A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.

-Rubem Alves-

Seja bem-vindo. Hoje é
Deixe seu comentário, será muito bem-vindo, os poetas agradecem.

sábado, 29 de março de 2008

“HISTÓRICO DE FAMÍLIA & BRASÃO DE ARMAS”



O sobronome X pertence a uma antiga família
De Portugal ou Espanha, ou Deus sabe lá de onde.
É classificado como de origem ‘desconhecida’.
Nomes de origem desconhecida dizem respeito
Ao local incerto de onde saiu o progenitor da família,
( uma toca, uma gleba, ou uma vila perdida )
de onde nada se sabe, nem do modus-vivendi, nem dos
Ventos que por lá sopravam. O sobrenome indica assim que
O portador original era natural daquela região remota
Onde o desconhecimento era total, e abundante.
O sobrenome tornou-se popular , espalhando-se por toda
a Península Ibérica.

Em Portugal foi encontrada
Uma das mais antigas referências a ele, é o registro
De Antonio X, assinante de um documento de vendas de
Ovelhas, na paróquia de Y. Pesquisas estão em andamento
E este nome pode ter sido documentado muito antes do acima
Mencionado. Portadores notáveis do sobrenome X foram:
Felipe X, famoso usurário, que em 1560 arruinou muitas almas
na aldeia em que vivia, levando pais de família,
Do desespero ao suicídio. Amador X, notável boêmio, citado
Em 1540. Beberrão contumaz, amante de mulheres novas,
Foi assassinado pela esposa, pobre mulher apaixonada, que
Após o crime foi de morte apedrejada, deixando nove filhos à mercê de parentes próximos ou de alguma ordem mendicante.

Delfim X, um padre inquisidor, nascido em1590, obcecado por posições e honrarias, perseguidor implacável de Judeus e Mouros, atormentado por visões de demônios e bruxas. Ana X, tida como demente, apelidada a louca do meio dia, nascida já no Brasil em 1835, católica de alto fervor, que do nada, ou do tudo reservado, escandalizou a pequena cidade em que vivia, exibindo-se nua, em pública praça, à luz do dia. Há também representantes menos destacáveis da família, mas devem ter preferido o anonimato.
As armas descritas abaixo foram concedidas à família X
Pelas autoridades apropriadas .
Brasão de armas: Fundo azul, estrela dourada, adagas de prata.
Tradução: azul denota verdade. Ouro indica nobreza. Prata
Simboliza pureza.
Timbre: uma águia de prata, simbolizando a grandeza
e o orgulho de uma raça.


(Fernando Campanella)
Posto aqui, este formidável texto de Fernando Campanella, para o deleite dos amigos do blog.

"REQUIESCAT"




De meu mar, ofereço-te as ondas
e as praias que poéticas conchas te trazem.
Tais suaves mistérios te concedo, mais as algas
e as gaivotas que bicam tecidos de luz na tarde.
Povoados de ti, de mim,
os barcos que chegam e ardem.
Adere-te, pois, ao sal que a mim te chama,
cobre teus pés em espuma e encanto,
molha teu rosto
nas claras águas que o dia me abre.

(Sosseguem , minhas dorsais,
descanse, meu leviatã escuso).


(Fernando Campanella)

"CANÇONETA"



Eu diria – são flores as pedras
em que pisam teus pés viajores...
Tuas dores – diria – são quedas.
Eu diria – nas pedras de flores.

Sobretudo no vento que passa
como brisa tu passas no tempo.
Porque voas tão cheia de graça.
Eu diria – nos braços do vento...

E diria que a estrada é tão curta,
quem sabe não seja uma estrada.
Eu diria – uma entrada noturna
do caminho de alguma alvorada...

Peregrina, são flores as pedras
na cantiga de amáveis cantores.
As veredas – diria – são breves.
E diria que as pedras são flores...

