volúvel
é o ritmo das nossas vidas.
Gostamos da sabedoria
porque não temos sempre de a acabar.
No eterno tudo está feito e concluído,
mas as flores da ilusão terrena
são eternamente frescas,
por causa da morte.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

'TODA VIDA É RASCUNHO PERMANENTE '



XXIII

Toda vida é rascunho impermanente
manuscrito com tinta azul lavável.
Não divise futuros, não invente
eternidades nem se torne escrava

de horizontes perdidos e apagados.
Somos mortais, por isso celebramos
casuais centelhas de imortalidade.
Por mais que dure e se transvie em ramos,

uma árvore tem a sua hora.
Se a chuva a curva, sofre mas não chora,
senão, dizem, até se alegra e gosta

sem se dar ao trabalho de sorrir.
Deus, amor, lhe dê olhos de menina
que a paisagem de hoje descortinem.

Tite de Lemos
In: LEMOS, Tite de. Caderno de sonetos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

Biografia: Tite de Lemos

Newton Lisboa Lemos Filho (Rio de Janeiro RJ, 1942 – idem, 1989). Foi poeta, letrista., dramaturgo e jornalista.
Publicou seus primeiros livros de poesia, Marcas do Zorro e Corcovado Park, em 1979. No final dos ...
anos de 1970 produziu três peças teatrais: A Serra, A Liça e A Bola. Trabalhou como jornalista, nos anos seguintes; foi redator do jornal carioca O Globo. Em 1988 foi lançado seu livro Caderno de Sonetos e, em 1989, ocorreu a publicação póstuma de Outros Sonetos do Caderno. No ano de 1970, escreveu em parceria com Gutemberg Guarabira, Luiz Carlos Maciel, Sidney Miller, Paulo Affonso Grisolli e Marcos Flaksman, o musical “Alice no país divino-maravilhoso”, do qual participou Sulei Costa, que viria a se tornar sua parceria musical mais constante. O espetáculo estreou no Teatro Casa Grande, no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. No início da década de 1970, junto a Luís Carlos Maciel, Torquato Neto e Rogério Duarte, foi editor da revista literária Flor do Mal. A ilustração que escolhi faz referência ao campo de sua poesia que gravitava entre o clássico e o experimental.