A. Estebanez
(Poema dedicado a Dione Cristina
Coppi Eller – “Vita”)

terça-feira, 25 de março de 2008

'ISENTO"




Mira-te pelo calendário da flores
Que são só viço e esquecimento.
Desprende-te dos ofícios do dia,
Apaga os números, os anos e anos,
Releva a data de teu nascimento.
E assim, por tão leve sendo,
Por tão de ti isento,
De uma quase não resistência de pluma,
Abraça o momento,
Te apruma,
Tome por bagagem os sonhos
E apanha carona no vento.

(Fernando Campanella)
(Foto by Fernando Campanella)

segunda-feira, 24 de março de 2008

"CIRCUNSPECTO"




Candeeiro à beira da estrada,
paisagens de neblinas e comas:
cheiram mimos de melissas,
dormem casas sombreadas,
pupilas noturnas voam.

Coração circunspecto de Minas,
bate em noite, bate em dia,
abre uma artéria em mim.


(Fernando Campanella)
Photography by Fernando Campanella

A VIDA, ENFIM



Se nascemos para o amor
Para a celebração não oficial da vida,
não deixe, Deus, que eu me afogue
nas emboscadas de meus dissídios.
Venha a mim, a centelha exata que irradia,
Cruza os pântanos
E ilumina os párias.
Um mundo, enfim,
sem pedigree nem castas,
sem cifras nem mágoas.


(Fernando Campanella)

domingo, 23 de março de 2008

'TEMPUS FUGIT"




O amor, se me perguntas, não sabe a papéis,
a tolas permutas...
o amor sobeja quando de ti te esqueces
quando mais pensas que te falta.
Vagamos pelas torpes vielas,
acendemos nos baixios nossas falsas luzes,
e a vida, a vida se deixarmos,
vai nos entupindo insuportável as goelas.
Mas o amor, se me permites,
o amor é quando se cala,
quando nossos egos se rendem,
e se igualam-
e olha que a vida em sua pressa - tempus fugit -
pelo amor se dissipa mais lenta, se aceita mais bela -
amor é quando se cerram os olhos
e se vêem desdobrarem os céus no detalhe.


(F. Campanella)



(...)


O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Os beijos merecidos da Verdade.


Fernando Pessoa

(Viña del Mar- Valparaíso-Chile- Photography by Desirée Schuck)


A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;

A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave:

Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida - pena caída
Da asa da ave ferida
De vale em vale impelida
A vida o vento levou!


João de Deus
1830-1896

terça-feira, 18 de março de 2008

"PÁSSAROS"



A primavera de New England
não traz seus pássaros à minha janela.
Mas por que penso naqueles cantos
Se nem os pássaros de meu velho rio
Ou de minhas conhecidas árvores
Vêm ao meu jardim cantar?
Só cantam para si próprios, creio,
o martim- pescador, a corrila ,
o joão-de-barro atribulado.
Pensando bem, nem mesmo pardais,
Nenhum pio, nenhum bemol acasalado
Conseguem meu dia despertar.
Ficam por si, longínquos, os canários
e os bem-te-vis nas cercanias .
Como é triste acordar, agora percebo,
Daquelas ternuras surdo, descantado.
Como é áspero raspar do dia o aço.
Ranger roldanas de hábitos e ossos.
Cantem para si, para Deus
ou para quem os consiga ouvir
o exótico robin , o cuco e a cotovia.
Nenhum trinado, nem mesmo um grasnar
Vem alcançar meus ouvidos ruidosos.

Ah, vejam, sou mesmo um rei nu,
Um moedor de pedras,
Sou aquele imperador da China
Que tão pobre era sem seu pássaro -
Aquele pobre mandarim ,
A solidão, meu triste rabicho,
a ausência, esta enorme vassala de mim.

(Vai, meu cortejo de trapos,
vai buscar aquele pássaro
Que aqui trinava um dia.

Meu reino por um rouxinol
Que se alijou da alma
E me desencantou a alegria.)


(FERNANDO CAMPANELLA)

domingo, 16 de março de 2008

"CRÉPUSCULE DU SOIR MYSTIQUE"



Le Souvenir avec le Crépuscule
Rougeoie et tremble à l'ardent horizon
De l'Espérance en flamme qui recule
Et s'agrandit ainsi qu'une cloison
Mystérieuse où mainte floraison
-Dahlia, lys, tulipe et renoncule-
S'élance autour d'un treillis, et circule
Parmi la maladive exhalaisons
De parfums lourds et chauds, dont le poison
-Dahlia, lys, tulipe et renoncule-
Noyant mes sens, mon âme et ma raison
Mêle, dans une immense pâmoison,
Le Souvenir avec le Crépuscule.


Paul Verlaine
"Poèmes saturniens"
*
Photo d'un dahlia rose.

"SOLEILS COUCHANTS"




Une aube affaiblie
Verse par les champs
La mélancolie
Des soleils couchants.
La mélancolie
Berce de doux chants
Mon coeur qui s'oublie
Aux soleils couchants.
Et d'étranges rêves
Comme des soleils
Couchants sur les grèves,
Fantômes vermeils,
Défilent sans trêves,
Défilent, pareils
À des grands soleils
Couchants sur les grèves.


Paul Verlaine
Poèmes saturniens

"Á NOITE SONHAMOS"




À noite, seguimos descuidados,
a vida é solta, árvores nítidas de aromas,
flores tão lágrimas de orvalho.
À noite sonhamos em um céu de metáforas
onde a meia-lua é unha que arrepia segredos,
estrelas são hangares pequeninos,
a sombra, um lobo bom que nos acolhe.
À noite, rompemos degredos,
volvemos aos ninhos,
somos meninos -
infância distraída de seus medos.

(F. Campanella)
*
Fotografia de F. Campanella

"QUE C’EST TRISTE VENISE"




Que triste, Veneza
Sem suspiros e barcarolas;
Que insípidos, os segredos
Sem botões nem corolas.
Obscura, toda canção
Sem teus ouvidos comigo
E o teu sonido de auroras.
O amor é redundante
E demanda que aos meus labirintos
Mil vezes eu propale:
Sem ti,
Sou cidade fantasma,
Bicho em maltrato -
silêncio em esporas.

(F. Campanella)
*
Fotografia- Veneza- Itália

segunda-feira, 10 de março de 2008

"EPITÁFIO..."



Guardei banais segredos dos amores de criança
dos mistérios da infância ouvi apenas por tolice
contei parábolas de amor porque o próprio amor
predisse que na vida viveria só dessa lembrança
de reviver das cinzas de uma flor do apocalipse...

E das águas correntes desse rio em minhas veias
de onde doce fluísse uma canção jamais ouvida...
Talvez de alguma fonte de desejos clandestinos
ou dos prazeres matutinos de profanas ladainhas
dos arcanjos decaídos de meus sonhos suicidas...

Apraz-me então morrer dos místicos presságios
de quem padece lentamente da secreta liturgia
de reencontrar-me pelo acaso de um momento
em que a parte encantada de mim fosse a magia
desse feitiço de poder-me amar além do tempo...

E era tudo o que a alma não defesa pretendia...
E para muito além do que muito além de mim
aonde jaz meu pássaro cantor de súbito abatido
concebido me fosse então morrer de desamor
se reviver de amor a mim não fora concebido...

A. Estebanez

Ilustração: Metáfora da água.

"Marinha"



Desce a noite enrolada em brumas hibernais...
Trágica solidão, vago instante sombrio,
Em que, tonto de medo o olhar não sabe mais
Onde começa o mar e onde acaba o navio

Nem o arfar de uma vaga : o mar parece um rio
De óleo; oxidado o céu de nuvens colossais,
Um zimbório de chumbo acaçapado e frio,
Escondendo no bojo a alma dos temporais.

Nem das águas no espelho o reflexo de um astro...
Apenas o farol, no vértice do mastro
Rubra pupila, a arder, dentro de uma garoa...

E lá vai o navio , espectral, lento e lento,
Como um negro vampiro, enorme sonolento,
Pairando sobre um caos de tênebras, à toa.


Pethion de Villar

ILUSÕES PERDIDAS



IMPROVISO

Eu sonhava ! eu sonhava ! Assim como falenas
Que o sopro da tormenta espanta em revoadas
As minhas ilusões tão puras, tão serenas.
Fugiram-me uma a uma, à toa dispersadas...

Eu sonhava ! eu sonhava ! Adeus risos doirados
Devaneios de amor, suaves pensamentos !...
Adeus ! no meu passado eu vejo-vos tombados,
Murchos como os rosais dos fortes ventos !..

Ilusões ! Ilusões ! oh ! borboletas da alma !
Voltai de novo ! Sim ! trazei-me a calma
De meus sonhos!...Tornai oh ! loucas peregrinas !...

Mas não ! É tarde ! Adeus...Na minha fonte pensa
Cai-me um crepe sombrio, essa tristeza imensa
De um amor que se esb’roa em lúgubres ruínas !


Pethion de Villar
-1891-

quinta-feira, 6 de março de 2008

“PARQUE DAS EMAS”


“Não façais mal nem à terra, nem às plantas
Nem às águas...”
Apocalipse


Acordei no meio da noite, e vi o dia.
Dia mais avesso que o miolo das trevas
Quando os inocentes da terra choravam,
As flores enrustiam o perfume
E o vinho amargava o sabor.
Os cavalos vermelhos desorientavam a paz da terra,
debandavam as rolas,
disparavam loucas as emas
Promessas de novas proles não se cumpriam
Que os ninhos eram cinzas por palhas
E os ovos um a um derretiam.
As falanges do fogo consumiam a obra,
calcinavam as ervas, não distinguiam
As montanhas do domínio das águas –
Onde era natural majestade, desintegravam,
Onde fossem líquidas relíquias, secariam.
Nunca se vira por estes ermos
dor tão intensa e democrática, castigando
Desde as ninfas, desfeitas de seus reinos,
Até os baleias, de suas águas desmembradas.
Os inocentes da terra choravam
Por impotentes e frágeis
Contra tão cruel e definitiva ceifa.
Antes fossem só delírios de profetas
O que o livro dos tempos anunciara.
Antes ficasse só em imagem
Este séqüito de criminosos da terra
A desfilar com suas com suas fardas em chamas
E suas bocas de vômito incandescente.

(O espírito do fogo consome a obra.
Sua língua profana lambe e devasta.
Seus dentes não deixarão grão sobre grão.)


(Fernando Campanella)

Ilustração:
Wassily Kandinsky. Moscow I. 1916. Oil on canvas. 51.5 x 49.5 cm. The Tretyakov Gallery, Moscow, Russia.

terça-feira, 4 de março de 2008

"ÊXUL " [OS SONETOS DO SANGUE]



Esse que sabe rir vai à festa da Vida...
— Quantos já vi passar neste longo caminho,
com os olhos postos no alto e a boca ressequida,
desejosa de sol, de pâmpanos e vinho...

Vão em busca do céu na alameda comprida
que se perde lá baixo... e eu sempre a olhar, sozinho
a audácia dos que vão para o orgulho da lida,
transpondo luar a luar, vencendo espinho a espinho...

— Caem rosas... depois... outras rosas vêm vindo...
outras rosas cairão... outras virão... e eu preso,
a ver os que lá vão pelo caminho infindo...

— Mas todos ao voltar trazem no passo triste
no lábio êxul, nas mãos senis, no olhar aceso,
a mentira imortal de tudo quanto existe...


Ronald de Carvalho

"FRUTOS DA TERRA"


Benditos os filhos do ventre da terra
Que o sol desperta tão cedo,
Que o trigo e a uva aguardam no campo
Para o mágico processo do pão e do vinho.

Benditos os frutos da terra
Que se abrem à manhã
Em silêncios e cantos
Que mesclam no ar

e os filhos da paz,
que ligam o céu ao mundo,
os que reciclam o dia
e dele retiram sustento e eternidade.

Abençoados os que bendizem,
Os que curam, e que a dor amenizam,
os que por via de tolerância
se entendem.

Benditos os que domam a cólera
E se transformam no amor,
Amor que bebe da identidade da vida.

Bendito o sol que amadurece os frutos de terra.
Mais bendita a luz
por que anseia ‘a noite escura da alma’.


(Fernando Campanella)
*
(Tela "Plantação de trigo" Guilherme Matter)

"O INFERNO DO CÉU"



Em parte somos feitos mais de sonhos
em parte mais de morte e pesadelos...
Em parte entre conselhos de serpentes
que mentem como a face dos espelhos.

Flores não sangram sob seus espinhos.
Rosas nem sabem quando vão morrer...
Calam-se os ninhos quase indiferentes
se é para sempre quando amanhecer...

Amor é dom que não celebra a morte
são flautas gêmeas da canção da vida
que suaviza como o êxtase das almas
acalma o coração que ainda agoniza...

Não há inferno onde um grão de amor
viceja em forma de uma flor qualquer...
Ah, luz do arco-íris dos portais do céu!
Oh, véu da flor de quando o amor vier!

Inferno é a dor que queima sem amor.
Amor é fogo que arde sem queimar...
Amor que amarga e dói e permanece
chama que a alma aquece sem tocar.

Malgrado tudo existe essa esperança
de que o sonho de luto dos enfermos
seja apenas lembrança desse inferno
que jaz eterno dentro de nós mesmos.


A.Estebanez

"O ELOGIO NOS REPUXOS"



Dor dos repuxos ao Sol-pôr agonizando
em plumas e marfins, em rosas de ouro e luz...
Canto da água que desce em poeira, leve e brando,
canto da água que sobe e onde o jardim transluz.

Dormem sinos na bruma -- a cinza tem afagos...
Sombras de antigas naus, velas altas a arfar,
passam em turbilhões pelo fundo dos lagos,
(a aventura, a conquista, a ânsia eterna do mar!)

Repuxos a morrer sobre si mesmos, lentos
curvos leques a abrir e a fechar num adejo,
-- mão vencida que vem de vãos incitamentos,
mão nervosa que vai mais cheia de desejo...

Volúpia de fugir -- ser longe e ser distância,
e tornar logo ao cais e de novo partir!
Volúpia -- desejar e não possuir, ser ânsia...
Repuxos a descer, repuxos a subir...

Não fixar emoções, volúpia de esquecê-las,
Andar dentro de si perdido na memória...
(Caçadores ideais de mundos e de estrelas
repuxos ao Sol-Pôr cheios de mágoa e glória...)

Dor dos repuxos ao crepúsculo cantando!
desespero, alegria -- o lábio, a mão... e um beijo.
Dor dos repuxos, dor sangrando, dor sonhando
Ir tocar a ilusão e morrer em desejo...


Ronald de Carvalho
1893-1935

"ANOITECE"


Anoitece...
Venho sofrer contigo a hora dolente que erra,
Sob a lâmpada amiga, entre um vaso com rosas,
Um festão de jasmins, e a penumbra que desce...
Hora em que há mais distância e mágoa pela terra;
Quando, sobre os chorões e as águas silenciosas,
Redonda, a lua calma e sutil, aparece...



O rumor de uma voz sobe no espaço, ecoando,
Mais um dia se foi, menos uma ilusão!
E assim corre, igualmente, a ampulheta da vida.
Senhor! depois de mim, como folhas em bando,
Num crepúsculo triste, outros homens virão
Para recomeçar a rota interrompida,
E a amargura sem fim de um mesmo sonho vão...



Nos dormentes jardins bolem asas incautas,
Sobre os campos a bruma ondeia, devagar.
Estremecem no céu estrelas sonolentas
E os rebanhos, que vão na neblina lunar,
Agitam molemente, ao longe, as curvas lentas
Das estradas de esmalte, ao rudo som das frautas.



Anoitece...
Tremula ainda, no poente, a luz de alguns clarões,
E, enquanto sobre o meu teu olhar adormece,
Entre o perfil sombrio e vago dos chorões,
Redonda, a lua calma e distante, aparece...


Ronald de Carvalho
Publicado no livro Poemas e Sonetos (1919).
In: MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista.

"CANÇÃO DA LUA QUE LAVA"


Lua, que lavas teus linhos,
sempre a lavar
numa lixívia de nuvens,
branca, branquinha de espuma,
e escorres tudo lá no alto
para secar;


lua que lavas teus linhos
pelos valados maninhos,
na serra onde vai nevar;


oh lua alagando o mundo
nesta espuma de cegar!


lua que lavas teus linhos
e que os enxáguas
e os pões em qualquer lugar —
nos terraços lageados,
nos velhos muros caiados,
nos laranjais do pomar
ou nos campos orvalhados
onde estão a gotejar —


lua que lavas teus linhos
até nas praias do mar —


vem, lua, e lava minha alma!


Oh lava minha alma em lágrimas,
para que Deus, sol das almas,
venha a enxugar.


Murilo Araújo

segunda-feira, 3 de março de 2008

"FALLING STAR"



Wish on me,
I sparkle when the day is off
And the frolicking birds are flown -
wish, wish, never tire
when the ultimate light is far
and the whispering dreams are done,
wish for the very sake of a jailer
that sensing the wants of your heart
would leave somber cells unattended
and massive night portals ajar.


(Fernando Campanella)

'MILAGRE'



Eu caminhava entre árvores
E espremia nos dedos
O mudo cipreste, roçando
um acridoce olfato
Ao silêncio de meu nariz.
Ali entre cúmplices imagens,
Onde o vento me sabe
E o sem- fundo do lago me diz,
No frescor do mais contido sumo,
Cheirei a poesia, assim do nada,
E caminhei sobre as águas,
O naufrágio por um triz.


(F. Campanella)

"PSICOFOTOGRAFIA"



Há o sabor acre do pranto
o amor rústico das vinhas
e há o êxtase dos cânticos
das almas das andorinhas...

Há o amor dos namorados
o enlace das almas gêmeas
entre eflúvios perfumados
dos canteiros de alfazemas...

E amores chegam de trem
ou nos destinos das cartas
às vezes chegam do além
no murmúrio das cantatas...

E apesar dos desencantos
o ofício das bem-amadas
é de haver os reencontros
das almas desencontradas...

A. Estebanez

domingo, 2 de março de 2008

"Ao mundo..."



Vai entender os poetas,
os que almejam o fluir
dos rios indômitos, dos cantos
dos pássaros notívagos
e da manhã.
Alcançariam tal intento
quando a fatalidade os desperta,
(real tormento)
a cada incauto morder de romãs?
Sim, pois que destilam os sonhos
nas entrelinhas.
Ao mundo
o que é do mundo;
ao estado límpido de alma
(entendamos os poetas)
o que da longa tradição
dos pastores, da poesia.


(Fernando Campanella)

"Quebranto"



Mira-te encanto traído
Teu vento virado
Na água.

Afasta a dor e o sentido
E lambe as tuas cinco chagas.

Afaga então a pedra
Chama os deuses
Asperge na concha do ouvido
O eco de luas sonhadas.

Corta o quebranto
Na lâmina funda
Da água.

Mira-te agora
Mira-te flor enquanto
Te espalhas em ondas
Na água.


(Fernando Campanella)